(Carta aos professores)
Altair Sales Barbosa
Narra uma lenda indígena que, num
período muito antigo, os remos para as canoas eram elaborados de uma madeira
muito resistente e recebiam o nome de Aru-Apucuitá. Trata-se de um remo que
numa extremidade tinha o formato de uma pá de forneiro, possuía um metro de
altura, com empunhaduras bem trabalhadas. Com o tempo, os índios deixaram de
fabricar os Aru-Apucuitá. Várias estações chuvosas se passaram desde então. E
esse remo virou relíquia que sobrevive nas mentes e lembranças de alguns povos.
Segundo a mesma lenda, a pessoa
que tiver a sorte de encontrá-lo, mesmo que seja um fragmento, basta retirar
deste uma pequena farpa, colocar fogo numa das pontas e encontrará não só a
felicidade e a liberdade, mas sua mente será iluminada na direção do caminho
seguro...
... A aurora já chega com o
prenúncio do início de um novo semestre letivo e os professores, qual pião em
rodopio, buscam ordenar sua desordem ideológica, que mascara tempestades
mentais, na ânsia da busca por motivações que possam transformar os alunos em
agentes da história. E, na ilusão de que isto seja possível, dentro da
realidade atual, por um instante se esquecem e desprezam as interferências dos
mecanismos sociais que transformam a argila bruta, que é o homem ao nascer,
numa estátua social, dando a esta as configurações do meio que a modelou. Este
fenômeno é conhecido como socialização e pode ser entendido como um processo
dinâmico através do qual o Homem se transforma num ser social. Quatro são os
pilares básicos, nos quais este fenômeno se apoia: a Família, a Escola, a
Igreja e os Grandes Meios de Comunicação de Massa, incluindo os Sistemas
Cibernéticos.
Atualmente, a crescente
desestruturação da família, causada por problemas de ordem econômica,
ideológica, e pelas imposições do mundo moderno, contribuem para que, a cada
dia que passa, esta exerça cada vez menos seu papel socializante.
"..... a Silvia e o
esposo já iniciaram o espetáculo ao ar livre. Ele está lhe espancando, e eu
estou revoltada com o que as crianças presenciaram. Ouvem palavras de baixo
calão. Oh! se eu pudesse mudar daqui para um núcleo mais distante."
A narrativa, até parece que foi
extraída do noticiário da televisão ocorrido um dia anterior. Não foi. Trata-se
de um pequeno trecho pinçado do livro “Quarto de Despejo”, de Carolina de
Jesus, publicado em 1960. E só reforça a afirmação da precariedade do papel
socializante da família.
As escolas, tanto as
fundamentais, como as básicas e as superiores, que por algum tempo eram tidas
como continuadoras da família, há muito deixaram de exercer esta função,
mergulharam num pântano de lodo mal cheiroso e movediço, que suga a
criatividade e faz seus dirigentes adotarem uma dança macabra, como se fossem
fantasmas, diante de imposições ainda mais fantasmagóricas.
Os professores não conseguem a
motivação necessária para transmitir o conteúdo. Isto acontece, porque o
conteúdo não traz novidade e não é mais motivador. Grande parte dos alunos já
conhece, por outros meios, o que lhe será transmitido. A aula dentro da sala
perde, então, o interesse e o sentido.
A escola que outrora se
constituía num ponto de encontro para se fazer amizades, trocar ideias e
aprender novidades, não é mais nada disso. Hoje, as redes sociais desempenham
este papel.
A maior parte das escolas básicas
e fundamentais carece de pátios para brincadeiras, não tem bibliotecas, muito
menos equipamentos para dinamizar uma aula. E, sequer de longe, pode-se
mencionar que não possuem laboratórios. Isto é muito luxo, para quem acha que o
ensino não necessita de experiências.
Os professores se sentem
desmotivados não só pela remuneração. Aliás, para quem nunca ministrou uma aula,
pode-se afirmar que não há na terra, tarefa mais exigente, responsável e
cansativa. Porém, também sentem-se desmotivados, porque não são mais
respeitados pelos alunos. As associações sindicais de pais de alunos, apoiados
pelos meios de comunicação sensacionalistas, são capazes de levar um professor
à “Justiça” se este, no intuito de impor a disciplina, alterar um pouco a sua
voz na sala.
Aliás, por falar em disciplina,
as escolas hoje em dia são vigiadas por policiais, porque viraram pontos de
compra, venda e consumo de alucinógenos. A falta de perspectivas faz o aluno buscar
esses caminhos. Por isso e muito mais, a escola tal qual a família não faz
corretamente o papel de socialização e formação de cidadãos.
O terceiro elemento fundamental
na tarefa de socializar é a Igreja. Entretanto, com a materialização crescente
dos princípios sociais, norteados pela bandeira maior do capitalismo que
estampa o consumismo e ainda, com a deturpação da doutrina básica do
Cristianismo, para citar apenas o caso do Brasil, doutrina esta mutilada pelo
economicismo, a que muitas seitas lançam mão para sobreviverem, enriquecerem e
criarem impérios, faz com que haja a disseminação da descrença. E, quando esta
não vem, em seu lugar surgem o fanatismo e a alienação, que podem ser
considerados a encarnação da própria escravidão. Portanto, se a família não
cumpre adequadamente o papel de socializar, a escola e a igreja, atualmente, o
fazem muito menos.
Quem desenvolve com eficiência o
papel de socialização e formação das mentes na sociedade brasileira são os Grandes
Meios de Comunicação de Massa. Esses veículos, com uma força avassaladora,
modelam os hábitos da sociedade brasileira, mudam horários de eventos
tradicionais, de acordo com seus interesses, transformam em artistas quem não
são, fazem o povo cantar músicas alienantes e depressivas, visando a irradiação
da mediocridade, porque, quanto mais medíocre e sem consciência crítica fica o
ser humano, também se torna mais fácil aceitar programas banalizantes, com
altos índices de audiência etc. Assim, estes Meios vão contribuindo para a
formação de cidadãos doentes, agressivos, neuróticos, angustiados, depressivos,
e miseráveis globalmente. Uma vez submetidos às condições desfavoráveis, esses
seres se deixam dominar sem outra reação qualquer, que a do conformismo, ante
sala da alienação.
Este, de modo geral, é o tipo de
sociedade que compartilhamos atualmente. Não há solidariedade, não há valor
pela vida, não há exemplos de honestidade e a corrupção, qual cavalo selvagem,
campeia relinchando pelas campinas graminosas. Assim, convivendo com estes
exemplos, a utopia da construção de uma sociedade sadia se torna cada vez mais
longínqua.
Por sua vez, o Governo
brasileiro, através do Ministério da Educação (MEC), sem criatividade e talvez
sem a competência necessária, cria a todo instante mecanismos autoritários,
repressores, restritivos, que só reforçam a situação atual refletida pela
sociedade brasileira. Inadvertidamente, Governo e MEC parecem contribuir para a
manutenção deste quadro.
Movidos pela ideia errônea de que
povo culto é aquele que tem diploma universitário, cometeram e vêm cometendo
erros imperdoáveis, permitiram a criação de cursos universitários sem qualidade
e a multiplicação desenfreada das faculdades pegue-pague.
Buscando corrigir essas
distorções monstruosas que foram criadas, o Ministério da Educação tem lançado
mão de instrumentos ineficazes e inoperantes, que ao invés de corrigirem as
falácias, colocam numa mesma caixa vazia de bombom, ou melhor dizendo, num leito
de hospital psiquiátrico, todas as Instituições de Ensino Superior, sem
considerar suas peculiaridades, sua história, seu contexto, a importância e a
vocação regional de cada uma.
Ao proceder desta forma, o MEC
intervém de uma maneira nunca vista na história do autoritarismo brasileiro,
impedindo o crescimento destas instituições tradicionais, restringindo suas
ações de pesquisa, que é o fundamento da existência da própria Universidade,
impedindo suas ações inovadoras e criativas, uma vez que as obriga a vestirem
uma camisa de força para cumprirem, sem reclamar, as equivocadas exigências do
Ministério.
O sistema avaliativo atualmente
implantado para aferir as Instituições de Ensino Superior, quer seja através
dos alunos, quer seja avaliando a própria instituição, está cheio de
contradições e não se baseia num alicerce teórico sólido, que consiga expressar
a real situação institucional. Isto porque não se toma em consideração a
inserção social da Instituição avaliada, sua participação na formação da realidade
regional, sua vocação, sua missão, tampouco a história e os contextos.
A impressão que fica é que essas
ideias absurdas parecem que de repente, brotam da cabeça de pessoas que se
julgam geniais, cujo trabalho se desenvolve em um cubículo cercado por quatro
paredes, distante da realidade do território brasileiro, que é um continente,
com inúmeras diferenças regionais, refletidas nas atividades econômicas,
sociais e culturais, permeadas por uma diversidade ambiental de grandeza e
significados incomensuráveis.
Esses sistemas de avaliação nos
remetem ao episódio em que Charles Darwin foi avaliado pelo conselho de classe
do Colégio no qual estudava. Na ocasião, o reitor desse Colégio expressou:
“Trata-se de um péssimo aluno, não gosta das aulas de canto e chega a chorar
quando tem que assistir e participar das aulas de balé. Seu negócio é observar
as mariposas pousarem nos troncos das árvores. Parece um desajustado!...”
Em tempo, foi observando as
mariposas que Darwin criou o conceito de mimetismo, que culminaria na ideia de
seleção natural e evolucionismo, fundamentos que revolucionaram o pensamento
humano.
Da mesma forma que o MEC está
enganado e deve rever seus processos avaliativos, a CAPES e o CNPq deveriam
revisar seus conceitos de pesquisa. Não deixar que esses conceitos que
brotam em cabeças de burocratas se transformem em obstáculos para o
desenvolvimento dessas atividades no seio das verdadeiras Universidades
brasileiras. Para aqueles que sempre cantavam ou cantam as canções de Vandré, é
sempre oportuno recordar o que este compositor e poeta diz em uma de suas
músicas:
"Não vai falar de amor quem
nunca soube amar".
Isto se aplica a diversas áreas
de atuação. Não pode traçar diretrizes para a educação ou para a pesquisa quem
nunca foi educador ou pesquisador. Se insistir nesta tecla, poderá ser criada
uma teia complexa de instrumentos impeditivos e desafinados.
A missão de ser professor e ou
pesquisador é tarefa que exige vocação e aptidão, é claro, que associada ao
conhecimento. Tentar relacionar a titularidade de doutor a pesquisador é uma
atitude semelhante ao do Reitor daquele mencionado Colégio, querendo
transformar Charles Darwin num dançarino de balé.
... Assim, por detrás desta
realidade, às vezes vem aquela vontade louca de corrermos de nós próprios, ou
procurarmos esconder um choro ainda mais dolorido, para que ninguém possa ver
nossos olhos marejando. Talvez, a vontade de fugir seja pela falta de comunhão
e o choro, seja pelos elementos fundamentais que a educação perdeu,
principalmente a dignidade, o respeito, o entusiasmo e o orgulho de ser
professor. O que significa a encarnação da própria vergonha, por isso
procuramos chorar escondidos e bem baixinho. Sentimos vergonha da incapacidade
de não podermos ter evitado os tenebrosos caminhos que conduziram a educação
para a situação em que se encontra.
Por outro lado, na esperança
daqueles que sentem que não foram derrotados, afirmamos ser impossível tentar
entender ou explicar a curvatura do universo, utilizando os parâmetros da
Física Newtoniana ou da Geometria Euclidiana. O máximo que a física de Newton
alcançou foi compreender a gravitação universal e a geometria de Euclides conheceu
no máximo três dimensões. A compreensão da realidade atual
cibernética, a inércia na tomada de atitudes radicais, a falta de
conscientização, a abdicação do papel fundamental da educação na formação de
cidadãos conscientes e o abandono da busca da felicidade e liberdade são
situações que somente poderão ser explicadas, ou talvez compreendidas, através
da mudança radical dos padrões de como vimos o mundo, e como o vemos
atualmente. Para isto, a busca de novos paradigmas se torna imprescindível. Os
que existem são incapazes de fornecer as respostas necessárias para
encontrarmos o caminho do êxito e do equilíbrio.
Por isso, como professores ou
pesquisadores, mesmo nadando contra fortes correntezas, nunca perdemos a
esperança. Quando em campo, ficamos vasculhando os barrancos dos rios por onde
andamos, sempre à busca de um fragmento do Aru-Apucuitá.
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