sábado, 26 de dezembro de 2020

PERDEMOS A COMBINAÇÃO DA SENHA

 


Altair Sales Barbosa

Existe ou existia entre os índios Kamayurá um ritual que consistia em confeccionar figuras zoomorfas, em cerâmica, e atirá-las ao fundo da Lagoa Miararré, no Alto Xingu. Esse costume era seguido por um mito, o qual narrava que, lá no fundo da lagoa, essas figuras formavam certas combinações que poderiam trazer a felicidade ou a desgraça. Assim, uma vez por ano os Kamaiurá mergulhavam até o fundo da lagoa, para verificar se as combinações estavam corretas. E assim o fizeram durante décadas em que foram observados pelos etnólogos modernos. Porém, com o passar dos tempos, que anda sempre mexendo com as coisas, modificando locais, e roubando memórias, os sedimentos argilosos juntamente com processos de assoreamentos, que aconteceram ao redor da lagoa, acabaram por enterrar aquelas figuras. Pior ainda, outras ondas culturais exóticas fizeram com que os Kamayurá mais jovens, não mais lembrassem das combinações, e aos poucos a felicidade e a tranquilidade daquele grupo foram substituídas pela luta aguerrida pela sobrevivência.

Este pequeno relato Kamayurá nos remete a refletir ou revisar, mesmo que brevemente, os caminhos que levaram a humanidade a eleger a desnaturização como ideologia e comportamento de vida, fenômeno pelo qual o homem se julga não fazer parte de mundo natural, afastando-se dele e atribuindo a si próprio um poder divino sobre os outros elementos do meio ambiente, o que, consequentemente, vem desencadeando os desequilíbrios contemporâneos.

Desde que surgiram na África, após uma série de processos evolutivos e adaptativos coroados de êxito, estes primeiros humanos conhecidos como Homo-habilis, começaram a desenvolver comportamentos egoístas e extremamente possessivos, que levaram à extinção várias espécies de animais, incluindo alguns dos nossos primos. Também fizeram guerras entre si e, possivelmente, levaram à extinção alguns grupos dissidentes.

À medida que as técnicas foram se desenvolvendo, tornando-se mais eficientes, para seus propósitos, o gênero Homo se tornou uma espécie cosmopolita e, por onde passava, deixava marcas de destruição e extinção de espécies. Eles eram ainda caçadores-coletores.

Depois desse tempo, várias noites, vários dias e várias estações se passaram e após longos processos de aprendizagem e de adaptação uma revolução no modo de ser de alguns humanos começa a se desenhar, numa nova forma mais complexa de vida. Eles aprendem a domesticar as plantas e os animais. Este fator os transforma de nômades em sedentários e os obriga a construírem moradias fixas para protegerem suas hortas e criações, tanto dos predadores humanos, como de outros animais.

Esta nova organização social, chamada inicialmente de aldeias, traz no seu bojo uma série de problemas, que vão desde aqueles ligados aos relacionamentos sociais, até problemas de saúde, partilha dos bens etc. que eram resolvidos quase sempre, com a cisão dos grupos.

Mas, de maneira geral, parece que a abundância superou as vicissitudes e logo essas aldeias se transformam em cidades que imediatamente vão se constituindo em impérios. Para a construção dos impérios, os humanos que os conceberam, embora esse processo seja fruto de exigências sociais e políticas, quase que imperceptíveis, num primeiro momento, engendram mecanismos de dominação política.

Num segundo momento, começam a proporcionar as primeiras grandes modificações nas paisagens, exploram pedreiras constroem castelos, templos, campos de jogos, recreação e competições, constroem aquedutos, sistemas rudimentares de esgotos destroem plantações nativas para implantar grandes campos de cultivo e assim segue sua marcha.

Entretanto, é bom salientar, nada disso seria possível sem a criação de uma sociedade estratificada socialmente e obediente às divindades e crenças impostas de forma cruel e sanguinária. Dessa forma, foram construídos os grandes impérios, ilustrados por alguns dos quais assim denominados: Império Hebraico, Império Faraônico, Império Grego, Império Romano, Império Otomano, Império Asteca, Império Inca etc. Assim como os novos impérios, que surgiram depois da época das grandes navegações.

Uma dinastia, ligada diretamente a uma divindade, se organizava em torno dela, um grupo de obedientes ordenadores, que por sua vez organizavam grupos de guerreiros, exércitos, que davam ordens, ou escravizavam hordas estranhas ao seu bando para fazerem os trabalhos pesados.

Com o incremento deste modelo deu-se ao luxo de escravizar continentes quase que por inteiro, porque os povos que possuíam costumes estranhos, que andavam nus ou que fisicamente eram diferentes, não eram considerados seres humanos, precisavam ter um Deus e precisavam também pensar como aqueles que lograram mais poderio bélico.

Sociologicamente surge a ideologia dos incluídos e excluídos, que permite aos humanos escravizarem outros humanos e os venderem e trocarem como mercadorias.

O modelo de universidade, casa da sabedoria, imposto no mundo ocidental, contribuiu largamente para o embasamento científico da desnaturização do homem, uma vez que separou os saberes em ciências humanas e ciências naturais, modelo cujos frutos colhemos até os dias atuais. Porém, é bom também salientar que as intervenções humanas, que começaram a permear a ciência, vêm desde a revolução neolítica, com o cruzamento entre espécies de uma mesma característica física, para adquirir certa homogeneidade de raças. Isto aconteceu com os galináceos e com os cães, seguida pela castração de touros, para impedi-los de deixar descendentes e torná-los mais mansos para o trabalho pesado. A castração dos seres humanos criando a classe dos eunucos, para cuidarem dos haréns, é só a ponta do iceberg de uma grande revolução que estamos começando a vivenciar: a engenharia genética e a inteligência artificial.

Há bem pouco tempo poderia descrever a humanidade atual como o resultado de dois processos evolutivos que se sobrepuseram ao longo do tempo: a evolução biológica, que compartilha com os demais seres vivos e que fundamentalmente consiste na transferência de adaptações biológicas que facilitam a sobrevivência e a seleção das espécies, e a evolução cultural, resultado dos avanços tecnológicos logrados pela espécie humana em sua evolução biológica.

A evolução cultural tem significado, por um lado, a organização do homem em grupos sociais que têm gerado problemas demográficos, problemas de saúde, problemas de educação, problemas institucionais etc. Por outro lado, a evolução cultural agregou ao fluxo básico de energia e de informação e de circulação de matéria o fluxo do dinheiro, como resultado dos intercâmbios e das transações, gerando assim uma série de variáveis econômicas relacionadas com produção, capital, trabalho, comércio, indústria, consumo, níveis de preços, planificação de inversões, maximização de ganho, transferências de tecnologias etc. A aplicação das diversas tecnologias sobre as biogeoestruturas naturais originou diversas manufaturas (e não só elas) como: artesanato, instrumentos, maquinários etc., como também deu origem a uma grande quantidade de ecossistemas artificiais, cidades, metrópoles, megalópoles, campos de cultivos, áreas de pastoreio, pastagens artificiais, represas, canais de regadio, rodovias, vias férreas, aeroportos, grandes usinas, complexos atômicos etc. Por último, a evolução cultural tem originado uma série de estruturas culturais ou ideo-facturas: ideias filosóficas, crenças, conhecimentos, valores, normas etc.

Se tudo isto, aliado aos avanços eletrônicos, já nos causa surpresas, às vezes desagradáveis e espantosas, devemos nos preparar muito mais para o que nos aguardam os resultados da engenharia genética, as possibilidades incertas da inteligência artificial, a vida biônica e até com a possibilidade de outras vidas. Somos mais poderosos do que nunca.

As bombas-relógios, que foram plantadas ao longo do tempo histórico, muitas das quais explodiram, porque quem as plantou, esqueceu as combinações da senha. Este fato tem gerado vários desequilíbrios ao meio ambiente, em diversos níveis de escala, cujos frutos já colhemos e estamos colhendo, com as incertezas do futuro, não para o planeta, pois este não depende do homem, mas para o futuro dos próprios humanos.

Não é preciso ter cérebro brilhante nem ser um gênio da futurologia para sabermos que, de uma forma ou de outra, a bomba Z já foi plantada. Também não é necessário ser genial para perceber que vivemos num planeta inteligente, cuja capacidade foi adquirida ao longo de bilhões de anos de experimentação e evolução, por isso, cobra caro pelos desequilíbrios provocados pelas intervenções mal planejadas nos elementos que compõem o meio ambiente.

Assim, esperamos que a humanidade esteja bem preparada, para evitar o que aconteceu com os Kamaiurá, que esqueceram a combinação das figurinhas atiradas ao fundo da lagoa Miararré.




 

CERRADO:

 


UM BANCO PARA O FIM DOS TEMPOS
 

Altair Sales Barbosa
 
Um banco do fim dos tempos para o cerrado, se definiria pela criação de um espaço adequado, com técnicas de armazenamento adequadas, para a preservação do maior número possível das partes germinativas das espécies desse Sistema Biogeográfico, caso um apocalipse venha destruir a vegetação desta riquíssima matriz ambiental, para que no futuro ela possa ser, se necessária refeita.
 
Os desafios não só para a criação, como para a manutenção de uma arca desta natureza, do ponto de vista econômico, são imensos e exigiriam um programa consistente de pesquisas, para o resgate dos conhecimentos atuais e para a formação de gerações de novos pesquisadores, dentro de uma ótica que não tivesse interrupção. Também os desafios para a solução dos intrincados problemas ecológicos, seriam imensos. E, teriam que ser considerados desde o oligotrofismo do solo, como regime climático, balanço hídrico, e tantos outros que possibilitassem a germinação e sobrevivência das plantas retiradas do banco.
 
Caso o cerrado, venha a desaparecer totalmente, situação que se encontra prestes a acontecer, pela sua importância ecológica, para o equilíbrio de grande parte das áreas continentais do planeta, com certeza, esforços na busca de soluções científicas e tecnológicas não seriam medidos.
 
O cerrado, na plenitude de sua biodiversidade, já se encontra extinto. Considerando parte da complexa ecologia e da sua história evolutiva, as formas vegetacionais, desde as suas origens, representaram importância fundamental na configuração da totalidade ambiental. Entretanto, a vegetação enquanto comunidades, não existe mais, porém é possível encontrar uma outra espécie isolada, sobrevivente da tragédia da extinção.
 
Uma outra questão importante a ser colocada, se refere a difusão do cerrado e sua adaptação ao solo oligotrófico.
 
Em 1961, o pesquisador Ferry, se surpreendeu com a constatação de que após vários anos de pesquisas acerca do cerrado, constatou que nunca encontrou plantinhas de espécies permanentes que pudessem dizer com segurança, que provinham de sementes. Reprodução vegetativa de vários tipos, é responsável pela manutenção desta vegetação em determinado local e pela sua expansão em áreas adjacentes.
 
Experiências não publicadas, com sementes de algumas espécies, revelaram que não há dificuldade para germinação em condições de laboratório, no cerrado entretanto, as mesmas sementes não germinam ou fazem em porcentagem muito pequena, mesmo quando há alguma germinação, a sobrevivência final é extremamente baixa.
 
Isto pode ser explicado da seguinte forma: As sementes das plantas permanentes do cerrado, são produzidas e dispersadas via de regra, ao final da época seca, muitas são comidas por insetos e outros animais, muitas morrem pelo excessivo calor solar, algumas apenas são preservadas em certos pontos mais abrigados. No cerrado antigo, a superfície do solo é dura e seca e tem um baixo teor de coloides assim, quase toda água das primeiras chuvas corre pela superfície. As sementes que iniciam sua germinação com estas primeiras chuvas, não encontram água suficiente para prosseguir em seu desenvolvimento.
 
O cerrado é um dos ambientes mais antigos da história recente do planeta Terra, que tem início no Cenozóico, portanto trata-se de um ambiente, onde os elementos fundamentais que o compõem, já chegaram ao clímax evolutivo, com grau elevado de especialização, e os componentes vivem em complexa simbiose, além de necessitarem de condições especiais para sobreviverem.
 
Sementes de algumas espécies, principalmente arbóreas, germinam até com certa facilidade em viveiros, outras precisam de tratamentos especiais, para quebra de dormência e processos de escarificação. Somando todas as espécies que germinam em viveiros, chega-se a um total de aproximadamente 180 espécies, quantia que é insignificante, pois são conhecidas quase 13 mil espécies vegetais, que compõem a flora do cerrado. Um outro problema a ser considerado para o desenvolvimento das plantas, cujas sementes germinam em viveiros, é encontrar locais especializados, onde estas possam desenvolver e, se tornarem adultas, de acordo com suas exigências adaptativas.
 
Algumas adaptações da vegetação do cerrado, como  sistema subterrâneo desenvolvido desde o estádio de plântula, com raízes que atingem grande profundidade no solo, em busca de  água, caules subterrâneos com função de reserva ( xilopódio) e com gemas que permitem a reprodução das plantas após a estiagem e as queimadas, translocação de foto assimilados para o sistema subterrâneo nos períodos de seca, caules aéreos com cortiças para proteção contra fogo, solos com pH ácido, acúmulo foliar de alumínio, ajustamento osmótico das raízes possibilitando a entrada de água nos meses secos, são  sinais de processos adaptativos de uma vegetação antiga.
 
Essas considerações iniciais, embasam um grande projeto no sentido da construção dessa estrutura preservacionista e futurista.

No atual estágio, se encontra em conclusão um levantamento bibliográfico que contenha a listagem das plantas conhecidas do cerrado, incluindo as obras que listam as plantas ameaçadas de extinção.  Paralelamente diversos experimentos de preservação, estão sendo realizados, desde condições de armazenamento até experimentos com germinação.




sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

FOGO NO CERRADO E QUEIMADAS ONDE O CERRADO NÃO MAIS EXISTE

 



Altair Sales Barbosa

 

O cerrado, enquanto formação vegetal, é explicado por uma teoria denominada escleromorfismo oligotrófico. O oligotrofismo do solo é acentuado pelo fogo que retira basicamente seus nutrientes básicos. A vegetação do cerrado, principalmente nos seus aspectos senso strictu e cerradão, retém o máximo de açúcar que retira do solo e sequestra grande quantidade possível de CO2 da atmosfera, para alimento, e deposita esse gás nas raízes profundas. O açúcar é transformado em tecido por nome esclerênquima, que é armazenado nas bifurcações das plantas, dando a estas um caráter tortuoso. Fenômenos dessa natureza demonstram processos adaptativos de longa data. Todavia, esses não são os únicos processos que demonstram uma adaptação da vegetação do cerrado ao fogo. Existem muitos, mas, para resumir, citaremos a existência de caules subterrâneos, com função de reservas e com gemas, que permitem a reprodução das plantas após a passagem do fogo; são processos adaptativos, que demonstram uma história evolutiva, complexa e antiga dessa vegetação.

Outros tipos de vegetação precisam de situações extremas para sobreviverem. No caso polar, por exemplo, existem as tundras, que florescem depois do degelo. O gelo polar funciona como fogo, provoca quase o mesmo efeito, para rebrota das plantas. As sequóias que ocorrem principalmente na Califórnia, na América do Norte, é outro tipo de formação vegetal que intimamente convive com fogo, e esse é primordial para sua propagação e sobrevivência. De formação antiga, tal qual o cerrado brasileiro, estas florestas representam, para região onde ocorrem, o mesmo papel que a vegetação de cerrado representa para os chapadões centrais da América do Sul, só que o cerrado parece ser bonsai das antigas sequóias.

Não se pode levar adiante qualquer estudo sobre o cerrado, se não tomar em consideração o fogo, elemento com o qual essa paisagem está intimamente associada. Apesar da sua importância para o entendimento do Sistema Biogeográfico, a ação do fogo no cerrado é ainda mal conhecida, e geralmente marcada por questões mais ideológicas que científicas. Também não se pode conduzir tal estudo com base apenas nas comunidades vegetais. O estudo do fogo, como agente ecológico, será mais completo se também se observam as comunidades faunísticas e os hábitos que certos animais desenvolveram e que estão intimamente associados à sua ação, cuja assimilação, sem dúvida, necessita de arranjos evolutivos caracterizados por um tempo relativamente longo. Algumas observações constatam, por exemplo, que a perdiz (Rhynchotus rufescens), só faz seu ninho em macega, tufos de gramíneas queimadas no ano anterior. Visitando várias áreas de cerrado, imediatamente após queimadas, constata-se que, mesmo com as cascas das árvores e arbustos carbonizadas superficialmente, há entre as cascas e o tronco intensa micro fauna. Fenômeno semelhante acontece com extrato gramíneo, que poucos dias após a queimada, mostra sinais de rebrota, que constitui elemento fundamental para a concentração de certas espécies animais.

O fogo é um elemento extremamente comum no cerrado e de tal forma antigo que a maioria das plantas parece estar adaptada a ele. Ferry(1973), comentando trabalho de Rachid Edwards(1956), em áreas de campo limpo e cerrado, informa que a autora estudou especialmente as gramíneas, grupo que constitui a massa de vegetal baixa dos campos e no qual existe grande número de espécies tunicadas. Rachid Edwards indica, neste mesmo trabalho, que as formações túnicas, são encontradas em plantas da vegetação baixa dos campos, como Gramínea, Cyperaceae, Iridaceae, Filicinae etc. Indica ainda que, segundo Bouillene(1930), ocorrem também em Velloziaceae, Bromeliaceae e Eriocaulaceae. As túnicas são envoltórios de pontos vegetativos e, em função, comparam-se aos catafilos que protegem as gemas dormentes. Tais elementos, além de protegerem contra a perda da água, são eficazes na proteção contra o fogo e contra o forte aquecimento por ele produzido.

A autora ainda trata dos sistemas subterrâneos, (bulbos, rizomas, tubérculos e xilopódios), que também proporcionam resistência às condições adversas. Arens (1958), afirma que o fogo é um fator que acentua o oligotrofismo, influindo dessa maneira sobre a conservação ou propagação do Cerrado. Já Goodland(1966) sugere que a ação do fogo sobre microrganismos do solo é muito importante no cerrado, porém pouco conhecida.

Na mesma linha de raciocínio, Coutinho(1956), informa que ação do fogo no cerrado aumenta o vigor da vegetação herbáceo-subarbustiva, enquanto que o arbustivo-arbórea o tem diminuído. Isso significa, de acordo com o autor, um aumento progressivo das áreas de campo sobre áreas de cerrado e cerradão. Entretanto, quanto a essa observação, cabe considerar o seguinte: a primeira parte da afirmação de Coutinho; nossas observações a corroboram integralmente. No entanto, quanto à segunda parte, é necessário tomar em consideração o aspecto da competição. Uma área onde a queimada não ocorre, favorece o crescimento de gramíneas até alturas consideráveis, o que possibilita o enrijecimento de seus caules e a maturação em massa e dispersão de suas sementes, restringindo o espaço dos arbustos e das espécies arbóreas jovens, ao passo que a queimada, embora aumentando-lhe o vigor, restringe de certa forma sua área de dispersão, propiciando áreas ensolaradas e abertas para as plantinhas em formação.
Outro dado importante a destacar, quando se procura entender a ação do fogo ao longo da história, é que a ação do homem pré-histórico brasileiro não funcionou como elemento perturbador dessa paisagem, porque, além da ocupação do interior do Brasil ser um fato relativamente recente, era insignificante em termos populacionais para produzir perturbações em amplas escalas; suas ações revestem-se de caráter puramente local. Nascimento (1987) assinala também que, ao longo do tempo, a ação do fogo no cerrado deve ser buscada em causas naturais. O calor e as variações do albedo, sempre altos nas áreas do Cerrado, provocam intensos movimentos convectivos na atmosfera, onde a concentração da umidade e o forte gradiente térmico atmosférico montam rapidamente tempestades magnéticas caracterizadas pela intensidade dos trovões, relâmpagos e raios.

A ação do fogo no Cerrado, ao longo do tempo, criou neste ambiente vários exemplos de adaptação. No caso animal pode-se citar como ilustração, além dos já citados, o caso da ema,(Rhea americana), que faz um ninho grande, que comporta em média 50 ovos, que são chocados pelo macho no meio do campo. Para proteger o ninho, a ema faz, ao seu redor, um pequeno aceiro, para quando o fogo vier não atingir o ninho. Isto era possível, porque tratava-se de um fogo brando, rápido e rasteiro, que simplesmente lambia o resto das gramíneas secas e mortas. Esse fogo não tinha força para atravessar o pequeno aceiro feito por aquela ave.

As gramíneas nativas e outras plantas herbáceas existiam nos chapadões, nas campinas, nos interflúvios e nas áreas de cerrado stricto sensu, onde a luz do sol permite a entrada da claridade. Atualmente, essas gramíneas não existem mais. Adiante analisaremos as causas dessa extinção.

Nossa obrigação tem a esclarecer ainda alguns pontos importantes. O primeiro, refere-se ao ciclo vegetativo das gramíneas. Toda vez que uma gramínea produz semente, a planta morre. Alguns exemplos, que não são as pequenas gramíneas do Cerrado, apenas para a ilustração ficar mais clara. O milho, que é uma gramínea, quando produz suas sementes e elas amadurecem nas espigas, a planta morre. Assim ocorre com a cana-de-açúcar, com arroz, com trigo etc.

O mesmo fenômeno, acontece com as gramíneas nativas do Cerrado, uma vez que dão sementes, morrem deixando no local tufos de pequenos troncos secos. Algumas dessas espécies têm ciclo anual, outras desapareceram, antes que o ciclo pudesse ser conhecido, como muitos bambuzinhos nativos etc. Quando acontecia o fogo natural, este era brando e tinha a função de limpar os tufos das gramíneas, para que brotos novos surgissem ou para a quebra da dormência das sementes, que propagavam essas espécies.

Ponto importante também a ser considerado, refere-se aos alimentos disponíveis para os animais nativos, no auge da estação seca. Nessa época, esses animais estão vivendo o tempo da sobrevivência. Diferentemente de outros parâmetros de tempo, o tempo da sobrevivência é o tempo do fio da navalha. Se encontra entre a vida e a morte, não há alimentos no Cerrado para a sobrevivência dos animais e muitos destes encontram nos restos dos fogos, elementos que lhes permitem sobreviver mais alguns dias, restos de insetos carbonizados, pedaços de carvão e até a cinza que proporciona cálcio e sais minerais. De imediato vêm as floradas, e, com as primeiras chuvas, a rebrota das gramíneas; em seguida chegam os primeiros frutos. Esse ciclo complexo, sustenta os herbívoros, que por sua vez sustentam os carnívoros, restabelecendo novamente o ciclo da vida.

Também é importante salientar as causas do fogo espontâneo no Cerrado. Nesse Sistema encontra-se uma grande variedade de rochas, que refletem com intensidade a luz do sol, essa luz ao encontrar massa combustível vulnerável, imediatamente se inflama. As rochas quartzosas, desde as esbranquiçadas até o quartzo hialino, as biotitas, as muscovitas, o sílex, o arenito silicificado, todas podem provocar esse tipo de fenômeno. Já presenciei isso muitas vezes, em longos trabalhos de campo. Porém a experiência mais extraordinária, neste sentido, aconteceu dentro de um museu, onde uma telha quebrada permitiu a passagem de um intenso raio solar, que, ao tocar numa superfície polida de madeira silicificada, refletia num pedestal de madeira comum, que sustentava outra amostra. Percebi uma fumaça. Ao tentar constatar o que estava acontecendo, vi que a fumaça era oriunda da madeira que funcionava como pedestal, que, ao receber o reflexo do raio solar, estava começando a se queimar, fato que não chegou a concretizar porque ela era densa. Esse fenômeno se deve ao fato do albedo do sol, que nessa época de estação seca atinge certas regiões do Cerrado de forma que permite um reflexo tangencial, gerando concentração de calor.

Outro fator, originado de processos adaptativos, refere-se à energia ou ao eletromagnetismo gerado pelo contato ou atrito dos pelos de alguns animais, com os talos secos das gramíneas. Nessa época a umidade é muito baixa, fato que provoca tal fenômeno; uma vez provocada a faísca, se esta encontrar massa combustível, é capaz de se alastrar como fogo.

Um outro fenômeno muito comum de fogo espontâneo no Cerrado ocorre nas margens dos rios, nas veredas, nos pantanais e até nos lagos artificiais. Trata-se do fogo-fátuo, que é a combustão resultante do contato de gases metano e fósforo, com o oxigênio da atmosfera. O fogo-fátuo é comum nesses locais. Nas margens de rio, é porque na época das cheias muitos animais povoam esses locais com a vazante. Com o recuo das águas na época da seca, os animais que ficam presos e não conseguem acompanhar a descida das águas entram em decomposição pela ação das bactérias e logo são soterrados pela sedimentação; os gases produzidos pela ação das bactérias, ao entrarem em contato com o oxigênio atmosférico, formam um fogo azulado, que pode durar segundos. Nas veredas, em função da presença de turfa e constante material em decomposição, esse fenômeno é muito comum e pode se alastrar com facilidade, dado a existência de um estrato inferior composto de muitas gramíneas nativas, dentre estas o capim dourado, só para citar um exemplo. Entretanto, os locais onde os fogo-fátuos ocorrem com mais frequência são as áreas de pantanais; no Sistema do Cerrado existem pequenos pantanais e grandes pantanais. Entre os pequenos podemos citar os Pantanais do rio Paranã, em Flores de Goiás, e o Pantanal do rio Jamari, próximo à cidade de Acreúna, Goiás. Entre os grandes, o destaque é para o Pantanal Mato-grossense da sub-bacia hidrográfica do rio Paraguai. Aliás, fisiograficamente, esta paisagem não passa de um Subsistema do Sistema Biogeográfico do Cerrado. Neste local, na época das águas, formam grandes e pequenas lagoas marginais, algumas são perenes, mas outras, principalmente as menores, quando vem o período de estiagem, elas começam a secar. Quando cheias, estavam recheadas de vidas, que com a estiagem agonizam à medida que o processo de seca aumenta. Como o fundo é argiloso, em função do processo de sedimentação lento, muitos animais, na ânsia da sobrevivência, se misturam ao fundo argiloso da lagoa, até que toda a água se evapora. O mesmo processo de decomposição acontece, pela ação das bactérias e, quando os gases saem por alguma brecha, o contato com o oxigênio provoca o fogo azulado. Nos pantanais, porém, a massa combustível é bem maior que nas outras, daí a possibilidade do fogo se alastrar pelas gramíneas nativas secas é também maior.

O fenômeno do fogo-fátuo constitui-se no primeiro mito indígena relatado no Brasil por José de Anchieta, e os índios o denominavam de Boitatá ou cobra de fogo. Alimenta também os diversos causos de assombrações nos sertões do Brasil. Atualmente, esse fenômeno adquire grandes dimensões, em função da construção de lagos artificiais. Na ânsia do represamento das águas para a formação dos lagos, apenas um baixo percentual das madeiras que têm valor comercial é retirado; aquelas sem valor são deixadas nos locais. Com o enchimento dos lagos, o processo de decomposição continua e o fenômeno do fogo-fátuo aumenta assustadoramente.

Era assim que funcionava o fogo no Sistema Biogeográfico do Cerrado!

Um fogo brando, leve, essencial para a manutenção da paisagem como um sistema.

Findo o ciclo da mineração no centro do Brasil, em função de múltiplas razões, os antigos mineiros apossaram-se das terras em volta dos antigos centros mineradores, com intuito de desenvolver uma agricultura e uma pecuária básica que pudessem alimentar a si e aos seus. Dessa forma, a pecuária antes de se transformar em intensiva e altamente científica e tecnológica foi praticada extensivamente à solta sobre as imensas pastagens. Tradição que iniciou em terras situadas no oeste do rio São Francisco, no gerais da Bahia e Minas. (Neto – 2012).

Com a introdução em larga escala do gado indiano, especialmente a raça nelore, associada às técnicas de inseminação artificial, foi tomando proporções gigantescas a introdução de gramíneas exóticas nas áreas do Cerrado. Este fato aconteceu principalmente a partir da década de 1940, mas foi se aperfeiçoando, paralelamente ao desenvolvimento das técnicas agrícolas, a partir da década de 1970, já que se percebeu que as gramíneas nativas não dão sustentação para criações em larga escala. Dentro dessa perspectiva, foram paulatinamente sendo introduzidas as gramíneas exóticas para sustentar essa pecuária cada vez mais pujante, que se desenhava no Brasil. A primeira espécie a ser introduzida foi o capim-elefante (P. purpureum), de origem africana; depois veio o colonião (P. maximum), que, segundo alguns, inicialmente se disseminou pelas sementes que vinham grudadas nas roupas dos escravos e, assim sucessivamente, introduziu-se o Andropogon (A. gayanus), o Capim-gordura (M. minutiflora), o Jaraguá (H. rufa), todos também de origem africana. A partir da década de 1970, com a diversificação cada vez maior e com a expansão de fronteiras, foram introduzidas quatro espécies do Capim-Braquiária, também de origem africana o (B. decubens), o (B. humidícola), o (B. ruziziensis), e o (B. brizantha); todas essas espécies se adaptaram bem às condições dos espaços onde foram plantadas, claro que umas tiveram melhor adaptação, principalmente contra o ataque da cigarrinha e outros insetos, fato logo resolvido pelos potentes inseticidas desenvolvidos pelos laboratórios associados ao grande agronegócio.

A primeira consequência da introdução dessas gramíneas exóticas foi a perda da biodiversidade. Por serem severas, agressivas e invasoras, essas espécies logo se espalharam nos diversos ambientes de Cerrado, principalmente naqueles onde a claridade imperava, nos campos, no cerrado strictu-senso, no cerradão, nas veredas, nas orlas das matas, nos leitos e margens de estradas etc., modificando de forma radical a fisionomia da vegetação do Cerrado e influenciado na propagação de pragas antes desconhecidas.

Por não possuírem sistemas radiculares complexos, essas gramíneas não absorvem as águas das chuvas, da forma como fazem as gramíneas nativas; a consequência imediata é a diminuição da umidade do solo e dos depósitos de água subterrânea. Também têm ciclos anuais, ou seja, todo ano produzem sementes, que, logo após o amadurecimento, a planta morre, deixando uma montanha de talos secos, porque trata-se de espécies com alturas consideráveis. O manejo inadequado dessa massa combustível, e ainda o preconceito contra o fogo, fundamentado nas raízes religiosas da população, que confunde fogo com inferno, contribui para que jamais se entenda que o fogo é um dos elementos que compõem o meio ambiente. Dentro dessa perspectiva, em vários locais foram criadas as denominadas brigadas contra incêndios, que ao primeiro sinal de fogo correm para apagá-lo. Agindo com boa-fé, mas sem conhecimento das ecologias e histórias locais, as brigadas só contribuem para o aumento das massa combustível, pois, a cada ano que passa, pela fisiologia dessas gramíneas, só aumenta o volume a ser queimado.

Um dia o fogo chega, pois o planeta é dinâmico, os fenômenos que aconteciam no passado continuam da mesma forma; portanto, o fogo pode chegar por causas naturais ou antrópicas ou pela associação das duas, e quando isso acontece o fogo se transforma em queimada prejudicial a todos e a qualquer forma de vida e ainda se torna incontrolável. Este quadro só reforça o que venho afirmando com relação ao Cerrado: na plenitude de sua biodiversidade, este ambiente não existe mais. E, se hoje o fogo aterroriza, amanhã muitos seres morrerão de sede, e a disputa dos humanos pela água será cada vez mais acirrada.
A introdução das gramíneas exóticas agressivas e invasoras por excelência, que deu o último empurrão para a desconfiguração do Cerrado, exige um plano de manejo adequado, quer seja utilizando do próprio fogo, em áreas e tempos alternados, quer seja limpando com máquinas as áreas com as macegas incendiárias. De uma forma ou de outra, o prejuízo ambiental é irreversível, mas, pelo menos, proporciona aos humanos momentos de mais conforto. Aliás, mesmo quando ainda existiam as gramíneas nativas, e algum fogo acontecia, sempre tive minhas dúvidas, se, com todo alarde, o homem estava pensando mais nele ou na natureza como um todo. Na preservação ou na produção?