quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

A ILHA DO BANANAL NÃO EXISTE MAIS




Altair Sales Barbosa

Desde dos meus tempos de estudante do antigo ensino primário e ginasial que aprendi lendo os livros de geografia e também com os meus professores, que o Brasil possuía a maior ilha fluvial do mundo. A Ilha do Bananal, formada pela bifurcação do rio Araguaia que mantinha seu braço esquerdo com o nome de Araguaia e o braço direito com o nome de Javaé, denominação tomada emprestada dos índios Javaé, pertencentes ao mesmo grupo linguístico da nação Karajá. Estes últimos, habitam mais às margens do Araguaia, enquanto que os Javaé estão mais nos domínios das águas do rio Javaé.

A junção dos dois braços, ocorre próximo à cidade de Formoso, hoje Estado do Tocantins. Por força da minha formação universitária, por várias vezes fazia visita regular a então Ilha do Bananal para estudos antropológicos e geológicos. Era comum adentrar à ilha pelo Javaé, para isto atravessávamos nossos carros em balsas, com capacidade de transportar até três caminhões.

O tempo foi passando e trouxe para a realidade novos projetos, com base em novas tecnologias, fato que foi acompanhado de grandes transformações ambientais e sociais em todo vale do rio Araguaia e adjacências.  Segundo o geólogo Maximiliano Bayer da UFG, a cada ano o rio Araguaia fica mais largo e menos profundo, consequência das grandes modificações ocorridas no vale.

Com o incremento desses grandes projetos e a criação do estado do Tocantins, que transformou o Projeto Rio Formoso no maior projeto de irrigação do estado, para produção de grãos e melancia, caracterizado pela implantação de barramentos, em áreas sem aptidões para tal, a introdução de pastagens exóticas no interior da Ilha para o sustento do agora já grande pastoreio, todas essas ações foram minando as águas do Javaé até chegar a situação atual, que causou o desaparecimento do braço direito do Araguaia e como consequência a extinção da maior ilha fluvial do mundo. Entretanto, para que possamos entender esse processo, torna-se necessário alargarmos um pouco o horizonte e compreendermos a sub- bacia hidrográfica do Araguaia como um todo.

A noção de que “rio novo” seja aquele que ainda esteja definindo o seu leito principal não é correta. Calcular a idade de um rio, tomando como base a quantidade de sedimentos que transporta, ou simplesmente atribuir o seu período de existência, associando-o a origem geológica dos terrenos percorridos por suas águas, não são parâmetros seguros, nem podem ser generalizados.

Meandros abandonados, ao invés de significarem indícios juvenis, podem significar indícios de longevidade. Devem ser vistos como capítulos da história evolutiva de um rio. O transporte e o depósito de sedimentos dependem das formações geológicas regionais e das feições geomorfológicas. Se a idade geológica dos terrenos fosse também o único padrão utilizado para determinar a idade de um rio causaria uma extrema confusão.

O rio Araguaia, percorre terrenos Paleozóicos com milhões de anos, como também percorre terrenos bem recentes, que ele próprio formou pelo transporte de sedimentos, que às vezes não atingem o tempo de um século.

O tempo de vida de um rio pode ser definido por vários fatores, como largura e extensão da bacia hidrográfica, pelos fenômenos geológicos ocorridos regionalmente, pela história evolutiva que possibilitou a formação das paisagens etc. Entretanto, nada disso é compreensível, se não tivermos em mente que um rio não cresce para baixo, mas para cima, sempre à montante.

Nesta perspectiva, o rio Araguaia pode ser considerado como um dos mais antigos da história hidrográfica moderna da América do Sul. Teve suas origens associadas aos fenômenos de ordem geológico, climático e geomorfológicos, que formaram as paisagens modernas do Planeta, ou seja, as paisagens que existem atualmente e que tiveram seu início no alvorecer da Era Cenozóica, por volta de 65 milhões de anos antes do presente. Esta idade, refere-se apenas a uma fração de tempo, em relação às primeiras paisagens da Terra que datam de 4 bilhões e 600 milhões de anos, mas, por outro lado é o mais antigo capitulo evolutivo da história recente do planeta Terra. 

A história do rio Araguaia está associada aos fenômenos que contribuíram para a consolidação do Sistema Biogeográfico do Cerrado. Os movimentos epirogenéticos ou subida lenta de grandes áreas que formaram o Planalto Central Brasileiro, mudaram a direção de alguns cursos d’água que hoje correm para o Araguaia e possibilitaram que o próprio rio Araguaia começasse uma trajetória que o levasse através do Tocantins/Amazonas até o oceano Atlântico.

O rio Araguaia nasce em território goiano, na borda norte de uma extensão de área sedimentar de idades que vem desde a Era Paleozóica. Área esta, denominada geologicamente de Bacia Sedimentar do Paraná, em cotas próximas a 900 m, na região do entorno do Parque Nacional das Emas, no Município de Mineiros.

No curso de seus primeiros 300 km, o rio Araguaia corre em rochas sedimentares, com seu vale bem encaixado, seguindo a estrutura dessas rochas, até atingir a planície do Bananal. A principal feição geológica nesse trecho é o Domo do Araguainha, estrutura de impacto de meteoro, que embora tenha seu núcleo em Mato Grosso na cidade de Araguainha, possui grande influencia na geomorfologia do curso superior do Araguaia.
No início da planície do Bananal, afloram rochas gnáissico-granítica e vulcano sedimentares de idade Pré-Cambriana, que formam, geologicamente falando, o embasamento ou substrato da grande bacia sedimentar do Paraná.

Desde sua nascente, até a planície do Bananal, o rio Araguaia desce de cotas de 900 m. para cotas próximas de 300 m, adquirindo feições de rio juvenil encaixado, passando, a partir da planície, a desenvolver seu percurso sinuosamente em meandros, evidenciando assim formas geomorfológicas com características de rio de curso normal. A partir da planície, também podem ser observados afloramentos de rochas Quaternárias de deposição recente em contato sobreposto às rochas Pré-Cambrianas.

A planície do Bananal é uma extensa fossa tectônica em atividade, que tem o seu fundo, já subsidio em aproximadamente 5.000 m. desde o período Cretáceo e continua neste processo dinâmico de movimento descente.

O comportamento dessa fossa tectônica termina na sua ponta norte, já no Estado do Tocantins, extremo norte da Ilha do Bananal. A partir deste ponto o rio adquire uma nova feição juvenil, encaixado em rochas estritamente Pré-Cambrianas até sua barra no rio Tocantins, junto à cidade de Marabá, na região conhecida como Bico do Papagaio.

O rio Araguaia é alimentado no seu curso superior por águas do aquífero Guarani, associado às formações geológicas Botucatu e Bauru, a partir do seu curso médio os aquíferos Urucuia e Bambuí são responsáveis maiores pela sua alimentação. A recarga desses aquíferos depende da água da chuva que cai nos chapadões e sua absorção pela vegetação nativa do cerrado. Todavia, esses aquíferos se encontram em situações melindrosas, porque não estão sendo recarregados o suficiente, para manter a perenidade e o fluxo d’água, para as nascentes, córregos e afluentes que alimentam o Araguaia.

Diante do exposto, pode-se colocar a seguinte indagação: Por que o rio Araguaia ainda não desapareceu? Felizmente conhecemos algumas respostas. A principal se refere aos níveis dos lençóis freáticos, que são aqueles depósitos acumulados durante os dois últimos períodos chuvosos. A água destes lençóis, em função da declividade do terreno escorre direto para a calha do grande rio. Estes lençóis ainda se encontram em condições razoáveis de preservação, tendo em vista as condições pluviométricas que se tem mantido constante e a condição dos ambientes ciliares, razoavelmente preservados.

Com a possibilidade de redução dos ambientes ciliares, pelas mudanças propostas para o Código Florestal Brasileiro, grande parte do lençol freático, será inevitavelmente afetada ao longo do rio, o que resultará numa diminuição drástica do seu volume de água, num processo crescente, até afetar a vida do próprio rio.

Diferentemente dos sólidos, a água não possui força de resistência, fluindo em qualquer tipo de declividade. O escoamento das águas pluviais depende da capacidade de infiltração. Se a água da chuva encontra um solo desprotegido, sem vegetação original, a infiltração diminui acentuadamente aumentando a velocidade do escoamento superficial, causando erosões e assoreamento.

Correntes fluviais recebem água de vários pontos, incluindo o fluxo laminar e chuva que cai diretamente nos canais. Entretanto, o fluxo de canal proveniente das chuvas, é um fenômeno efêmero. O que mantém a perenidade de um rio é a água fornecida pela umidade do solo e pelos aquíferos. Em ambos os casos a retirada da cobertura vegetal reduz a umidade do solo e a reserva de água nos aquíferos, fatores que afetam diretamente a vida de um rio.

O rio Araguaia em função de sua história evolutiva, e, também porque já atingiu seu estágio de equilíbrio, num tempo mais curto que possamos imaginar se transformará num ambiente desolador, triste e sem vida, se as modificações ambientais na sua sub-bacia continuarem crescendo no ritmo em que se encontra.

Infelizmente, o progresso em ciência não é fácil. Os argumentos que, finalmente, levam a ciência a avançar são muitas vezes desagradáveis. Nós pesquisadores, não temos ainda total domínio de tecnologias eficazes para recuperação de áreas com degradação acentuada. Portanto, se quisermos evitar um desastre ambiental e uma convulsão social futura, o melhor caminho é a preservação.

Voltando aos parâmetros específicos da Ilha, esta foi descoberta em julho de 1773 pelo sertanista José Pinto Fonseca. Inicialmente recebeu o nome de ilha de Santana. O nome Bananal surge em virtude da grande quantidade de pacova existente no seu interior. Trata-se de uma planta cujas folhas se assemelham a bananeira, originária da Índia.

A Ilha do Bananal sempre foi considerada um laboratório vivo, tanto do ponto de vista da geologia, como da vida silvestre e da antropologia. É reserva ambiental brasileira desde 1959 e considerada reserva da biosfera pela Unesco desde 1993. Na realidade dentro dos limites da antiga Ilha do Bananal existem 4 unidades de conservação. Na parte sul se encontra a Terra Indígena Parque do Araguaia, ao norte está o Parque Nacional do Araguaia, ao qual se sobrepõe a Terra Indígena Iñawébohona, a nordeste e a Terra Indígena Wyhyna/Iròdu Irana ao norte.

Entretanto a Ilha do Bananal, também foi vista como área estratégica para conquista dos Sertões de Dentro. E, nesta perspectiva Getúlio Vargas, então presidente do Brasil a visita em 1940 para sedimentar a partir de então o grandioso empreendimento denominado Marcha para o Oeste, com o objetivo de contactar índios arredios e estabelecer um plano para o povoamento do interior do Brasil.  As idéias de Vargas são retomadas por Juscelino Kubitschek, que chega a ordenar a construção de um hotel na Ilha, com talheres em prata e taças de cristal, para incrementar o turismo. E através da Fundação Brasil Central, Cria a Operação Bananal para com a ocupação da Ilha, também ocupar de forma intensiva o centro do Brasil. Todas essas iniciativas trouxeram heranças ruins para Ilha tais como: A criação de estradas e a introdução da criação do gado bovino.

A Ilha do Bananal desde tempos remotos foi o paraíso dos índios Karajá, cuja grande nação se divide em Javaé que habitam as margens do rio Javaé, dentro da ilha, e grupos menores como os Karajá de Aruanã e os Xambioá ambos habitantes do Vale do Araguaia. Mais recentemente outros grupos indígenas fazem incursões até a Ilha, como é o caso dos Tapirapé e dos Xerente. No final do século XX, um pequeno grupo de Avá-Canoeiro habita áreas do Parque Nacional do Araguaia, levados até aí por Apoena Meirelles.

Como já foi dito, a Ilha do Bananal sempre foi o paraíso dos Karajá e nesse ambiente esta Etnia criou toda uma cosmogênese recheada com elementos que a compõem, inclusive o mito das suas origens, que diz terem surgido das profundezas das águas. Imagino a força do impacto nas mentes dessas populações ao olharem para suas lagoas, seus rios interiores e o próprio Javaé e verem como também sentirem todos agonizando em meio a tanta penúria.



A ÚLTIMA PERGUNTA



   REALIDADE OU ILUSÃO?


Altair Sales Barbosa

Esta crônica é dedicada ao grande mestre Binômino da Costa Lima, da cidade de Jataí, o mais sábio e maior conhecedor do cerrado que tive a oportunidade de conhecer em toda minha vida de pesquisador. Certa vez, um outro sábio trovador, que vive na fronteira entre a caatinga e o cerrado, afirmou em um de seus poemas canções: “No cerrado já vi coisas do invisível e do mal-assombrado.” Refiro-me ao cantador escatológico Elomar Figueira Mello, que vive lá para as bandas do rio Gavião. Também ouvi de outros cantadores sensíveis aos elementos do meio ambiente, invisíveis aos olhos dos viventes normais, dentre estes, Mestre Arnaldo, que afirma em uma de suas canções: “Cada gota d’água é uma vida. A vida gota a gota se aflora.  Se não cuidar da gota d’água. A vida gota a gota se evapora.”

Atravessando o planalto de leste a oeste, um certo dia, direto do coração do cerrado, afirmei através de uma longa entrevista ao Jornal Opção, de Goiânia, que o cerrado já estava extinto na plenitude de sua biodiversidade. Esta afirmação era resultado de mais de 40 anos de pesquisas neste ambiente, considerado um sistema biogeográfico. A denominação deriva do aprendizado e das observações que fiz, juntamente com inúmeros pesquisadores que passaram pela minha vida, e me fizeram entender que essa matriz ambiental é  um sistema composto por diversos subsistemas e microambientes intimamente interligados, cuja modificação em qualquer um desses subsistemas,  e microambientes, provoca modificação no sistema como um todo, que engloba não só o quadro vegetacional, mas também todos os elementos que compõem um ecossistema, tanto natural como artificial. Quando me refiro aos ecossistemas naturais, o faço também ao oligotrofismo do solo, ao fogo, aos fenômenos atmosféricos de um modo geral, às formas de relevo, às águas superficiais e subterrâneas etc. Quando me refiro aos ecossistemas artificiais, estou salientando as cidades, as metrópoles, as rodovias, as ferrovias, aos campos de cultivo, as represas etc.

Todavia, num dando momento, um estalo clareou a minha mente e, tentando duvidar da minha própria afirmação, de que o cerrado se encontra extinto, saí em busca de respostas. Tanto nas teorias científicas, quanto nos modelos de economia, nas ações governamentais e seus recheados relatórios, como também nas atividades e comportamento das populações ditas conscientes.

Percorri centímetro por centímetro dos chapadões centrais da América do Sul e, com olhos aguçados reparava os detalhes, tanto os microscópicos, visíveis somente aos pesquisadores, quanto aos macroscópicos, visíveis por muitos. Conversei com professores indígenas, com ribeirinhos e outros habitantes tradicionais, bebendo dessa fonte, sempre na ânsia de encontrar uma resposta satisfatória, que pudesse contradizer minhas afirmações. Mergulhei na vasta literatura existente, com uma pergunta formulada: verdade ou ilusão?

Quisera eu demonstrar, que o argumento da temporalidade e da irreversibilidade que alicerçava minha argumentação estava equivocado e que por isso, o cerrado, enquanto pelo menos vegetação poderia perfeitamente se regenerar de onde havia se extinguido. Mas a descoberta das leis do não equilíbrio e dos rumos que tomaram a nova evolução da dinâmica clássica que vêm demonstrando o caráter imprevisível do desenvolvimento da ciência, fez renascer ou ressurgir com clareza o papel do tempo. A descoberta das leis do não equilíbrio me fez perceber, tanto em nível microscópico quanto no macroscópico, que a predição do futuro mistura determinismo e probabilidade e que a irreversibilidade só é destrutiva para os modelos de ações que a criaram.  Na seta de um tempo maior, ela pode trazer novas configurações e até novas ordens.

O ESPANTO COM A EXPANSÃO DA DEGRADAÇÃO

O período compreendido entre o final da segunda guerra mundial e 1970, já pode ser considerado o período em que a humanidade alcançou o apogeu, no sentido de transformar restos de guerra em insumos para produção.

Para que isto pudesse se transformar em realidade, uniu grande capital e houve investimento em massa na ciência. Na realidade, apenas em uma perna da ciência, aquela que busca a produção. Países foram eleitos como cobaias para as novas experiências científicas, que buscavam aumentar a produtividade, principalmente na área da agricultura e pecuária. Centros de excelência científica foram montados nesses países, incluindo México, Ceilão e Brasil e, com base na seleção de pessoal capacitado e muito investimento em infraestrutura os resultados salpicaram de imediato, feito milho de pipoca estourando na gordura quente.

Foram criadas tecnologias para transformar o solo oligotrófico, do cerrado, em solo altamente produtivo para muitas espécies vegetais exóticas. Com as sobras de insumos químicos, criaram venenos poderosos para combater as pragas, tanto vegetais como animais, que as novas plantas traziam. Surgiram herbicidas fungicidas e inseticidas eficazes.

E, no dizer do grande mestre Milton Santos, aqui no Brasil voltaram suas vistas para as terras abençoadas ou lugares iluminados. Onde estavam essas terras? Primeiramente, nos grandes chapadões e nos interflúvios do cerrado.

Escolhido o alvo inicial, era preciso o tiro certeiro. Então, imediatamente investiu-se na criação de uma tecnologia que colocasse por terra as plantas existentes nos locais. Os pesquisadores, criadores de tais insumos tecnológicos, não estudaram sistematicamente o ambiente, desconheciam as   funções ecológicas das plantas que ali estavam, tampouco buscaram um conhecimento mais profundo dos processos evolutivos do cerrado. Por isso, nem de longe imaginavam que aquelas ações, carentes de um conhecimento sistêmico, eram apenas o início de uma transformação ambiental sem precedentes, que paulatinamente colocou em desequilíbrio os elementos ambientais atmosféricos, litosféricos, hidrosféricos, bióticos e culturais, não só em termos de dinâmica, mas também de termodinâmica, cujo processo cumulativo em poucos anos já se manifesta globalmente.

Inicialmente, instalaram-se em formas de empresas agrícolas, depois em complexos agroindustriais. Os agentes nacionais aliados funcionaram e ainda funcionam como cabeça de pontes do grande complexo multinacional interessado nos monocultivos para exportação. Para produzir, passam a contar com a carteira creditícia do Banco do Brasil na obtenção de financiamento.

Em suma, o próprio capital externo emprestado ao governo brasileiro, que deveria ser utilizado para desenvolver a agropecuária de base nacional, retorna ao seu primitivo dono acrescido de juros, taxas e correção monetária ao ser direcionado para financiar parte dos investimentos locados na cadeia produtiva da grande empresa multinacional. O exemplo mais claro é o avanço da soja sobre os chapadões do cerrado em virtude do fácil manejo desses terrenos, fartura de água e das novas tecnologias desenvolvidas.

A partir da anexação do campo à economia de mercado, implementada de forma agressiva e acelerada, tem-se a destruição da unidade familiar camponesa pela grande empresa monocultora, na medida em que essa última, ao se instalar no território regional preferido, necessita cada vez mais de terras para incrementar a produção e expandir os monocultivos e criatórios, incentivos destinados ao abastecimento do mercado nacional e externo.
Consequentemente para os nacionais que persistem pelo trabalho em permanecer livres na própria terra, ocorre a contínua e progressiva redução dos espaços habitados e habitáveis.

Nos anos subsequentes, no meio rural e regional do cerrado, foram-se avolumando as situações conflitivas entre as forças produtivas dominantes e as relações de produção dominadas pelos pequenos e médios proprietários e trabalhadores rurais. As contradições surgidas entre agentes da velha estrutura fundiária nacional e os da nova estrutura emergente, aqueles que detêm a força do capital financeiro, tornaram-se cada vez mais antagônicas e desiguais, a ponto de romper, em questão de alguns anos, o lado mais fraco da cadeia produtiva. Desestabiliza-se a tradicional estrutura agrária brasileira, carente de suporte de capitais, de assistência técnica, e de políticas públicas que garantam empréstimos e preços competitivos aos seus produtos. 

De posse das novas tecnologias, os grandes proprietários rurais expandiram suas plantações para diversos subsistemas do cerrado, como o cerrado stricto sensu, cerradão, as veredas e os cerrados existentes nas mesetas dos interflúvios, que são aqueles espaços que separam as microbacias. E assim, dessa forma, alcançaram todo o cerrado, criando infraestrutura de suporte para o escoamento, vários pontos urbanos novos surgiram e as comunidades que viviam dos sistemas agrícolas tradicionais foram ou estão sendo totalmente desestruturadas.

Também a venda e a partilha de heranças ocasionaram acelerada fragmentação da propriedade do produtor nacional, acompanhada de rápida desestabilização do seu “modo de vida”. Em contrapartida, a compra induzida e efetivada a favor de empresários e empresas conduziu à concentração da propriedade da terra nas mãos dos magnatas do capital. Essas transações, com os seus respectivos desdobramentos econômicos e sociais, contribuíram para a perda da estabilidade do trabalhador rural brasileiro, juntamente com a sua família, nos moldes dos seus padrões de vivência campesina. A progressiva desestabilização do seu modus vivendi econômico, social e cultural terminou por expulsá-lo do meio onde vivia na condição de pequeno ou médio proprietário ou de trabalhador agregado como meeiro, posseiro, tarefeiro, diarista etc. Rapidamente, ocorreu a queda de sua vivência coletiva uno familiar, obrigando-o a ser um itinerante-peregrino, boia-fria, a perambular pelas estradas do Brasil à procura de terra e trabalho, terminando o seu percurso migratório como mão-de-obra explorada nas médias e grandes cidades brasileiras, lugares onde a vida é totalmente monetária, onde tudo se compra e tudo se paga. Nelas, na maioria das vezes, passa a viver como marginalizado social, na condição de subempregado ou de assalariado urbano ou de desempregado. Nessa última condição, faz parte do contingente de reserva de mão-de-obra barata a ser utilizada, no amanhã, no momento em que se fizer necessário. Muitos, para se manter no plano existencial, procuram se incorporar à economia informal, como única opção de sobrevivência no meio citadino.

Uma segunda faceta da matriz geográfica, tão preocupante como a espacial rural, é a espacial urbana que, nos dias atuais, assume índices alarmantes em termos de vivência sócio comunitária e que, sem sombra de dúvida, é consequência da desterritorialização provocada pela política agrária.

O universo urbano concentra a maior porcentagem dos habitantes. Há de se ter em conta a virada da população rural para urbana a partir da década de 1970, momento em que se dá a incorporação do campo à economia de mercado, com o advento do império do capital financeiro das grandes empresas monocultoras, recebendo efetivo apoio logístico das políticas públicas.

Ruy Moreira atribui a esse fenômeno o nome de desterritorialização, que segundo ele traz para o mundo atual a categoria dos SEM (Sem-Terra, Sem-Teto, Sem-Emprego, Sem-Documentos etc). Esse fenômeno acentua ainda mais a sensação e a condição de alienação.

Expulsos de suas terras pelos poderosos, através da compra e falsificação de títulos, os posseiros em cujas posses não legalizadas viviam no local durante várias gerações, vão buscar abrigos nos centros urbanos ou postos de serviços implantados ao longo dos sistemas viários. Nestes locais, os sem-terra se transformam também nos sem-teto. Nos centros urbanos, esta categoria social vai ocupar as periferias, as planícies de inundação dos rios, as encostas dos morros etc.  Nestes locais, as famílias vão estruturando suas vidas e seus espaços, caracterizados pela desorganização social e ambiental. E, assim, vão tocando em frente suas vidas, até que, num belo dia, um dos ciclos naturais provoca excesso de chuvas. Quando estas se precipitam nos morros, o solo é saturado e a água acumulada no lençol freático pode se armazenar numa rocha não porosa do substrato, formando um aquiclude que escorre com uma grande energia, levando tudo que se encontra à frente. Quando o aumento da pluviosidade enche os rios, estes transbordam e cobram de volta suas planícies de inundação, que por sua vez estão ocupadas pelos barracos. As consequências são destruição, mortes, doenças e a origem de uma situação social ainda mais desesperadora.

As comunidades desestruturadas não encontram também nos polos urbanos empregos estáveis, capazes de lhes permitirem uma melhor perspectiva de futuro.

Perdidos e carentes, qual cuitelinho sem néctar, num ambiente estranho são presas fáceis das propagandas enganosas, estimuladoras do consumismo. Impossibilitados economicamente de usufruírem dos bens propagados, muitos veem a razão da existência perder a própria racionalidade e mergulham na neurose da fuga através dos alucinógenos ou procuram ter, por meio de métodos que a sociedade organizada classifica de atos ilícitos.

A desagregação da família, a prostituição infantil e a perda do amor pela vida são apenas algumas das consequências ditadas pelo desespero.

Após esta minha viagem nada fantástica, só constatei o obvio: retiraram as plantas nativas, estão secando os aquíferos, os venenos jogados nas plantações estão levando à extinção os últimos representantes da fauna nativa, desde insetos, répteis, aves e mamíferos e ainda alienam as mentes dos inconscientes.

Tudo isto é sabido. É mais que conhecido. Porém indaguei? Será que o povo conhece os autores de tais atrocidades? Constatei que a grande maioria sabe, mas parece cega, surda, muda e alienada. Contudo, o fato que mais me entristeceu foi ver pesquisadores deturpando fatos, em nome de interesses próprios. Pior ainda, encontrei pesquisadores que, em pleno século 21, ainda não incluíram nos seus aprendizados a noção de que a Terra é um planeta dinâmico e sistêmico, e que a globalização sempre existiu, mas se manifesta hoje de forma mais evidente, em função do aumento descomunal das populações humanas e suas bugigangas tecnológicas. E eu que aprendi com os irmãos indígenas que a missão de quem acorda mais cedo é despertar toda a aldeia, descobri que estava completamente enganado. Percebi que, para alguns, a verdade que fala mais alto é a estabilidade financeira e a vaidade dos modismos.

Os responsáveis por essa situação são os detentores do grande capital e possuem uma grande teia de aliados, diluída em diversos escalões, cujos representantes estão distribuídos pelos vastos rincões do Brasil. Eles e seus comparsas têm muito mais do que necessitam. Estes, não só são os grandes causadores deste mal-estar, mas deveriam ser classificados como os exterminadores do futuro. Porém, nem engrossam as estatísticas da população carcerária, pois são protegidos por uma redoma magnética denominada impunidade.

Travestidos de ecologistas, hospedam o vírus da responsabilidade individual na cabeça dos fracos e inconscientes, que por sua vez saem disseminando ideias convenientes e paliativas, propondo a troca de sacolinhas plásticas por pano ou papel ou sensibilizando plateias, com suas historinhas ingênuas, como aquela do beija-flor, que sozinho tentava apagar o incêndio da floresta com uma gota de água no bico.

Os amantes da responsabilidade individual estão indo mais longe e com a bandeira descorada da educação ambiental conclamam: ‘Temos que salvar o planeta’. Como se este dependesse dos homens para sobreviver. Agindo dessa forma, querem confundir a cabeça dos abnegados, possivelmente para abafarem ou não entrarem em situações conspiradoras.

Fui tentar conhecer outras experiências. Saí em busca das iniciativas ecológicas, mas o que encontrei foram pessoas que se autodenominavam produtores de água, com projetos gigantescos patrocinados pelos interesses dos grandes produtores e até pessoas de boa de fé, mas com grande ingenuidade, que também se autodenominam produtores de água. São grupos pequenos, que com boa vontade procuraram replantar plantas exóticas nas antigas nascentes de pequenos córregos, ou isolam estas para evitar o pisoteio. Quando alguma água brota, mal sabem que aquela água, restrita ao lençol freático, não resiste a um período de maior estiagem.

As barragens dos grandes produtores de água são projetos imediatistas que desequilibram a vida e o meio físico, tanto a montante quanto a jusante dos cursos de água. Entre os dois grupos, o único elemento que compartilham em comum é a falta de conhecimento.

Continuei a viagem procurando conhecer outras iniciativas ditas sustentáveis ou ecológicas do cerrado e quase que como uma procissão de encomendadeiras de almas encontrei pessoas de bom coração, perdidas no inconsciente de que não têm culpa, mas se acham culpadas vivendo perambulando sem rumo, talvez buscando ações do que fazer.

Encontrei receitas ingênuas de reciclagem e, no final de cada estrada, sempre encontrava um calabouço de pessoas confusas, algumas tinham até idéias mas não encontravam o caminho. Foi então que resolvi conhecer os planos de alguns políticos. Minha descoberta foi assustadora: descobri que a maioria vive de mentiras e enganos e nunca na minha vida pude presenciar tanta hipocrisia.

Um dia, após muito tempo e, já cansado de tentar contradizer minha afirmação inicial, armei minha rede à sombra de duas árvores exóticas no leito de um riacho seco. A noite estava clara, mas não conseguia enxergar as estrelas e, após pensar muito, um conjunto de imagens  ilustrou a minha mente.

Então, pensando tristonho, percebi que a resposta à minha última pergunta estava na abóboda celeste. Foi quando percebi que estava balbuciando feito um andarilho solitário:  Se nos pés de araticuns não existem frutos, é porque mataram seus polinizadores. Se nossos rios estão secando, é porque estamos bebendo mais que a capacidade das fontes. E se nos campos não existem mais douradinhas e capins nativos é porque retiraram da bandeira do cerrado suas constelações vitais.