Em Homenagem a Semana
do Índio de 2017
Altair Sales Barbosa
Eu sou Gu-ê-Crig, único
sobrevivente de um povo que se extinguiu. Dentro da nossa cosmovisão
originária, povoa um personagem enigmático, maligno e demoníaco, ao qual meus
irmãos indígenas atribuem o nome de Jurupari.
As mulheres e crianças
das aldeias ficam arrepiadas quando seu nome é mencionado. Ninguém sabe como é,
ninguém conhece sua forma, porque ele nunca aparece, sempre atua através de
mensageiros, que tomam formas humanas e sempre chegam aos territórios dos meus
irmãos indígenas após um som estranho, imitando o ruído produzido por um
instrumento de sopro feito de cabaça doce.
Chegam travestidos de
inúmeros personagens e por onde passam deixam um rastro enorme de
desestruturação, mudam o rumo dos caminhos, criando dessa forma encruzilhadas
confusas e arriscadas. Intimidam os homens com artifícios perigosos qual choque
de poraquê, desrespeitam as mulheres, principalmente as mais jovens, e ainda
cometem um mal maior: espancam as crianças.
Os geraiseiros, que
tomaram emprestado um pouco da descendência indígena e convivem nos sertões dos Gerais, afirmam que Jurupari aparece nas noites de lua minguante, no alto das
copas de sabiú, planta típica daqueles Gerais. Nessas fases lunares, todas as
noites, seus secretários, súditos e bajuladores se reúnem para ouvi-lo. Depois,
tocam o tal instrumento de cabaça doce, dançam e desaparecem em várias
direções.
Ainda
contam esses geraiseiros ser esta a causa da compactação do solo debaixo dos sabiús; por isso,
nenhuma plantinha germina ali. Com toda certeza, Jurupari ficou sabendo dos
paraísos indígenas desde muitas luas, até os dias atuais. Seus mensageiros e
bajuladores ainda andam perseguindo meus irmãos. Não contentes com o que
fizeram, os atormentam de diversas outras maneiras.
Antes, porém, de lhes
mostrar a atual encruzilhada em que os seguidores de Jurupari fizeram enveredar
meus irmãos, vou relembrá-los um pouco da história que as nações indígenas
construíram nos sertões de dentro, desta terra que mais tarde seria conhecida
como Brasil.
Desde em abril de 1500,
quando as naus portuguesas chegaram ao litoral deste território, numa enseada
batizada com o nome de Baía de Todos os Santos, cerca de 25 gerações se
passaram.
Naquela época os meus
ancestrais indígenas já estavam na região dos grandes sertões há pelo menos 550
gerações. Quando ali chegaram ao centro do que hoje é o Brasil, uma sensação
estranha lhes tomou conta: pensaram ter descoberto o paraíso, tal a opulência
de recursos. As paisagens, com seus inúmeros rios de águas cristalinas,
repletos de peixes, com seus variados frutos comestíveis, com uma diversidade
enorme de animais e ainda com inúmeros abrigos naturais, os acolheram de forma
tão carinhosa que eles souberam retribuir a acolhida com uma grande pitada de
carinho cultural e harmonia.
Os ameríndios, como
também nos apelidaram, chegaram neste ambiente como nômades, caçadores,
pescadores e coletores das sobrevivências. As moradias eram os abrigos naturais
ou cavernas, locais onde enterravam e veneravam os mortos. Ali sempre
realizavam cerimônias, gravavam mensagens, ou simplesmente decoravam
artisticamente suas paredes.
Mais tarde, com as
diversas oportunidades que o ambiente oferecia, aprenderam a domesticar alguns
dos vegetais nativos, e dessa forma alguns dos meus ancestrais se transformaram
em horticultores.
Com isto, deixaram a moradia das cavernas e passaram a
colonizar os verdejantes vales dessa terra, onde se implantaram grandes
aldeões. Entretanto, mesmo vivendo em áreas abertas ou aldeias, nunca deixaram
de visitar os abrigos naturais ou cavernas, as antigas moradias, pois sempre
souberam e sabemos respeitar e reverenciar a memória dos antepassados.
O futuro chegou com a
rapidez de um relâmpago, com sua ideologia economicista, passou sobre nossa ancestralidade
como um rolo compressor. Todos foram e são estereotipados na forma de vários
preconceitos. Até o título de preguiçoso nos cunharam, simplesmente porque não
aceitávamos e não aceitamos até hoje, o regime da escravidão. Segmentos da
sociedade, os fiéis mensageiros de Jurupari procuraram marginalizar meus
antepassados de várias maneiras, incluindo o uso da força. E, por isso, muitos
tiveram que refugiar nos rincões mais escondidos e inacessíveis dessa terra.
Entretanto, a cultura e
sua identidade com a terra era tão forte que mesmo deixando somente rastros,
ficaram profundas heranças das inúmeras gerações na cultura do povo que foi se
formando e mais tarde recebeu o nome de brasileiro. E, se tiverem a honestidade
de olhar além das aparências, verão que não somente os brasileiros, mas muitos
outros povos incorporaram no seu viver cotidiano elementos que os indígenas lhes
legaram.
Assim aconteceu com o
feijão, por exemplo, tão apreciado como alimento desde o Brasil até o Texas.
Esse vegetal é uma planta da família leguminosae, que foi domesticada pelos
meus ancestrais da mesma forma que domesticaram o abacate, o abacaxi, o tomate,
o pimentão e a pimenta, plantas estas que foram muito disseminadas mundo afora.
Também domesticaram o
tabaco, planta da família solanaceae e o usavam em rituais para amenizar as
dores e situações de estresse, da mesma forma que meus irmãos do altiplano
andino usavam e ainda usam a coca para amenizar efeitos da altitude e evitar a
labirintite causada pela escassez de oxigênio. A sociedade que se formou, cujos
valores, modelados pela conhecida civilização ocidental de origem europeia e
arábica, aproveitou essas plantas e deu a elas outras formas de uso.
Os irmãos mexicanos
criaram o milho, cruzando dois tipos de gramíneas nativas. Este cereal irradiou
com tamanho força e sucesso entre todos os meus ancestrais das Américas que
hoje movimenta parte da economia mundial.
Algumas das bebidas,
cremes e doces que também meus ancestrais utilizavam, e alguns de seus
descendentes ainda utilizam, alcançaram mercados mundiais, como o guaraná,
bebida energética e refrescante, os cremes das palmeiras Açaí, Patauá, Bacaba,
Buriti... aos quais atribuíam o nome de sembereba. O creme de Cupuaçu, as
Castanhas do Pará, do Caju, do Baru, do Pequi, amendoins... fazem parte de uma
imensa listagem dessa contribuição.
Um dos nossos cremes
ficou tão famoso que o mundo até esquece sua origem indígena. Trata-se do creme
da amêndoa do cacaueiro, planta nativa das florestas equatoriais, cujo doce
hoje em dia é o mais apreciado da terra, isto porque os europeus se apossaram
dele e nele adicionaram o leite taurino, dando origem ao chocolate.
Os
indígenas ensinaram ao mundo a usar o látex da seringueira, planta nativa do
ecótono Amazônia e Cerrado. Hoje essa matéria-prima movimenta desde os corpos
das pessoas pelos solados dos sapatos até caminhões e aviões pelos pneus.
Também domesticaram
batatas, inhames e mais de trezentas raças de mandioca, que hoje é alimento
importante na vida de muita gente. Ensinaram a consumi-la cozida ou assada e
processá-la na forma de tapioca, polvilho, crueira, puba, beijus, e dela
fizeram o primeiro alimento desidratado da história da humanidade: a farinha.
Ensinaram aos novos
colonizadores a consumirem muitas plantas nativas para saciarem a fome e
curarem certas doenças. Assim, a sociedade aprendeu a consumir a mangaba, o
caju, o pequi... a beber o chá da douradinha e da congonha-do-campo e a curar a
malária usando a entrecasca do quinino.
Muitos outros segredos
vegetais conseguiram ensinar ao novo colonizador, que hoje os incorporou na
farmacopeia universal. Entretanto, muitos ainda estão guardados com o pouco que
restou dos indígenas, não por egoísmo, mas porque a sociedade que se formou
nunca se importou em conhecê-los para o benefício de toda a humanidade. Mas, os
mensageiros de Jurupari conseguem esses conhecimentos para uso comercial e
empresarial, na forma como a sociedade designa de biopirataria.
Este é o resumo da
minha e da nossa trajetória indígena. Não sei quantas línguas desapareceram.
Sei somente que sou o único sobrevivente de um grande massacre que ainda fala a
antiga língua que era do meu povo Akroá.
Vivo refugiado,
solitário nas escarpas de uma serra. Era jovem quando os mensageiros de
Jurupari chegaram à minha aldeia. Não pude suportar tamanha dor e saí correndo
feito um caititu espantado. Quando olhei para trás, ainda pude enxergar, por
entre os galhos, minha graciosa rede de buriti.
Os meus outros irmãos
indígenas, que hoje tentam viver em aldeias, devem ter organizado mais de uma
vez a sua sociedade e a sua cultura com os restos que salvaram do impacto,
readaptando-os de acordo com as novas condições e necessidades.
Tudo que meus irmãos
indígenas ensinaram aos mensageiros de Jurupari eram coisas verdadeiras e
úteis. Em contrapartida, quase tudo que nos falaram e prometeram eram
falsidades e mentiras. Digo quase tudo, porque sei que nem todos são
mensageiros de Jurupari.
Apenas uma verdade eu e
meus irmãos aprendemos com os mensageiros e que, por incrível coincidência, se
assemelha à história que meu povo contava sobre Jurupari e que pode ser
resumida numa única frase:
O Diabo, quando não
vem, manda o secretário.