sábado, 7 de setembro de 2019

O CENTENÁRIO DE JESCO VON PUTTKAMER



Altair Sales Barbosa

Nascido no Brasil em 1919, na cidade de Niterói, filho de descendência nobre alemã, ligado genealogicamente a Frederico II, Jesco deixou para a humanidade um patrimônio de valor inestimável.

Seu pai um nobre barão alemão, serviu-se na Namíbia, África, à época colônia alemã. Num desses deslocamentos do navio que transportava a tropa, recebeu um comunicado para atracar num porto seguro, durante a primeira guerra Mundial, para fugirem dos navios ingleses. Este porto era o Rio de Janeiro.

Por ali mesmo ele ficou, casou-se com uma dinamarquesa e tiveram três filhos, Jesco, o mais velho, Olavo e Helga, todos até então residentes no Rio. Tempos depois, Jesco e Olavo foram estudar na Alemanha, Olavo fazia agronomia e Jesco fazia o doutorado em química, na Universidade de Munique, quando estourou a segunda Guerra Mundial. Tendo em vista que tinham também a cidadania alemã, ambos foram procurados pelas forças alemãs, para se alistaram no exercito alemão. Mas se negaram, por serem também cidadãos brasileiros. Este fato os levou à prisão num campo de concentração. O irmão foi fuzilado e Jesco conseguiu sair e voltar ao Brasil, graças à intervenção do Consulado Sueco.

Neste período, o pai já havia se mudado para Goiás, adquirindo uma grande área de terras, que ia das cabeceiras do córrego Vaca Brava até o onde hoje se situam os setores Coimbra e Bueno, em Goiânia.
Com o fim da Segunda Guerra, Jesco foi nomeado embaixador do Brasil no Leste Europeu, ficando por lá até a instalação do Tribunal de Nuremberg.

De volta ao Brasil veio direto para Goiânia, sendo convidado pelo então governador Jeronimo Coimbra Bueno, para junto com Bernardo Sayao implantarem um Projeto de Colônias Agrícolas em Goiás, aproveitando a migração de técnicos e trabalhadores oriundos do leste europeu. Nesta perspectiva foram implantadas as Colônias de Ceres, Rialma, Montividiu, Uvá, dentre outras. Também tanto Jesco, como Sayão foram designados pelo governo de Goiás, para integrarem a equipe de Juscelino Kubstchek na construção de Brasília. Passada a inauguração da nova capital, Jesco integrou-se à  Fundação Brasil Central, iniciando dessa forma um trabalho singular de documentação dos Povos Indígenas do Brasil.

No início foi a Operação Bananal com Acary de Passos Oliveira, depois integra a equipe dos irmãos Leonardo, Cláudio e Orlando Villas Boas, realizando magnífico trabalho na região do Xingu. Mais tarde, passa a acompanhar Francisco Meirelles e seu filho Apoena Meirelles, em trabalhos de atração de povos isolados, noutras áreas mais a oeste do território brasileiro.

Jesco von Puttkamer inaugurou de forma sistemática a Antropologia Visual no Brasil, seu trabalho desenvolvido durante décadas, de convivência direta nas aldeias e frentes de atração com índios e sertanistas, registra o cotidiano de vários grupos indígenas, alguns dos quais extintos atualmente, enquanto cultura e enquanto população.

Os indígenas americanos, de modo geral, como também os brasileiros, contribuíram muito para a humanidade moderna. Essa contribuição vai desde alimentos, utensílios e remédios. Entretanto essa contribuição poderia ser muito maior se essas comunidades fossem melhor conhecidas. Dentro dessa perspectiva a obra do Dr. Jesco constitui um verdadeiro Patrimônio da Humanidade, um verdadeiro Patrimônio Universal, pois além de registrar parte desse saber, hoje já perdido, constitui uma chave importante para a auto compreensão da humanidade.

Conheci o Dr. Jesco em 1971, nas aldeias dos índios Nambikwara. Desde aquele ano, percebi que seu lugar era dentro de uma Universidade, instituição que reunia condições para abrigar seu grande acervo sonoro, visual e diários de campo, sobre índios do Brasil, sem sombra de dúvida, o maior acervo do mundo, sobre o tema.

Foram quase oito anos, tentando convencer os reitores da então Universidade Católica de Goiás, dessa necessidade. Ganhei por causa disso, um pouco de cabelos brancos, mas compensou. Hoje a Pontifícia Universidade Católica de Goiás se orgulha de possuir este patrimônio  e, eu me orgulho de ter sido escolhido pelo professor Jesco, para ser  o  curador desse acervo, que está muito bem cuidado e aproveitado pelos professores do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia–IGPA, Instituto este, que fundei em 1972.




FRANCISCA GERAIZEIRA



Altair Sales Barbosa

Lá prás bandas do Tabuleiro do Cotovelo, bem nas cabeceiras do riacho da Tamarana, município de Correntina, Bahia, existia um pequeno rancho coberto com palha de buriti, nele  vivia Francisca e sua mãe.

As paredes do rancho eram de barro e caiadas pela própria Francisca, que fabricava as tintas com tabatinga e goma de tapioca, para pintar usava uma brocha retirada da raiz de canela-de-ema, planta comum daqueles chapadões.

Francisca era esquia, alta, cor morena bem escura, quase negra, embora tivesse o cabelo liso e bem comprido. Trazia à cabeça uma rodilha de pano de algodão. Usava um vestido inteiriço que ela mesmo costurava à mão, feito de chita bem barata, que comprava ou ganhava nos comércios de retalhos, que sempre existiam nos pequenos povoados a oeste do Velho Chico. Era solteira, dizia que não queria se casar, por que tinha que cuidar da sua mãe. E, não dava conta de cuidar do marido e da mãe ao mesmo tempo. A mãe faleceu aos 104 anos de idade, foi apagando aos poucos, feito fogo de vela de cera, conhecida como rolo.

Depois da morte da mãe, Francisca usou luto durante toda existência, naquelas bandas do Tabuleiro, quando foi vista pela última vez, no final da era noventa.

As cabeceiras do riacho da Tamarana, não eram muito distante da cidade e afora a vizinhança do local, a casa de Francisca era sempre rodeada de visitantes, por que além de parteira, sempre apegada com São Raimundo, que dizia ser o protetor das parturientes, tinha o conhecimento da benzição contra quebranto, mau olhado, espinhela caída, picada de cobra, prisão de ventre, angústia do coração, descobria a sorte pelas linhas das mãos e de sobra, ainda ensinava alguns remédios para determinados males. Como por exemplo tirava o barro das casas das vespas triturava e misturava com água, depois passava este com auxílio de uma pena, nas inflamações de caxumba. Após essa operação, amarrava um pano branco de algodão, que abraçava o queixo e a cabeça da pessoa.  Era tiro e queda, no outro dia a caxumba sumia.

Sempre depois de cada benzição, Francisca ensinava aos que a procuravam uma oração que na década de 1970, tive a oportunidade de transcrever, tal qual ela pronunciava:


Dispidida, dispidida, dispidida de Belém,
Adeus meus irimão, até pro  ano que vem.
Dispidida, dispidida, dispidida de Belém,
Adeus meus irimão, até pro ano que vem.
Até pro ano que vem, se a morte não nos matá,
A morte da paixão de Cristo que queira nos ajudá.
Até pro ano  que vem, se a morte não nos matá,
A morte da paixão de Cristo que queira nos ajudá.
Si nóis for feliz, a morte não nos matá,
Se tiver algum agravo, vóis nos queira perdoá,
Perdão meus irimão para alcançar os perdão de Deus.
Si nóis for feliz, a morte não nos mata,
Se tiver algum agravo, vóis nos queira perdoá,
Perdão meus irimão para alcançar os perdão de Deus.


Francisca, não cobrava nada pelos serviços, mas um ou outro servo deixava algum adjutório, que podia ser uns trocados ou as vezes, mantimentos. Durante três vezes na semana, ela saía com um feixinho de lenha à cabeça, onde o vendia na cidade, para alimentar os fogões, pois naquela época só existia fogão à lenha.

Dia de sábado, que era o dia da feira na cidade, Francisca saía com uma grande gamela à cabeça e ia fazer seu comercio na feira.  Seus produtos eram variados, dependendo da época do ano, levava sabão de diquada, maxixe, que colhia nas cercas dos currais e, na época das águas, carregava prenhas de araticuns cascudo, cajuzinhos, puçás, e cagaita de vez. Dizia que cagaita madura provocava desinteira.  Com os trocados que recebia das vendas, comprava o necessário para casa, principalmente querosene, café em grãos, que ela mesma torrava e pilava, sal, rapadura, algum cambão de osso, toucinho e carne seca. As vezes também era agraciada com alguns mantimentos. É certo, que em sua casa não tinha fartura, mas também a penúria ficava distante.

E assim era a vida de Francisca, depois que a sua mãe morreu, vivia solitária vagando pelos gerais, sempre à cata de alguma coisa.

Um belo dia, as pessoas que sempre passavam pelas cabeceiras do Tamarana, começaram a sentir sua falta. Resolveram olhar dentro da casa, mas não a encontraram.
Ficaram dias vasculhando aqueles gerais. Nenhum sinal de Francisca. Logo a notícia se espalhou e povo daquela pequena cidade começou a criar histórias sobre o seu desaparecimento.

Uns falam que suçuarana a comeu e sumiu com os ossos para a toca, outros dizem que ela caminhou em direção ao sol poente, até desaparecer. Os mais afoitos dizem que Deus a transformou numa seriema e que ela ainda vive dessa forma, vagando pelos gerais e veredas, e que todas as manhãs gorjeia seu canto, para abençoar o povo daquele lugar.



sábado, 16 de fevereiro de 2019

UM BERÇÁRIO DE FÓSSEIS



Altair Sales Barbosa

Fóssil é uma palavra oriunda do latim, que atualmente pode ser entendida como todo resto orgânico, ou evidencia direta de sua existência, cuja idade limite é o inicio do Holoceno, ou seja, onze mil anos.

Os fósseis são objetos de estudo da paleontologia e possuem inúmeras variações, desde indivíduos minúsculos, como pólens, foraminíferos, ou estruturas como os estromatólitos que foram os primeiros fabricantes de oxigênio, até vertebrados gigantes.

Para que haja a fossilização torna-se necessário um conjunto de fatores que permite a ocorrência da diagênese, que é a silicificação ou mineralização das partes orgânicas. Mas, há outras formas de preservação sem que haja a diagênese. Por exemplo um inseto preso num âmbar, ou um ser orgânico preservado dentro de um bolsão de petróleo, são exemplos de fossilização natural sem que haja a diagênese. A mumificação de modo geral, não se trata de fossilização, mas sim de um habito cultural.

 Mudando um pouco a rota do raciocínio, nossa educação superior, se sustenta no fato de que não se fazem pesquisas, porque não tem laboratórios.  Ou, simplesmente acreditam que o pesquisador é aquele que possui um titulo de mestrado e ou doutorado e investem muitos recursos neste sentido. Não maioria dos casos o resultado é negativo. Isto porque para ser pesquisador, são necessários apenas três requisitos básicos: senso de observação, criatividade e vocação. Claro que o laboratório é um suporte de peso. Mas, como sempre digo se prendermos um pesquisador numa sala vazia, ele sempre acha algo para investigar, diferentemente de outros, que acabam em depressão. Se ao senso de observação, criatividade e vocação, se juntar a titulação, melhor ainda.

Vou citar um exemplo de laboratório vivo, que pode abrir a porta de vários horizontes. Quase todos os dias cruzo o rio Meia Ponte, em Goiânia e fico observando que em época de chuva abundante, sempre se formam pequenas lagoas marginais, geralmente afastada uns cem metros do leito principal do rio. Observo também que quando as lagoinhas pouco profundas têm água, há sempre um bando de garças se alimentando de pequenos peixes e outros animais. Também observo que as tardezinhas, um ou outro pescador solitário fica no local arriscando a sorte. Quando o período de chuva é mais prolongado ou mais abundante, vejo que as pequenas lagoas se mantêm perenes por mais tempo.

Passado algum tempo, vem o período da seca e imediatamente estas lagoas desaparecem deixando exposta à superfície um solo argiloso todo trincado. Quando se peneira ou escava esta terra, sempre se encontram preservados, esqueletos de peixes, anfíbios e até aves. Claro que este material, não se classifica como fósseis, mas representa a fauna que no local habitava até bem pouco tempo. E acima de tudo mostra como se dar o processo inicial de fossilização, servindo assim como um laboratório, para aqueles que estudam Geociências e Biologia.

Mas o local pode ir além dessas informações. E, se constituir num espaço onde inúmeras pesquisas possam ser desenvolvidas. Por exemplo, um professor juntamente com seus alunos pode aprofundar as escavações na área através de um corte estratigráfico pequeno 2x2m e, nesse local desenvolver suas aulas práticas. Utilizando metodologias trabalhadas pela paleontologia, arqueologia, geologia, geografia, etc.

Aprofundando mais a escavação além do superficial, os professores e alunos irão encontrar material mais antigo, além de entenderem os processos de sedimentação ocorridos na área. Irão encontrar ossos de peixes e outros animais, fossilizados ou não, compará-los com os restos atuais e poderem constatar se houve modificação faunística no período. Também poderão entender a dinâmica do rio, colherem sedimentos, datá-los e efetuarem análises polínicas,  com o objetivo de contatarem se houve mudança na vegetação no decorrer do tempo.

Dessa forma, salientando apenas alguns pontos de uma pequena lagoa marginal, pode-se demonstrar que um local com essas características, pode-se transformar num grande arquivo de pesquisas, que guarda informações importantíssimas de âmbito regional, mas que também pode demonstrar fenômenos globais.
Mas para que tudo isto ocorra, o professor deve ser valorizado em todos os aspectos, com incentivo, recursos e motivação. Isso porque a motivação é a mola mestra da criatividade e a falta de criatividade sem nenhuma sombra de dúvida, é a antessala da alienação.



CERRADO EXTINÇÃO E AGROTÓXICOS



Altair Sales Barbosa

Para que possamos entender o nível de degradação porque passa o cerrado, torna-se necessário a compreensão de como o território dos Chapadões Centrais da América do Sul, coberto por cerrado, vem sendo ocupado.

No transcurso dos últimos  anos, ocorreram profundas transformações econômicas, demográficas e socioculturais no conjunto do território nacional, que se acentuaram a partir da ascensão dos militares ao controle do Estado brasileiro, principalmente nas décadas subsequentes ao ano de 1964, com o advento do modelo de desenvolvimento capitalista neoliberal. Com segurança, pode-se afirmar ser a nova matriz ambiental e territorial resultante da convergência de três estratégias preestabelecidas pelo capitalismo internacional pós Segunda Grande Guerra Mundial, que impôs aos países considerados “subdesenvolvidos” uma Nova Divisão Internacional do Trabalho e, consequentemente do espaço geográfico. No caso do Brasil, o objetivo pretendido foi incorporar o campo à lógica do capital financeiro, oficial e privado internacional.

Inicialmente, no final da década de 1940, os ideólogos pragmáticos da Nova Divisão Internacional do Trabalho, colocaram em prática a denominada “Revolução Verde”, financiada por governos e instituições internacionais, a exemplo das fundações Ford e Rockefeller do Instituto Kellog e outras que passaram a utilizar como laboratórios experimentais os espaços regionais favoráveis de determinados países dependentes de capitais, ciência e tecnologia, com o intuito de avaliar o alcance dos resultados das pesquisas científicas e tecnológicas implementadas pós-guerra. México, Índia, Filipinas, Ceilão, entre outras nações, são exemplos de cobaias nacionais e territoriais utilizadas como área de teste das novas pesquisas agroquímicas e agrotécnicas, em termos de:

  • uso de sementes selecionadas e geneticamente modificadas;
  • aplicação de poderosos produtos agroveterinários destinados ao combate das pragas nas lavouras e pastagens pesticidas orgânicos e inorgânicos, inseticidas venenosos como o DDT, herbicidas, fungicidas, carrapaticidas etc, intencionalmente rotulados de “defensivos químicos”, e, sabiamente denominados pela sabedoria popular de agrotóxicos ou “ofensivos agrícolas” venenosos;
  • incorporação de novos adubos e fertilizantes, destinados à correção de solos portadores de carências minerais;
  • emprego de técnicas agrícolas mais eficientes de manejo dos solos e de utilização dos recursos hídricos;
  • utilização intensiva de equipamentos, máquinas, ferramentas e implementos agrícolas;
  • plantio de espécies vegetais exóticas para a formação de pastagens; agregação de melhoria na reprodução genética do plantel de gado vacum, via seleção de matrizes e inseminação artificial etc. 
No conjunto, todo o planejamento teorizado pelos ideólogos da Revolução Verde passa a ser colocado em prática com o fim de incorporar o campo à lógica do capital financeiro internacional, agregando capitais, ciência e tecnologia à grande produção agrícola e agropastoril e direcionando-a ao mercado global. Concomitantemente à Revolução Verde, no período de 1946-1950, o governo do Marechal Eurico Gaspar Dutra cumpria, à risca, o papel ideológico de apoio logístico à estratégia planejada ao escancarar as portas do País ao capital norte-americano, contribuindo dessa maneira para acentuar o grau de dependência política, econômico-financeira e cientifico-tecnológica do Estado brasileiro ao capitalismo internacional. No governo Vargas (1950-1954), eleito pelo voto popular, acirram-se as contradições entre as forças nacionalistas, que lutavam por um Brasil para os brasileiros, e, o lado contrário, que se posicionava contra a política do governo central e as forças populares que o apoiavam, O governo JK (1955-1960) lança o Plano de Metas, cinquenta anos em cinco, subsidiado pelo capital externo de empréstimo, centrado no desenvolvimento da infraestrutura viária, energética e industrial do território nacional, assim como da construção da nova capital geopolítica do Brasil. Subordinado à política de empréstimos concedidos pelos detentores do capital financeiro internacional para executar o seu ambicioso plano de governo, JK serviu aos interesses das empresas montadoras multinacionais, interessadas em viabilizar, na prática, a produção e comercialização de veículos, autopeças e acessórios, máquinas e ferramentas. Seu governo implementou o projeto rodoviário e praticamente congelou o ferroviário. No mandato seguinte (1960-1964), “em que foram eleitos, com expressiva votação popular, Jânio Quadros que renunciou após seis meses de administração pública e Joao Goulart, vice conduzido a presidência apos intensa campanha pela legalidade, as contradições entre forças civis e as civis e militares se agravaram, provocando em 1964 o golpe político-militar, com a ascensão e permanência dos militares, por mais de vinte anos, no poder político do Estado brasileiro, consolidando-se, definitivamente as condições objetivas favoráveis aos magnatas do capital financeiro internacional. Em troca de empréstimos obtidos, a sucessão de governantes brasileiros vem liberando às empresas “concessões” quanto ao uso do seu território.

Em 30 de novembro de 1964, o governo do marechal Humberto Castelo Branco, seguindo a lógica da estratégia estabelecida pelos detentores do capital financeiro internacional, sancionou a Lei n. 4.504, que implantou o “Estatuto da Terra” como modelo de reforma agrária a ser implementada em todo o território nacional, considerada de fundamental importância como suporte infraestrutural de apoio à futura regionalização do País. Com o crescimento da malha rodoviária nacional, criaram-se as condições favoráveis à implantação da grande empresa multinacional no meio rural brasileiro.

Inicialmente, instalaram-se em forma de empresas agrícolas; depois, de complexos agroindustriais. Os agentes nacionais contratados e direcionados à produção dos monocultivos para a exportação são, em sua grande maioria, produtores sulinos: gaúchos, paranaenses, paulistas, há também alguns agentes locais e muitos estrangeiros estimulados a plantarem soja, milho, algodão, arroz, feijão etc. para a grande empresa, buscam novas terras agricultáveis, detentoras de fortes perspectivas de lucros imediatos. Para produzirem, passam a contar com a carteira creditícia do Banco do Brasil, para a obtenção de financiamentos.

Em suma, o próprio capital externo emprestado ao governo brasileiro, que deveria ser utilizado para desenvolver a agropecuária de base nacional, retorna ao seu primitivo dono, acrescido de juros, taxas e correção monetária, ao ser direcionado para financiar parte dos investimentos locados na cadeia produtiva da grande empresa multinacional, instalada nas regiões preferenciais do País, ou, no dizer de Milton Santos, nos “lugares luminosos”.

O exemplo mais claro é o avanço da soja sobre os Chapadões do Cerrado, em virtude de seu fácil manejo e fartura de água.

A partir da anexação do campo à economia de mercado, implementada de forma agressiva e acelerada, tem-se a destruição da unidade familiar camponesa pela grande empresa monocultora, na medida em que essa última, ao se instalar no território regional preferido, necessita cada vez mais de terras para incrementar a produção e expandir os monocultivos e criatórios, intensivos destinados ao abastecimento do mercado nacional e externo. Consequentemente, para os nacionais que persistem pelo trabalho em permanecer livres na própria terra, ocorre a contínua e progressiva redução dos espaços habitados e habitáveis.

Nos anos subsequentes, no meio rural e regional do cerrado, foram-se avolumando as situações conflitivas entre as forças produtivas dominantes e as relações de produção dominadas pequenos e médios proprietários e trabalhadores rurais. As contradições surgidas entre agentes da velha estrutura fundiária nacional e os da nova estrutura emergente, aqueles que detêm a força do capital financeiro, tornaram-se cada vez mais antagônicas e desiguais, a ponto de romper, em questão de alguns anos, o lado mais fraco da cadeia produtiva. Desestabiliza- se a tradicional estrutura agrária brasileira, carente de suporte de capitais, de assistência técnica, e de política pública que garanta empréstimos e preços competitivos aos seus produtos. Agrava esse quadro uma situação de maior flexibilidade na cobrança de dívidas bancárias contraídas.

Também a venda e a partilha de heranças ocasionaram acelerada fragmentação da propriedade do produtor nacional, acompanhada de rápida desestabilização do seu “modo de vida”. Em contrapartida, a compra induzida e efetivada a favor de empresários e empresas conduziu à concentração da propriedade da terra nas mãos dos magnatas do capital. Essas transações, com os seus respectivos desdobramentos econômicos e sociais, contribuíram para a perda da estabilidade do trabalhador rural brasileiro, juntamente com a sua família, nos moldes dos seus padrões de vivência campesina. A progressiva desestabilização do seu modus vivendi econômico, social e cultural terminou por expulsá-lo do meio onde vivia na condição de pequeno ou médio proprietário ou de trabalhador agregado como meeiro, posseiro, tarefeiro, diarista etc. Rapidamente, ocorreu a queda de sua vivência coletiva uno familiar, obrigando-o a ser um itinerante-peregrino, boia-fria, a perambular  pelas estradas do Brasil a procura de terra e trabalho, terminando o seu percurso migratório como mão-de-obra explorada nas médias e grandes cidades brasileiras, lugares onde a vida é totalmente monetária, onde tudo se compra e tudo se paga. Nelas, na maioria das vezes, passa a viver como marginalizado social, na condição de subempregado ou de assalariado urbano ou de desempregado. Nessa última condição, faz parte do contingente de reserva de mão-de-obra barata a ser utilizada, no amanhã, no momento em que se fizer necessário. Muitos, para se manter no plano existencial, procuram se incorporar à economia informal, como única opção de sobrevivência no meio citadino.

De 1980 a 1990, dá-se, definitivamente, a incorporação do campo à economia de mercado. Agora, o novo modelo de desenvolvimento econômico capitalista, neoliberal e flexível, no contexto da economia globalizada em contínua substituição ao modelo taylorista-fordista, capitaliza a favor dos grandes complexos agrícolas e agroindustriais que operam os denominados agronegócios. São empresas de grande porte que passam a operar em todos os ramos da cadeia produtiva e utilizam-se de todas as redes disponíveis viabilizadas pelos avanços do “meio técnico/científico informacional”. São cadeias fundamentais e necessárias à viabilização de todas as fases do processo de capitalização ampliada do capital, compreendendo produção, industrialização e comercialização. Essa integração produtiva totalizante que parte do lócus regional atinge, pela variável mercado, praticamente, todos os lugares da Terra, por meio de imagens de satélite e da linguagem virtual dos computadores, pela qual a informação manipulada e transmitida viabiliza, em fração de segundo, as relações de produção e trabalho e as transações comerciais.

No presente, no marco do território regionalizado, o empreendimento empresarial agrícola ou agroindustrial é plenamente favorecido por todo um conjunto de condições concretas, objetivas e subjetivas, que visam alcançar interesses pragmáticos ditados pelo lema “produzir a baixo custo e vender onde a demanda é melhor em termos de lucratividade”. Entre os fatores favoráveis ao sucesso da empresa, relacionam-se: a política oficial do governo brasileiro de subordinação ao capital financeiro internacional, oficial e privado, motivada pela dependência dos estados hegemónicos e das empresas privadas, detentores de capitais, ciência e tecnologia. Em troca de capitais de empréstimo o governo brasileiro permite, via “concessões”, que as empresas multinacionais se instalem em determinadas “superfícies favoráveis” do território nacional e passem a utilizá-las, a seu bel-prazer, sem nenhum respeito pelas “vocações” da terra, isto é, pelas condições naturais do meio ambiente e as comunidades nelas inseridas, vocações culturais.

O saldo negativo dessa política oficial de livre expansão da fronteira agrícola no Brasil são os sucessivos impactos ambientais, sociais e culturais de toda ordem que a natureza e a sociedade brasileira vêm sofrendo. Sob essa prática de tratamento aético da natureza tratada como objeto de uso e desuso, descartável, mencionam-se: 
  • a fragmentação da estrutura geológico-geomorfológica como embasamento físico do território;
  • a degradação e a destruição da cobertura vegetal como protetora do solo e do subsolo;
  • a redução da biodiversidade animal, vegetal e genética em espécies, nichos e ecossistemas, como reprodutora da vida;
  • o assoreamento e a diminuição da rede de drenagem de superfície e subterrânea, das cabeceiras dos cursos d’água, das veredas, berço das águas, com suas matas ciliares ripárias, seus buritizais e buritiranas e suas vegetações campestres;
  • a destruição das vocações culturais centenárias das comunidades interioranas;
  • a destruição de monumentos naturais e sítios arqueológicos milenares. 
Enfim, grande parte do patrimônio natural, biótico e cultural são destruídos ante a voracidade e cobiça dos expropriadores da natureza.

Infelizmente, governantes e governados plasmados na ética e moral capitalista, por adesão ao modelo econômico esposado pelo capitalismo flexível, neoliberal, ou, por desconhecimento do território regional-nacional, em termos de sustentabilidade natural, biótica e cultural, batem palmas às supersafras “salvadoras” e aos êxitos alcançados no cenário nacional pelas lideranças produtivas dos agronegócios, como se a conquista econômica fosse a melhor solução para os problemas econômicos, sociais e culturais da nação brasileira. Exemplo concreto é o fato de o Brasil ter assumido a vanguarda no ranking mundial da comercialização da soja.

O discurso e as ações louvam e eternizam o modelo de desenvolvimento econômico capitalista neoliberal, justificado por gerar mais progresso, mais empregos, melhor padrão de vida social para o povo brasileiro. O tempo  passou  e esta situação, não se concretizou.

Uma segunda faceta da matriz geográfica, tão preocupante como a espacial rural, é a espacial urbana que, nos dias atuais, assume índices alarmantes em termos de vivência socio comunitária e que, sem sombra de dúvida é consequência da desterritorialização provocada pela política agrária.

O universo urbano concentra a maior porcentagem dos habitantes. Há de se ter em conta a virada da população rural para urbana a partir da década de 1970, momento em que se dá a incorporação do campo à economia de mercado, com o advento do império do capital financeiro das grandes empresas monocultoras, recebendo efetivo apoio logístico das políticas públicas.

Por fim gostaria de comentar que:
  • O Cerrado dos Chapadões Centrais do Brasil, se nos apresenta como um Sistema Biogeográfico, que envolve vários subsistemas. Esses subsistemas se diferenciam por solos, fisionomia vegetal, quantidade de água nos lençóis, comunidades animais etc, qualquer modificação nos elementos dos subsistemas, provoca modificações nos Sistema como um todo.
  • O Cerrado é uma das matrizes ambientais mais antigas da história recente do Planeta Terra, que tem seu início no Cenozoico. Isto significa que este ambiente já chegou ao seu clímax evolutivo, ou seja, uma vez degradado, não se recupera jamais na plenitude de sua biodiversidade.
  • A maior parte das plantas do cerrado tem um desenvolvimento lento, algumas levam séculos para atingirem a maior idade, fato que torna quase impossível um trabalho de recomposição vegetal. Sem mencionar que estas plantas estão condicionadas a um tipo de solo oligotrófico com balanço hídrico específico, fato hoje difícil de ser encontrado em equilíbrio no Cerrado. 
Não se mede a degradação ambiental apenas pela ocorrência de uma ou outra planta. Há de se considerar comunidades, tanto vegetais como animais, incluindo insetos polinizadores, água etc, tudo isto já não existe no cerrado de forma continua. O que há são fragmentos que não representam 10% da área total.
Muitos subsistemas do cerrado já foram destruídos por completo, como é o caso do cerradão associado ao Arenito Bauru, às campinas do oeste de Minas e Bahia, associadas ao Arenito Urucuia e assim por diante, o rosário de exemplos é extenso.