sábado, 24 de setembro de 2016

MEMORIAL SERRA DA MESA



O Rio Que Passa Fica


Sinvaline Pinheiro e Jean Marconi



AINDA É TEMPO

A fumaça sobe, invade o céu sob o som da máquina que desmata, mata o cerrado...
A cana de açúcar é útil e a soja é rentável, alguém disse...
Mas a cana de açúcar, a soja levam, devastam o cerrado...
A paisagem fica nua, triste, sem graça...
Na imensidão plana sem árvores uma semente teima em germinar: o cerrado quer renascer...
Em meio as mãos que cultivam, os braços que lutam, os olhos que choram, onde está o cerrado?
As mãos postas aos céus, os homens oram, rezam... mas para quê?
Não adianta a prece se desmatam, matam a vida.
Mas a esperança existe e insiste...
Ainda nascerá um novo cerrado, mesmo que ainda longe, numa distância imedível...
Num sonho que já não será o mesmo.
A sementinha empurra, sobe, quer ser árvore e mostrar que a vida renasce...
Que ainda é tempo de plantar e que acima de tudo:
Ainda é tempo de

PRESERVAR...

Sinvaline



Uma das maiores autoridades sobre meio ambiente, professor ALTAIR SALES BARBOSA, foi o idealizador do Memorial Serra da Mesa na cidade de Uruaçu em Goiás. Frente ao Lago Serra da Mesa um dos maiores reservatórios artificiais de água do mundo, tem o objetivo de resgatar as tradições culturais dos povos tradicionais e sobretudo conscientizar quanto a preservação do meio ambiente, da Terra, do Cerrado, da Vida.

O Memorial tem sido o ponto de encontro dos povos quilombolas, indígenas, ciganos, comunidades ribeirinhas e dos estudantes. Funciona com pequeno apoio da Prefeitura de Uruaçu, convenio com algumas universidades e muito mais do trabalho voluntario.

Com 11 espaços temáticos o visitante faz uma viagem no tempo desde a era geológica até os dias atuais. Nos eventos do calendário e possível a convivência direta com povos indígenas, quilombolas e ciganos, aprendendo com eles a cultura tradicional do alimento, da vestimenta, da pintura corporal, dos cantos e da cura.


Nosso propósito é que o Memorial seja um ponto do Slow Food, pois ali resgatamos comidas desaparecidas há décadas. Essa parceria mais direta fortalece o Memorial e ele poderá cumprir de forma plena os seus objetivos, mudando os hábitos através do conhecimento e assim contribuindo para a formação de um mundo melhor.



Citamos aqui um pouco da fala do nosso Mestre professor Altair Sales Barbosa

As plantas do cerrado são de crescimento muito lento. Quando Pedro Alvares Cabral chegou ao Brasil, os Buritis que vemos hoje estavam nascendo. Eles demoram 500 anos para ter de 25 a 30 metros. Também por isso, o dano ao bioma é irreversível dos ambientes recentes do planeta Terra, o Cerrado é o mais antigo. A história recente da Terra começou há 70 milhões de anos, quando a vida foi extinta em mais de 99%. A partir de então, o planeta começou a se refazer novamente. Os primeiros sinais de vida, principalmente de vegetação, que ressurgem na Terra se deram no que hoje constitui o Cerrado. Portanto, vivemos aqui no local onde houve as formas de ambiente mais antigas da história recente do planeta, principalmente se levarmos em consideração as formações vegetais. No mínimo, o Cerrado começou há 65 milhões de anos e se concretizou há 40 milhões de anos.

O Cerrado é um tipo de ambiente em que vários elementos vivem intimamente interligados uns aos outros. A vegetação depende do solo, que é oligotrófico - com nível muito baixo de nutrientes-; o solo depende de um tipo de clima especial, que é o tropical subúmido com duas estações, uma seca e outra chuvosa. Vários outros fatores, incluindo o fogo, influenciaram na formação do bioma - o fogo é um elemento extremamente importante porque é ele que quebra a dormência da maioria das plantas com sementes que existem no Cerrado.

Assim, é um ambiente que depende de vários elementos. Isso significa que já chegou em seu clímax evolutivo. Ou seja, uma vez degradado não vai mais se recuperar na plenitude de sua biodiversidade. Por isso é que falamos que o Cerrado é uma matriz ambiental que já se encontra em vias de extinção.

O Cerrado foi incluído na política de expansão econômica brasileira como fronteira de expansão. E uma área fácil de trabalhar, em um planalto, sem grandes modificações geomorfológicas e com estações bem definidas. Junte-se a isso toda a tecnologia que hoje há para correção do solo. E possível tirar a acidez do solo utilizando o calcário; aumentar a fertilidade, usando adubos. Com isso, altera-se a qualidade do solo, mas se afetam os Lençóis subterrâneos e, sem a vegetação nativa, a água não pode mais infiltrar na terra.

Mas o mais importante de tudo isso é que as águas que brotam do Cerrado, são as mesmas águas que alimentam as grandes bacias do continente Sul-americano. É daqui que saem as nascentes da maioria dessas bacias. Esses rios todos nascem de aquíferos. Um aquífero tem sua área de recarga e sua área de descarga. Ao local onde ele brota, formando uma nascente, chamamos de área de descarga. Como ele se recarrega? Nas partes planas, com a água das chuvas, que é absorvida pela vegetação nativa do Cerrado. Essa vegetação tem plantas que ficam com um terço de sua estrutura exposta, acima do solo, e dois terços abaixo da superfície do solo. Isso evidencia um sistema radicular -de raízes- extremamente complexo. Assim, quando a chuva cai, esse sistema radicular absorve a água e alimenta o lençol freático, que vai alimentar o lençol artesiano, que são os aquíferos.

Quando se retira a vegetação o nativa dos chapadões, trocando-a por outro tipo, alterou-se o ambiente. Ocorre que essa vegetação introduzida - por exemplo, a soja ou o algodão ou qualquer outro tipo de cultura para a produção de grãos - tem uma raiz extremamente superficial. Então, quando as chuvas caem, a água não infiltra como deveria. Com o passar dos tempos, o nível dos Lençóis vai diminuindo, afetando o nível dos aquíferos, que fica menor a cada ano.
Em média, dez pequenos rios do Cerrado desaparecem a cada ano. Esses riozinhos são alimentadores de rios maiores, que, por causa disso, também têm sua vazão diminuída e não alimentam reservatórios e outros rios, de que são afluentes. Assim, o rio que forma a bacia também vê seu volume diminuindo, já que não é abastecido de forma suficiente. Com o passar do tempo, as águas vão desaparecendo da área do Cerrado. A água, então, é outro elemento importante do bioma que vai se extinguindo.

Hoje, usa-se ainda a agricultura irrigada porque há uma pequena reserva nos aquíferos. Mas, daqui a cinco nos, não haverá mais essa pequena reserva. Estamos colhendo os frutos da ocupação desenfreada que o agronegócio impôs ao Cerrado a partir dos anos 1970: entraram nas áreas de recarga dos aquíferos e, quando vêm as chuvas, as águas não conseguem infiltrar como antes e, como consequência, o nível desses aquíferos vai caindo a cada ano. Vai chegar um tempo, não muito distante, em que não haverá mais água para alimentar os rios. Então, esses rios vão desaparecer. Por isso, falamos que o Cerrado e um ambiente em extinção: não existem mais comunidades vegetais de formas intactas; não existem mais comunidades de animais - grande parte da fauna já foi extinta ou está em processo de extinção; os insetos e animais polinizadores já foram, na maioria, extintos também; por consequência, as plantas não dão mais frutos por não serem polinizadas, o que as leva à extinção também.

Por fim, a água, fator primordial para o equilibro de todo esse ecossistema, está em menor quantidade a cada ano.
Assim como ocorre no Cantareira, outros reservatórios espalhados pela região do Cerrado - Sobradinho, Serra da Mesa e outros - vão passar pelo mesmo problema. Isso porque o processo de sedimentação no fundo do lago de um reservatório é um processo lento. Os sedimentos vão formando argila, que e uma rocha impermeável. Então, a água daquele lago não vai alimentar os aquíferos. Mesmo tendo muita quantidade de água superficial, ela não consegue penetrar no solo para alimentar os aquíferos. Se não for usada no consumo, ela vai simplesmente evaporar e vai cair em outro lugar, levada pelas correntes aéreas. Isso é outro motivo pelo qual os aquíferos não conseguem recuperar seu nível, porque não recebem água.


Até meados dos anos 1950, tínhamos o Cerrado praticamente intacto no Centro-Oeste brasileiro. Desde então, com a implantação de infraestrutura viária básica, com a construção de grandes cidades, como Brasília, criou-se um conjunto que modificou radicalmente o ambiente. A partir de 1970, quando as grandes multinacionais da agroindústria se apossaram dos ambientes do Cerrado para grandes monoculturas, ai começa o processo de finalização desse bioma. Ou seja, o homem sendo responsável pelo fim desse ambiente que é precioso para a história do planeta Terra.

De todas as formas de vegetação que existem, o Cerrado é a que mais limpa a atmosfera. Isso ocorre porque ele se alimenta basicamente do gás carbônico que está no ar, porque seu solo e oligotrófico.
Nós vivemos em meio a mais diversificada flora do planeta. O Cerrado contém a maior biodiversidade florística. Isso não está na Amazônia, nem na Mata Atlântica, nem em uma savana africana ou em uma savana australiana. Nem qualquer outro ambiente da Terra. São 12.365 plantas catalogadas no Cerrado. Só as que conhecemos. A cada expedição que fazemos, cada vez que vamos a campo, pelo menos 50 novas espécies são descobertas. Dessas 12.365 plantas conhecidas, somos capazes de multiplicar em viveiro apenas 180. Isso é cerca de 1,5% do total, quase nada em relação a esse universo. E só conseguimos fazer mudas de plantas arbóreas.

Para as demais, que são extremamente importantes para o equilíbrio ecológico, para o sequestro de carbono e para a captação de água, não temos tecnologia para fazer mudas. Por exemplo, o capim-barba-de-bode, a canela-de-ema, a arnica, o tucum-rasteiro, esses dois últimos com raízes extremamente complexas. Se tirarmos um tucum-rasteiro, que está no máximo 40 centímetros acima do nível do solo, e olharmos seu tronco, vamos encontrar milhares ou até milhões de raízes grudados naquele tronco. Se tirarmos um pedaço pequeno dessas raízes e levarmos ao microscópio, veremos centenas de radículas que saem delas. Uma pequena plantinha com um sistema radicular extremamente complexo, que retém a água e alimenta os diversos ambientes do Cerrado. É algo que não se consegue reproduzir em viveiro, porque não há tecnologia. O que conseguimos e em relação a algumas plantas arbóreas.

Outro aspecto que indica que o Cerrado já entrou em vias de extinção e que as plantas do Cerrado são de crescimento muito lento. Uma canela-de-ema atinge a idade adulta com mil anos de idade. O capim-barba-de-bode fica adulto com 600 anos. Um buriti atinge 30 metros de altura com 500 anos.
Hoje vejo muitos profissionais, principalmente arquitetos, falando em mobilidade urbana. Falam em construir monotrilhos, linhas especificas para ônibus, corredores para bicicletas, mas ninguém toca na ferida: o problema não está ali, mas na desestruturação do homem do campo. Quanto mais se desestrutura o campo, mais pessoas vêm para a cidade, que não consegue absorve-las, por mais que se implantem linhas novas, estações e bicicletários. O problema está no drama do campo, não na cidade.

A extinção do Cerrado envolve também a extinção dos grandes mananciais de água do Brasil, porque as grandes bacias hidrográficas "brotam" do Cerrado. O Rio São Francisco é uma consequência do Cerrado: ele nasce em área de Cerrado e é alimentado, em sua margem esquerda, por afluentes do Cerrado: Rio Preto, que nasce em Formosa (GO); Rio Paracatu (MG); Rio Carinhanha, no Oeste da Bahia; Rio Formoso, que nasce no Jalapão (TO) e corre para o São Francisco. Se há a degradação do Cerrado, não há rios para alimentar o São Francisco.

Até bem pouco tempo tínhamos duas humanidades: o homem-de-neanderthal, o Homo sapiens neanderthalensis; e o Homo-sapiens-sapiens. Hoje podemos falar também em duas humanidades: uma humanidade subdesenvolvida, tentando soerguer em meio a um lodo movediço; e outra humanidade, que nada na opulência. A questão é que, se essa situação persistir, brevemente teremos a pós e a sub- humanidade.

Nós, como educadores, deveríamos pensar mais nisso - e eu penso: talvez ainda seja tempo de salvar o que ainda resta, mas se não dermos uma guinada muito violenta não terá como fazer mais nada. E preciso haver real mudança de hábitos e mudar a forma de observar os bens patrimoniais do planeta e da nossa região. A água tinha de ser uma questão de segurança nacional. A vegetação nativa, da mesma forma. Os bens naturais teriam de ser tratados assim também, porque deles depende o bem-estar das futuras gerações. Mas isso só se consegue com investimento muito alto em educação, mudando mentalidade de educadores. As escolas tem de trabalhar a consciência e não apenas o conhecimento. Uma coisa e conhecer o problema; outra, é ter consciência do problema. A consciência exige um passo a mais. Exige atitude revolucionária e radical. Ou mudamos radicalmente ou plantaremos um futuro cada vez pior para as gerações que virão.

Então nesse Cerrado estão as plantas medicinais, as frutas, as flores, o mel, os animais silvestres, a água. Os indígenas e a nossa vida. O professor Altair construiu o Memorial Serra da Mesa para que seja o local do apelo direto à preservação dessa grande riqueza.

Contamos com Slow Food para continuar esse trabalho.





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