sábado, 30 de julho de 2016

CERRADO BRASILEIRO: DA GRANDE BIODIVERSIDADE AOS SINAIS DO APOCALIPSE

Altair Sales Barbosa

Numerosos estudos referentes ao sequestro e fixação de dióxido de carbono por formas vegetacionais demonstram a importância e a relação direta que o Cerrado tem exercido ao longo da sua história evolutiva para o equilíbrio da vida no planeta Terra. No mesmo sentido, estudos de Geotecnia apontam o valor dos lençóis freáticos, artesianos e aquíferos, oriundos do Cerrado, para a perenidade das principais bacias hidrográficas da América do Sul.

Entretanto, a ocupação humana desordenada, decorrente de programas de políticas públicas equivocadas, que colocam o Cerrado como grande fronteira de expansão agrícola e econômica, tem criado um panorama assustador, de dimensões nunca observadas na História da Humanidade.

Nesse contexto, o Cerrado foi e é recortado por inúmeras estradas, rios são represados, montanhas aplainadas, vegetação derrubada, rompendo o equilíbrio da cadeia alimentar e, como consequência, animais são levados a extinção, comunidades rurais desestruturadas de forma avassaladora e crescimento rápido e desordenado dos polos urbanos.


Geralmente, os responsáveis pela implantação de políticas públicas não levam em consideração o “tempo da natureza” em seus planejamentos; tampouco consideram a dinâmica da Ecologia do Cerrado. Por esta razão são incapazes de entender aspectos da sua história evolutiva, cujo tempo é medido pelos padrões estabelecidos pela Geologia, e calculado em milhares, milhões e até bilhões de anos antes do tempo presente.

Se este cenário continuar persistindo, dentro de um tempo mais curto que possamos imaginar poderemos presenciar um quadro desolador, conforme nos apontam dados e observações atuais. 

No Sistema Biogeográfico do Cerrado, o lençol freático se forma diferentemente nos diversos subsistemas.

Nos Subsistemas de Campos, também conhecidos pelas denominações de Chapadões ou Campinas Tabulares, o lençol freático é profundo e constitui-se no grande alimentador dos aquíferos. E, dependendo da natureza do solo, a água das chuvas que é infiltrada se desloca de forma rápida em direção aos aquíferos. Nos chapadões de origem lacustre, a infiltração é mais lenta e depende exclusivamente das formas vegetacionais nativas.

Nos Subsistemas de Cerrado ‘stricto sensu’ e Cerradão, situados nos interflúvios, a água da chuva, que se infiltra no solo, forma um lençol freático rico e abundante, mas também é profundo. Grande parte das águas pluviais escorre, de acordo com a declividade dos terrenos, para o leito dos rios.

Onde o estrado de gramíneas e arbustos nativos é denso, não há processos acentuados de ravinamentos; o contrário ocorre quando aparecem manchas que caracterizam áreas desnudadas.

Nos Cerrados e Cerradões, situados em declives mais acentuados, não há formação de lençol freático. As águas pluviais escorrem com velocidade para o leito dos cursos d’águas.

No subsistema de Matas o lençol freático é abundante e sub-superficial, em função do caráter umbrófilo, que diminui o impacto da insolação e da serapilheira que protege o solo. A rede hidrográfica que aí se forma é caracterizada por pequenos córregos e muito rica. Sua origem e alimentação estão na dependência direta dos lençóis freáticos aí existentes.

Nas Matas Ciliares o panorama é similar; a diferença é que o lençol freático alimenta diretamente o curso d’água mais próximo, através de escoamento rápido.

Nas Veredas, em função do sistema radicular das plantas e do caráter do solo húmico, turfoso e às vezes argiloso, o lençol é abundante e superficial, formando pequenas lagoas e sendo responsável pelas nascentes dos cursos d’águas do cerrado, cuja morfologia se apresenta como um anfiteatro.


Uma vez retirada a cobertura vegetal nativa, o primeiro lençol a secar é o que se encontra nos Subsistemas de Matas, Matas Ciliares e Veredas. O tempo para a finalização deste processo, de acordo com observações, situa-se entre dois a cinco anos.
Nas Veredas, por se tratar de um lençol superficial, o processo de desaparecimento será muito acelerado; talvez não chegue a alcançar o período de dois anos.

Nos Capões ou manchas de matas mais homogêneas, tipo as que definiam em outros tempos o chamado Mato Grosso Goiano, a rede de drenagem, caracterizada por pequenos córregos, também será extinta no prazo de dois a cinco anos; deixa, nos locais, os caminhos secos, que serão avolumados por processos erosivos colossais, em cada estação chuvosa, dependendo da gênese dos solos.

Nos Cerrados e Cerradões situados nos interflúvios, os lençóis secarão no prazo máximo de cinco a oito anos. Haverá a acentuação dos processos de ravinamento, cujas erosões serão capazes de esculpir no solo sinistras cicatrizes ruiniformes.

A retirada total da cobertura vegetal afetará, também de forma decisiva, a já reduzida recarga dos aquíferos, cujas reservas chegarão a um nível crítico, pois as águas pluviais que conseguirem penetrar através do solo serão de imediato absorvidas por estes, dado aos seus estados de aridez em função da insolação. A pouca umidade retida se evaporará de forma rápida devido às mesmas causas. No início, os problemas oriundos dessa situação tentarão ser contornados com a construção de barramentos, através de curvas de níveis e pequenos açudes, para reter as águas das chuvas. Entretanto, os ambientes que surgem desse processo tem caráter bêntico, fato que origina a argilicificação e a conseqüente impermeabilização do fundo dos poços, que, associada à forte insolação, resultará numa ação de nula eficácia.


O primeiro aquífero a ter suas reservas diminuídas será o Urucuia, até o quase total desaparecimento, seguido do aquífero Bambuí e do aquífero Guarani. O prazo para finalização deste processo, de acordo com dados de Geotecnia atuais, deverá compreender um período situado entre 15 a 25 anos.

 Com o desaparecimento do lençol freático, seguido da diminuição drástica da reserva dos aquíferos, os rios iniciarão um processo de diminuição da perenidade, oscilando sempre para menos, entre uma estação chuvosa e outra e desaparecendo quase por completo na estação seca.

Este fato afetará primeiro os pequenos cursos d’água, depois os de médio porte e em seguida os grandes rios.

Os fenômenos ocorridos nos chapadões centrais do Brasil, em função do desaparecimento do cerrado, afetarão de forma direta várias partes do continente.

A parte sul da calha do rio Amazonas, representada pelos baixos chapadões, terá uma rede de drenagem insignificante no que diz respeito ao volume d’água, uma vez que os grandes afluentes da margem direita que tem suas nascentes e seus alimentadores situados no cerrado, deixarão de existir ou terão seus volumes diminuídos de forma significativa nos cursos superiores e médios. Os grandes afluentes do rio Amazonas, pela sua margem direita, serão alimentados apenas nos seus cursos inferiores, fato que reduzirá em mais de 80% suas vazões.


A floresta equatorial deixará de existir na sua configuração original, sendo paulatinamente substituída por uma vegetação rala tipo caatinga, salpicada em alguns locais, por espécies de plantas adaptadas a um ambiente mais seco.

O vale do Parnaíba, englobando a bacia geológica Parnaíba-Maranhão, será invadido na direção sul/norte por dunas arenosas secas, provenientes da formação Urucuia, existente no Jalapão e Chapada das Mangabeiras. E, na direção norte/sul, por sedimentos arenosos litorâneos, que caracterizam os Lençóis Maranhenses e Piauienses, que em virtude de condições favoráveis terão facilidade de transporte eólico em direção ao interior. Os atuais poços jorrantes do vale do Gurguéia deixarão de ser fluentes, mas uma ou outra pequena fonte continuará existindo de forma precária.


Com o desaparecimento dos principais afluentes do rio São Francisco, pela sua margem esquerda, que cortam o arenito Urucuia, a ausência de alimentação constante, associada ao assoreamento, contribuirão para o desaparecimento do grande rio, nos seus aspectos originais. Permanecerão algumas lagoas e cacimbas onde o terreno tiver característica argilosa, ou outra rocha impermeabilizante originária da metamorfose do calcário Bambuí.

A Caatinga que já caracteriza parte do curso inferior do rio São Francisco avançará um pouco mais em direção ao norte, transicionando paulatinamente para a formação de uma grande área desértica, que certamente abrangerá o centro, o oeste, o sul da Bahia e norte e centro de Minas Gerais.

A região da Serra da Canastra permanecerá com alguns elementos originais, como uma espécie de enclave geoecológico, com clima subúmido.

Nas áreas correspondentes aos formadores e bordas da Bacia Hidrográfica do Paraná, as desintegrações intensas dos arenitos Botucatu e Bauru – que já formaram, na região durante os períodos Triássico e Cretáceo, grandes desertos, abrangendo um período de tempo compreendido entre 245 a 70 milhões de anos antes do tempo atual, com pequenas variações de tempo – acordarão de um sono profundo, expandindo seus grãos de areia, em várias direções, provocando erosões colossais, assoreamento e acúmulos de sedimentos na configuração de dunas. Do curso médio da Bacia do Paraná, até a parte superior de seus afluentes, haverá muitas áreas desérticas, separadas por formações rochosas ostentando vegetação de características áridas e semi-áridas.


A sub-bacia do rio Paraguai, alimentada pelo aquífero Guarani, sofrerá as mesmas consequências das demais regiões hidrográficas do Cerrado, transformando o atual Pantanal Matogrossense numa área de desertos arenosos, tal como já ocorreu na região durante o Pleistoceno Superior, onde ali existia o deserto do Grande Pantanal.

Logo após o desaparecimento por completo das comunidades vegetais nativas, fato que poderá ocorrer entre dez a trinta anos, a agroindústria terá seus dias de grande apogeu em termos de produtividade.

Os núcleos urbanos criados ou dinamizados como suportes destas atividades atingirão também seu apogeu em termos de aumento demográfico e em termos de ofertas e oportunidades de serviços de natureza diversa.

Passado certo tempo, contado em alguns poucos anos, esta realidade experimentará um grave processo de modificação. A produtividade agrícola começará a diminuir assustadoramente, causando ondas de demissões nas empresas estabelecidas. Isto acontecerá porque a água dos lençóis subterrâneos não é mais suficiente para sustentar a produção no sistema de rotatividade de antes. Não há água para fazer funcionar os pivôs centrais. A atividade agrícola sobrevivente se restringirá à época da estação chuvosa, que já se manifesta com instabilidades sazonais.


Os solos, outrora preparados intensivamente para os cultivos, serão ocupados em pequenas parcelas, deixando exposta uma grande superfície desnuda. Da mesma forma as pastagens que sustentavam a pecuária encontrarão afetadas, provocando a redução paulatina do rebanho.

Esta situação começará a refletir de forma visível nos polos urbanos. Haverá racionamento de água, em função da diminuição da vazão dos rios, que por sua vez provocará a redução do nível dos reservatórios. O racionamento de energia elétrica também será imposto pelas mesmas causas. O desemprego e os serviços, antes fartos e variados, afundarão numa crise sem precedentes.


Este fato provocará o aumento de pessoas ociosas e vadias nas cidades, situação que criará enormes embaraços sociais desagradáveis. Há a intensificação da criminalidade de todas as espécies, desde pequenos furtos, saques, assaltos e assassinatos. A prostituição se generalizará, trazendo consequências consideráveis para a saúde pública, que se apresenta cada vez mais decadente.

Os serviços públicos, incluindo a educação, por falta de arrecadação e manutenção começarão a beirar o caos.

Depois de aproximadamente uma década, a ausência de água nos rios criará uma paisagem desoladora. Áreas outrora ocupadas pelas lavouras serão caracterizadas agora por formas vegetacionais rasteiras e exóticas, típicas de formações desérticas, com um ciclo vegetativo muito curto.



Grande parte dos campos agrícolas abandonados, sem a cobertura vegetal necessária para fixar o solo, passará durante algumas épocas do ano a ser assolada por ventos e tempestades fortes, que criarão uma atmosfera escura carregada de grãos finos de poeira em extensões quilométricas.

Será possível ainda avistar um ou outro ser humano vivente, utilizando água empoçada, provavelmente de chuvas e exercendo pequenas atividades de subsistência. Também será possível encontrar uma ou outra família desgarrada e solitária, sobrevivendo de restos que ainda poderão ser obtidos. Os mais bem situados economicamente migrarão para o litoral, ou para outros países.

Os polos urbanos serão assolados por diversas epidemias, que provocarão índices alarmantes de mortalidade. A maioria da população sucumbirá, diante da miséria crescente.



A fauna nativa praticamente desaparecerá, mas ainda será possível observar alguns urubus e outras aves de rapina. A população de ratos aumentará descontroladamente, num primeiro momento, contribuindo também para o aumento da população de felinos, outrora domésticos. A mesma sorte, porém, não é compartilhada pelos cães, que no início desenvolverão alguns hábitos selvagens, mas não terão êxito na sobrevivência.
Passadas aproximadamente duas décadas, praticamente não existirão mais formas efetivas de população humana.

A população de ratos e gatos diminuirá de forma brusca e outros grupos de animais como répteis, tanto pequenos lagartos e cobras, começarão a aparecer em certos locais. Também será possível observar aracnídeos e insetos, dentre estes, pequenos besouros e escorpiões.

 Como lembrança das antigas paisagens de Cerrado outrora existentes nos chapadões centrais da América do Sul, algumas pequenas áreas provavelmente sobreviverão, em locais com micro-climas e solos preservados.  Entre esses pequenos espaços relictuais certamente estarão trechos da Serra da Canastra, em Minas Gerais. Parte da Chapada dos Veadeiros em Goiás. Pequenas áreas residuais nos interflúvios da Serra da Mesa, em Goiás e Tocantins. Pequenos cânions cársticos separados entre si e situados entre Mambaí e Dianópolis, Goiás. Pequenas manchas, tanto nos interflúvios, como nos vales da Serra do Gurgéia no Piauí. Provavelmente restará, também como lembrança, uma pequena mancha de cerrado ‘stricto sensu’ no atual município de Itacajá, Estado do Tocantins, onde atualmente se situa a Terra Indígena dos Krahô.


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