sábado, 26 de dezembro de 2020

PERDEMOS A COMBINAÇÃO DA SENHA

 


Altair Sales Barbosa

Existe ou existia entre os índios Kamayurá um ritual que consistia em confeccionar figuras zoomorfas, em cerâmica, e atirá-las ao fundo da Lagoa Miararré, no Alto Xingu. Esse costume era seguido por um mito, o qual narrava que, lá no fundo da lagoa, essas figuras formavam certas combinações que poderiam trazer a felicidade ou a desgraça. Assim, uma vez por ano os Kamaiurá mergulhavam até o fundo da lagoa, para verificar se as combinações estavam corretas. E assim o fizeram durante décadas em que foram observados pelos etnólogos modernos. Porém, com o passar dos tempos, que anda sempre mexendo com as coisas, modificando locais, e roubando memórias, os sedimentos argilosos juntamente com processos de assoreamentos, que aconteceram ao redor da lagoa, acabaram por enterrar aquelas figuras. Pior ainda, outras ondas culturais exóticas fizeram com que os Kamayurá mais jovens, não mais lembrassem das combinações, e aos poucos a felicidade e a tranquilidade daquele grupo foram substituídas pela luta aguerrida pela sobrevivência.

Este pequeno relato Kamayurá nos remete a refletir ou revisar, mesmo que brevemente, os caminhos que levaram a humanidade a eleger a desnaturização como ideologia e comportamento de vida, fenômeno pelo qual o homem se julga não fazer parte de mundo natural, afastando-se dele e atribuindo a si próprio um poder divino sobre os outros elementos do meio ambiente, o que, consequentemente, vem desencadeando os desequilíbrios contemporâneos.

Desde que surgiram na África, após uma série de processos evolutivos e adaptativos coroados de êxito, estes primeiros humanos conhecidos como Homo-habilis, começaram a desenvolver comportamentos egoístas e extremamente possessivos, que levaram à extinção várias espécies de animais, incluindo alguns dos nossos primos. Também fizeram guerras entre si e, possivelmente, levaram à extinção alguns grupos dissidentes.

À medida que as técnicas foram se desenvolvendo, tornando-se mais eficientes, para seus propósitos, o gênero Homo se tornou uma espécie cosmopolita e, por onde passava, deixava marcas de destruição e extinção de espécies. Eles eram ainda caçadores-coletores.

Depois desse tempo, várias noites, vários dias e várias estações se passaram e após longos processos de aprendizagem e de adaptação uma revolução no modo de ser de alguns humanos começa a se desenhar, numa nova forma mais complexa de vida. Eles aprendem a domesticar as plantas e os animais. Este fator os transforma de nômades em sedentários e os obriga a construírem moradias fixas para protegerem suas hortas e criações, tanto dos predadores humanos, como de outros animais.

Esta nova organização social, chamada inicialmente de aldeias, traz no seu bojo uma série de problemas, que vão desde aqueles ligados aos relacionamentos sociais, até problemas de saúde, partilha dos bens etc. que eram resolvidos quase sempre, com a cisão dos grupos.

Mas, de maneira geral, parece que a abundância superou as vicissitudes e logo essas aldeias se transformam em cidades que imediatamente vão se constituindo em impérios. Para a construção dos impérios, os humanos que os conceberam, embora esse processo seja fruto de exigências sociais e políticas, quase que imperceptíveis, num primeiro momento, engendram mecanismos de dominação política.

Num segundo momento, começam a proporcionar as primeiras grandes modificações nas paisagens, exploram pedreiras constroem castelos, templos, campos de jogos, recreação e competições, constroem aquedutos, sistemas rudimentares de esgotos destroem plantações nativas para implantar grandes campos de cultivo e assim segue sua marcha.

Entretanto, é bom salientar, nada disso seria possível sem a criação de uma sociedade estratificada socialmente e obediente às divindades e crenças impostas de forma cruel e sanguinária. Dessa forma, foram construídos os grandes impérios, ilustrados por alguns dos quais assim denominados: Império Hebraico, Império Faraônico, Império Grego, Império Romano, Império Otomano, Império Asteca, Império Inca etc. Assim como os novos impérios, que surgiram depois da época das grandes navegações.

Uma dinastia, ligada diretamente a uma divindade, se organizava em torno dela, um grupo de obedientes ordenadores, que por sua vez organizavam grupos de guerreiros, exércitos, que davam ordens, ou escravizavam hordas estranhas ao seu bando para fazerem os trabalhos pesados.

Com o incremento deste modelo deu-se ao luxo de escravizar continentes quase que por inteiro, porque os povos que possuíam costumes estranhos, que andavam nus ou que fisicamente eram diferentes, não eram considerados seres humanos, precisavam ter um Deus e precisavam também pensar como aqueles que lograram mais poderio bélico.

Sociologicamente surge a ideologia dos incluídos e excluídos, que permite aos humanos escravizarem outros humanos e os venderem e trocarem como mercadorias.

O modelo de universidade, casa da sabedoria, imposto no mundo ocidental, contribuiu largamente para o embasamento científico da desnaturização do homem, uma vez que separou os saberes em ciências humanas e ciências naturais, modelo cujos frutos colhemos até os dias atuais. Porém, é bom também salientar que as intervenções humanas, que começaram a permear a ciência, vêm desde a revolução neolítica, com o cruzamento entre espécies de uma mesma característica física, para adquirir certa homogeneidade de raças. Isto aconteceu com os galináceos e com os cães, seguida pela castração de touros, para impedi-los de deixar descendentes e torná-los mais mansos para o trabalho pesado. A castração dos seres humanos criando a classe dos eunucos, para cuidarem dos haréns, é só a ponta do iceberg de uma grande revolução que estamos começando a vivenciar: a engenharia genética e a inteligência artificial.

Há bem pouco tempo poderia descrever a humanidade atual como o resultado de dois processos evolutivos que se sobrepuseram ao longo do tempo: a evolução biológica, que compartilha com os demais seres vivos e que fundamentalmente consiste na transferência de adaptações biológicas que facilitam a sobrevivência e a seleção das espécies, e a evolução cultural, resultado dos avanços tecnológicos logrados pela espécie humana em sua evolução biológica.

A evolução cultural tem significado, por um lado, a organização do homem em grupos sociais que têm gerado problemas demográficos, problemas de saúde, problemas de educação, problemas institucionais etc. Por outro lado, a evolução cultural agregou ao fluxo básico de energia e de informação e de circulação de matéria o fluxo do dinheiro, como resultado dos intercâmbios e das transações, gerando assim uma série de variáveis econômicas relacionadas com produção, capital, trabalho, comércio, indústria, consumo, níveis de preços, planificação de inversões, maximização de ganho, transferências de tecnologias etc. A aplicação das diversas tecnologias sobre as biogeoestruturas naturais originou diversas manufaturas (e não só elas) como: artesanato, instrumentos, maquinários etc., como também deu origem a uma grande quantidade de ecossistemas artificiais, cidades, metrópoles, megalópoles, campos de cultivos, áreas de pastoreio, pastagens artificiais, represas, canais de regadio, rodovias, vias férreas, aeroportos, grandes usinas, complexos atômicos etc. Por último, a evolução cultural tem originado uma série de estruturas culturais ou ideo-facturas: ideias filosóficas, crenças, conhecimentos, valores, normas etc.

Se tudo isto, aliado aos avanços eletrônicos, já nos causa surpresas, às vezes desagradáveis e espantosas, devemos nos preparar muito mais para o que nos aguardam os resultados da engenharia genética, as possibilidades incertas da inteligência artificial, a vida biônica e até com a possibilidade de outras vidas. Somos mais poderosos do que nunca.

As bombas-relógios, que foram plantadas ao longo do tempo histórico, muitas das quais explodiram, porque quem as plantou, esqueceu as combinações da senha. Este fato tem gerado vários desequilíbrios ao meio ambiente, em diversos níveis de escala, cujos frutos já colhemos e estamos colhendo, com as incertezas do futuro, não para o planeta, pois este não depende do homem, mas para o futuro dos próprios humanos.

Não é preciso ter cérebro brilhante nem ser um gênio da futurologia para sabermos que, de uma forma ou de outra, a bomba Z já foi plantada. Também não é necessário ser genial para perceber que vivemos num planeta inteligente, cuja capacidade foi adquirida ao longo de bilhões de anos de experimentação e evolução, por isso, cobra caro pelos desequilíbrios provocados pelas intervenções mal planejadas nos elementos que compõem o meio ambiente.

Assim, esperamos que a humanidade esteja bem preparada, para evitar o que aconteceu com os Kamaiurá, que esqueceram a combinação das figurinhas atiradas ao fundo da lagoa Miararré.




 

CERRADO:

 


UM BANCO PARA O FIM DOS TEMPOS
 

Altair Sales Barbosa
 
Um banco do fim dos tempos para o cerrado, se definiria pela criação de um espaço adequado, com técnicas de armazenamento adequadas, para a preservação do maior número possível das partes germinativas das espécies desse Sistema Biogeográfico, caso um apocalipse venha destruir a vegetação desta riquíssima matriz ambiental, para que no futuro ela possa ser, se necessária refeita.
 
Os desafios não só para a criação, como para a manutenção de uma arca desta natureza, do ponto de vista econômico, são imensos e exigiriam um programa consistente de pesquisas, para o resgate dos conhecimentos atuais e para a formação de gerações de novos pesquisadores, dentro de uma ótica que não tivesse interrupção. Também os desafios para a solução dos intrincados problemas ecológicos, seriam imensos. E, teriam que ser considerados desde o oligotrofismo do solo, como regime climático, balanço hídrico, e tantos outros que possibilitassem a germinação e sobrevivência das plantas retiradas do banco.
 
Caso o cerrado, venha a desaparecer totalmente, situação que se encontra prestes a acontecer, pela sua importância ecológica, para o equilíbrio de grande parte das áreas continentais do planeta, com certeza, esforços na busca de soluções científicas e tecnológicas não seriam medidos.
 
O cerrado, na plenitude de sua biodiversidade, já se encontra extinto. Considerando parte da complexa ecologia e da sua história evolutiva, as formas vegetacionais, desde as suas origens, representaram importância fundamental na configuração da totalidade ambiental. Entretanto, a vegetação enquanto comunidades, não existe mais, porém é possível encontrar uma outra espécie isolada, sobrevivente da tragédia da extinção.
 
Uma outra questão importante a ser colocada, se refere a difusão do cerrado e sua adaptação ao solo oligotrófico.
 
Em 1961, o pesquisador Ferry, se surpreendeu com a constatação de que após vários anos de pesquisas acerca do cerrado, constatou que nunca encontrou plantinhas de espécies permanentes que pudessem dizer com segurança, que provinham de sementes. Reprodução vegetativa de vários tipos, é responsável pela manutenção desta vegetação em determinado local e pela sua expansão em áreas adjacentes.
 
Experiências não publicadas, com sementes de algumas espécies, revelaram que não há dificuldade para germinação em condições de laboratório, no cerrado entretanto, as mesmas sementes não germinam ou fazem em porcentagem muito pequena, mesmo quando há alguma germinação, a sobrevivência final é extremamente baixa.
 
Isto pode ser explicado da seguinte forma: As sementes das plantas permanentes do cerrado, são produzidas e dispersadas via de regra, ao final da época seca, muitas são comidas por insetos e outros animais, muitas morrem pelo excessivo calor solar, algumas apenas são preservadas em certos pontos mais abrigados. No cerrado antigo, a superfície do solo é dura e seca e tem um baixo teor de coloides assim, quase toda água das primeiras chuvas corre pela superfície. As sementes que iniciam sua germinação com estas primeiras chuvas, não encontram água suficiente para prosseguir em seu desenvolvimento.
 
O cerrado é um dos ambientes mais antigos da história recente do planeta Terra, que tem início no Cenozóico, portanto trata-se de um ambiente, onde os elementos fundamentais que o compõem, já chegaram ao clímax evolutivo, com grau elevado de especialização, e os componentes vivem em complexa simbiose, além de necessitarem de condições especiais para sobreviverem.
 
Sementes de algumas espécies, principalmente arbóreas, germinam até com certa facilidade em viveiros, outras precisam de tratamentos especiais, para quebra de dormência e processos de escarificação. Somando todas as espécies que germinam em viveiros, chega-se a um total de aproximadamente 180 espécies, quantia que é insignificante, pois são conhecidas quase 13 mil espécies vegetais, que compõem a flora do cerrado. Um outro problema a ser considerado para o desenvolvimento das plantas, cujas sementes germinam em viveiros, é encontrar locais especializados, onde estas possam desenvolver e, se tornarem adultas, de acordo com suas exigências adaptativas.
 
Algumas adaptações da vegetação do cerrado, como  sistema subterrâneo desenvolvido desde o estádio de plântula, com raízes que atingem grande profundidade no solo, em busca de  água, caules subterrâneos com função de reserva ( xilopódio) e com gemas que permitem a reprodução das plantas após a estiagem e as queimadas, translocação de foto assimilados para o sistema subterrâneo nos períodos de seca, caules aéreos com cortiças para proteção contra fogo, solos com pH ácido, acúmulo foliar de alumínio, ajustamento osmótico das raízes possibilitando a entrada de água nos meses secos, são  sinais de processos adaptativos de uma vegetação antiga.
 
Essas considerações iniciais, embasam um grande projeto no sentido da construção dessa estrutura preservacionista e futurista.

No atual estágio, se encontra em conclusão um levantamento bibliográfico que contenha a listagem das plantas conhecidas do cerrado, incluindo as obras que listam as plantas ameaçadas de extinção.  Paralelamente diversos experimentos de preservação, estão sendo realizados, desde condições de armazenamento até experimentos com germinação.




sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

FOGO NO CERRADO E QUEIMADAS ONDE O CERRADO NÃO MAIS EXISTE

 



Altair Sales Barbosa

 

O cerrado, enquanto formação vegetal, é explicado por uma teoria denominada escleromorfismo oligotrófico. O oligotrofismo do solo é acentuado pelo fogo que retira basicamente seus nutrientes básicos. A vegetação do cerrado, principalmente nos seus aspectos senso strictu e cerradão, retém o máximo de açúcar que retira do solo e sequestra grande quantidade possível de CO2 da atmosfera, para alimento, e deposita esse gás nas raízes profundas. O açúcar é transformado em tecido por nome esclerênquima, que é armazenado nas bifurcações das plantas, dando a estas um caráter tortuoso. Fenômenos dessa natureza demonstram processos adaptativos de longa data. Todavia, esses não são os únicos processos que demonstram uma adaptação da vegetação do cerrado ao fogo. Existem muitos, mas, para resumir, citaremos a existência de caules subterrâneos, com função de reservas e com gemas, que permitem a reprodução das plantas após a passagem do fogo; são processos adaptativos, que demonstram uma história evolutiva, complexa e antiga dessa vegetação.

Outros tipos de vegetação precisam de situações extremas para sobreviverem. No caso polar, por exemplo, existem as tundras, que florescem depois do degelo. O gelo polar funciona como fogo, provoca quase o mesmo efeito, para rebrota das plantas. As sequóias que ocorrem principalmente na Califórnia, na América do Norte, é outro tipo de formação vegetal que intimamente convive com fogo, e esse é primordial para sua propagação e sobrevivência. De formação antiga, tal qual o cerrado brasileiro, estas florestas representam, para região onde ocorrem, o mesmo papel que a vegetação de cerrado representa para os chapadões centrais da América do Sul, só que o cerrado parece ser bonsai das antigas sequóias.

Não se pode levar adiante qualquer estudo sobre o cerrado, se não tomar em consideração o fogo, elemento com o qual essa paisagem está intimamente associada. Apesar da sua importância para o entendimento do Sistema Biogeográfico, a ação do fogo no cerrado é ainda mal conhecida, e geralmente marcada por questões mais ideológicas que científicas. Também não se pode conduzir tal estudo com base apenas nas comunidades vegetais. O estudo do fogo, como agente ecológico, será mais completo se também se observam as comunidades faunísticas e os hábitos que certos animais desenvolveram e que estão intimamente associados à sua ação, cuja assimilação, sem dúvida, necessita de arranjos evolutivos caracterizados por um tempo relativamente longo. Algumas observações constatam, por exemplo, que a perdiz (Rhynchotus rufescens), só faz seu ninho em macega, tufos de gramíneas queimadas no ano anterior. Visitando várias áreas de cerrado, imediatamente após queimadas, constata-se que, mesmo com as cascas das árvores e arbustos carbonizadas superficialmente, há entre as cascas e o tronco intensa micro fauna. Fenômeno semelhante acontece com extrato gramíneo, que poucos dias após a queimada, mostra sinais de rebrota, que constitui elemento fundamental para a concentração de certas espécies animais.

O fogo é um elemento extremamente comum no cerrado e de tal forma antigo que a maioria das plantas parece estar adaptada a ele. Ferry(1973), comentando trabalho de Rachid Edwards(1956), em áreas de campo limpo e cerrado, informa que a autora estudou especialmente as gramíneas, grupo que constitui a massa de vegetal baixa dos campos e no qual existe grande número de espécies tunicadas. Rachid Edwards indica, neste mesmo trabalho, que as formações túnicas, são encontradas em plantas da vegetação baixa dos campos, como Gramínea, Cyperaceae, Iridaceae, Filicinae etc. Indica ainda que, segundo Bouillene(1930), ocorrem também em Velloziaceae, Bromeliaceae e Eriocaulaceae. As túnicas são envoltórios de pontos vegetativos e, em função, comparam-se aos catafilos que protegem as gemas dormentes. Tais elementos, além de protegerem contra a perda da água, são eficazes na proteção contra o fogo e contra o forte aquecimento por ele produzido.

A autora ainda trata dos sistemas subterrâneos, (bulbos, rizomas, tubérculos e xilopódios), que também proporcionam resistência às condições adversas. Arens (1958), afirma que o fogo é um fator que acentua o oligotrofismo, influindo dessa maneira sobre a conservação ou propagação do Cerrado. Já Goodland(1966) sugere que a ação do fogo sobre microrganismos do solo é muito importante no cerrado, porém pouco conhecida.

Na mesma linha de raciocínio, Coutinho(1956), informa que ação do fogo no cerrado aumenta o vigor da vegetação herbáceo-subarbustiva, enquanto que o arbustivo-arbórea o tem diminuído. Isso significa, de acordo com o autor, um aumento progressivo das áreas de campo sobre áreas de cerrado e cerradão. Entretanto, quanto a essa observação, cabe considerar o seguinte: a primeira parte da afirmação de Coutinho; nossas observações a corroboram integralmente. No entanto, quanto à segunda parte, é necessário tomar em consideração o aspecto da competição. Uma área onde a queimada não ocorre, favorece o crescimento de gramíneas até alturas consideráveis, o que possibilita o enrijecimento de seus caules e a maturação em massa e dispersão de suas sementes, restringindo o espaço dos arbustos e das espécies arbóreas jovens, ao passo que a queimada, embora aumentando-lhe o vigor, restringe de certa forma sua área de dispersão, propiciando áreas ensolaradas e abertas para as plantinhas em formação.
Outro dado importante a destacar, quando se procura entender a ação do fogo ao longo da história, é que a ação do homem pré-histórico brasileiro não funcionou como elemento perturbador dessa paisagem, porque, além da ocupação do interior do Brasil ser um fato relativamente recente, era insignificante em termos populacionais para produzir perturbações em amplas escalas; suas ações revestem-se de caráter puramente local. Nascimento (1987) assinala também que, ao longo do tempo, a ação do fogo no cerrado deve ser buscada em causas naturais. O calor e as variações do albedo, sempre altos nas áreas do Cerrado, provocam intensos movimentos convectivos na atmosfera, onde a concentração da umidade e o forte gradiente térmico atmosférico montam rapidamente tempestades magnéticas caracterizadas pela intensidade dos trovões, relâmpagos e raios.

A ação do fogo no Cerrado, ao longo do tempo, criou neste ambiente vários exemplos de adaptação. No caso animal pode-se citar como ilustração, além dos já citados, o caso da ema,(Rhea americana), que faz um ninho grande, que comporta em média 50 ovos, que são chocados pelo macho no meio do campo. Para proteger o ninho, a ema faz, ao seu redor, um pequeno aceiro, para quando o fogo vier não atingir o ninho. Isto era possível, porque tratava-se de um fogo brando, rápido e rasteiro, que simplesmente lambia o resto das gramíneas secas e mortas. Esse fogo não tinha força para atravessar o pequeno aceiro feito por aquela ave.

As gramíneas nativas e outras plantas herbáceas existiam nos chapadões, nas campinas, nos interflúvios e nas áreas de cerrado stricto sensu, onde a luz do sol permite a entrada da claridade. Atualmente, essas gramíneas não existem mais. Adiante analisaremos as causas dessa extinção.

Nossa obrigação tem a esclarecer ainda alguns pontos importantes. O primeiro, refere-se ao ciclo vegetativo das gramíneas. Toda vez que uma gramínea produz semente, a planta morre. Alguns exemplos, que não são as pequenas gramíneas do Cerrado, apenas para a ilustração ficar mais clara. O milho, que é uma gramínea, quando produz suas sementes e elas amadurecem nas espigas, a planta morre. Assim ocorre com a cana-de-açúcar, com arroz, com trigo etc.

O mesmo fenômeno, acontece com as gramíneas nativas do Cerrado, uma vez que dão sementes, morrem deixando no local tufos de pequenos troncos secos. Algumas dessas espécies têm ciclo anual, outras desapareceram, antes que o ciclo pudesse ser conhecido, como muitos bambuzinhos nativos etc. Quando acontecia o fogo natural, este era brando e tinha a função de limpar os tufos das gramíneas, para que brotos novos surgissem ou para a quebra da dormência das sementes, que propagavam essas espécies.

Ponto importante também a ser considerado, refere-se aos alimentos disponíveis para os animais nativos, no auge da estação seca. Nessa época, esses animais estão vivendo o tempo da sobrevivência. Diferentemente de outros parâmetros de tempo, o tempo da sobrevivência é o tempo do fio da navalha. Se encontra entre a vida e a morte, não há alimentos no Cerrado para a sobrevivência dos animais e muitos destes encontram nos restos dos fogos, elementos que lhes permitem sobreviver mais alguns dias, restos de insetos carbonizados, pedaços de carvão e até a cinza que proporciona cálcio e sais minerais. De imediato vêm as floradas, e, com as primeiras chuvas, a rebrota das gramíneas; em seguida chegam os primeiros frutos. Esse ciclo complexo, sustenta os herbívoros, que por sua vez sustentam os carnívoros, restabelecendo novamente o ciclo da vida.

Também é importante salientar as causas do fogo espontâneo no Cerrado. Nesse Sistema encontra-se uma grande variedade de rochas, que refletem com intensidade a luz do sol, essa luz ao encontrar massa combustível vulnerável, imediatamente se inflama. As rochas quartzosas, desde as esbranquiçadas até o quartzo hialino, as biotitas, as muscovitas, o sílex, o arenito silicificado, todas podem provocar esse tipo de fenômeno. Já presenciei isso muitas vezes, em longos trabalhos de campo. Porém a experiência mais extraordinária, neste sentido, aconteceu dentro de um museu, onde uma telha quebrada permitiu a passagem de um intenso raio solar, que, ao tocar numa superfície polida de madeira silicificada, refletia num pedestal de madeira comum, que sustentava outra amostra. Percebi uma fumaça. Ao tentar constatar o que estava acontecendo, vi que a fumaça era oriunda da madeira que funcionava como pedestal, que, ao receber o reflexo do raio solar, estava começando a se queimar, fato que não chegou a concretizar porque ela era densa. Esse fenômeno se deve ao fato do albedo do sol, que nessa época de estação seca atinge certas regiões do Cerrado de forma que permite um reflexo tangencial, gerando concentração de calor.

Outro fator, originado de processos adaptativos, refere-se à energia ou ao eletromagnetismo gerado pelo contato ou atrito dos pelos de alguns animais, com os talos secos das gramíneas. Nessa época a umidade é muito baixa, fato que provoca tal fenômeno; uma vez provocada a faísca, se esta encontrar massa combustível, é capaz de se alastrar como fogo.

Um outro fenômeno muito comum de fogo espontâneo no Cerrado ocorre nas margens dos rios, nas veredas, nos pantanais e até nos lagos artificiais. Trata-se do fogo-fátuo, que é a combustão resultante do contato de gases metano e fósforo, com o oxigênio da atmosfera. O fogo-fátuo é comum nesses locais. Nas margens de rio, é porque na época das cheias muitos animais povoam esses locais com a vazante. Com o recuo das águas na época da seca, os animais que ficam presos e não conseguem acompanhar a descida das águas entram em decomposição pela ação das bactérias e logo são soterrados pela sedimentação; os gases produzidos pela ação das bactérias, ao entrarem em contato com o oxigênio atmosférico, formam um fogo azulado, que pode durar segundos. Nas veredas, em função da presença de turfa e constante material em decomposição, esse fenômeno é muito comum e pode se alastrar com facilidade, dado a existência de um estrato inferior composto de muitas gramíneas nativas, dentre estas o capim dourado, só para citar um exemplo. Entretanto, os locais onde os fogo-fátuos ocorrem com mais frequência são as áreas de pantanais; no Sistema do Cerrado existem pequenos pantanais e grandes pantanais. Entre os pequenos podemos citar os Pantanais do rio Paranã, em Flores de Goiás, e o Pantanal do rio Jamari, próximo à cidade de Acreúna, Goiás. Entre os grandes, o destaque é para o Pantanal Mato-grossense da sub-bacia hidrográfica do rio Paraguai. Aliás, fisiograficamente, esta paisagem não passa de um Subsistema do Sistema Biogeográfico do Cerrado. Neste local, na época das águas, formam grandes e pequenas lagoas marginais, algumas são perenes, mas outras, principalmente as menores, quando vem o período de estiagem, elas começam a secar. Quando cheias, estavam recheadas de vidas, que com a estiagem agonizam à medida que o processo de seca aumenta. Como o fundo é argiloso, em função do processo de sedimentação lento, muitos animais, na ânsia da sobrevivência, se misturam ao fundo argiloso da lagoa, até que toda a água se evapora. O mesmo processo de decomposição acontece, pela ação das bactérias e, quando os gases saem por alguma brecha, o contato com o oxigênio provoca o fogo azulado. Nos pantanais, porém, a massa combustível é bem maior que nas outras, daí a possibilidade do fogo se alastrar pelas gramíneas nativas secas é também maior.

O fenômeno do fogo-fátuo constitui-se no primeiro mito indígena relatado no Brasil por José de Anchieta, e os índios o denominavam de Boitatá ou cobra de fogo. Alimenta também os diversos causos de assombrações nos sertões do Brasil. Atualmente, esse fenômeno adquire grandes dimensões, em função da construção de lagos artificiais. Na ânsia do represamento das águas para a formação dos lagos, apenas um baixo percentual das madeiras que têm valor comercial é retirado; aquelas sem valor são deixadas nos locais. Com o enchimento dos lagos, o processo de decomposição continua e o fenômeno do fogo-fátuo aumenta assustadoramente.

Era assim que funcionava o fogo no Sistema Biogeográfico do Cerrado!

Um fogo brando, leve, essencial para a manutenção da paisagem como um sistema.

Findo o ciclo da mineração no centro do Brasil, em função de múltiplas razões, os antigos mineiros apossaram-se das terras em volta dos antigos centros mineradores, com intuito de desenvolver uma agricultura e uma pecuária básica que pudessem alimentar a si e aos seus. Dessa forma, a pecuária antes de se transformar em intensiva e altamente científica e tecnológica foi praticada extensivamente à solta sobre as imensas pastagens. Tradição que iniciou em terras situadas no oeste do rio São Francisco, no gerais da Bahia e Minas. (Neto – 2012).

Com a introdução em larga escala do gado indiano, especialmente a raça nelore, associada às técnicas de inseminação artificial, foi tomando proporções gigantescas a introdução de gramíneas exóticas nas áreas do Cerrado. Este fato aconteceu principalmente a partir da década de 1940, mas foi se aperfeiçoando, paralelamente ao desenvolvimento das técnicas agrícolas, a partir da década de 1970, já que se percebeu que as gramíneas nativas não dão sustentação para criações em larga escala. Dentro dessa perspectiva, foram paulatinamente sendo introduzidas as gramíneas exóticas para sustentar essa pecuária cada vez mais pujante, que se desenhava no Brasil. A primeira espécie a ser introduzida foi o capim-elefante (P. purpureum), de origem africana; depois veio o colonião (P. maximum), que, segundo alguns, inicialmente se disseminou pelas sementes que vinham grudadas nas roupas dos escravos e, assim sucessivamente, introduziu-se o Andropogon (A. gayanus), o Capim-gordura (M. minutiflora), o Jaraguá (H. rufa), todos também de origem africana. A partir da década de 1970, com a diversificação cada vez maior e com a expansão de fronteiras, foram introduzidas quatro espécies do Capim-Braquiária, também de origem africana o (B. decubens), o (B. humidícola), o (B. ruziziensis), e o (B. brizantha); todas essas espécies se adaptaram bem às condições dos espaços onde foram plantadas, claro que umas tiveram melhor adaptação, principalmente contra o ataque da cigarrinha e outros insetos, fato logo resolvido pelos potentes inseticidas desenvolvidos pelos laboratórios associados ao grande agronegócio.

A primeira consequência da introdução dessas gramíneas exóticas foi a perda da biodiversidade. Por serem severas, agressivas e invasoras, essas espécies logo se espalharam nos diversos ambientes de Cerrado, principalmente naqueles onde a claridade imperava, nos campos, no cerrado strictu-senso, no cerradão, nas veredas, nas orlas das matas, nos leitos e margens de estradas etc., modificando de forma radical a fisionomia da vegetação do Cerrado e influenciado na propagação de pragas antes desconhecidas.

Por não possuírem sistemas radiculares complexos, essas gramíneas não absorvem as águas das chuvas, da forma como fazem as gramíneas nativas; a consequência imediata é a diminuição da umidade do solo e dos depósitos de água subterrânea. Também têm ciclos anuais, ou seja, todo ano produzem sementes, que, logo após o amadurecimento, a planta morre, deixando uma montanha de talos secos, porque trata-se de espécies com alturas consideráveis. O manejo inadequado dessa massa combustível, e ainda o preconceito contra o fogo, fundamentado nas raízes religiosas da população, que confunde fogo com inferno, contribui para que jamais se entenda que o fogo é um dos elementos que compõem o meio ambiente. Dentro dessa perspectiva, em vários locais foram criadas as denominadas brigadas contra incêndios, que ao primeiro sinal de fogo correm para apagá-lo. Agindo com boa-fé, mas sem conhecimento das ecologias e histórias locais, as brigadas só contribuem para o aumento das massa combustível, pois, a cada ano que passa, pela fisiologia dessas gramíneas, só aumenta o volume a ser queimado.

Um dia o fogo chega, pois o planeta é dinâmico, os fenômenos que aconteciam no passado continuam da mesma forma; portanto, o fogo pode chegar por causas naturais ou antrópicas ou pela associação das duas, e quando isso acontece o fogo se transforma em queimada prejudicial a todos e a qualquer forma de vida e ainda se torna incontrolável. Este quadro só reforça o que venho afirmando com relação ao Cerrado: na plenitude de sua biodiversidade, este ambiente não existe mais. E, se hoje o fogo aterroriza, amanhã muitos seres morrerão de sede, e a disputa dos humanos pela água será cada vez mais acirrada.
A introdução das gramíneas exóticas agressivas e invasoras por excelência, que deu o último empurrão para a desconfiguração do Cerrado, exige um plano de manejo adequado, quer seja utilizando do próprio fogo, em áreas e tempos alternados, quer seja limpando com máquinas as áreas com as macegas incendiárias. De uma forma ou de outra, o prejuízo ambiental é irreversível, mas, pelo menos, proporciona aos humanos momentos de mais conforto. Aliás, mesmo quando ainda existiam as gramíneas nativas, e algum fogo acontecia, sempre tive minhas dúvidas, se, com todo alarde, o homem estava pensando mais nele ou na natureza como um todo. Na preservação ou na produção?




quinta-feira, 1 de outubro de 2020

NO ROMPER DA MADRUGADA AINDA BUSCO ARAPARI

  

                                                                   Arapari – é um termo da mitologia indígena do Rio Solimões, que significa Cruzeiro do Sul. Aquele que aponta o rumo.

 

ALTAIR SALES BARBOSA

Com a solidificação do monoteísmo, houve uma crescente desnaturização do homem. E, marolando nesta onda as religiões do mundo começaram a cultivar a idéia da onipotência humana, filho onipresente do Criador. Essa espécie, se sentindo como tal, saiu deixando rastros de modificações pelos lugares por onde passa, nesse pequeno planeta, sem muito se importar com o mundo que o rodeia. Se continuar agindo dessa forma, certamente um dia, cairá nas próprias armadilhas da evolução e provavelmente será extinto. O Planeta continuará sua jornada por mais alguns bilhões de anos, até ser engolido pelo sol, quando este se transformar numa estrela gigante.

Desde quando se tornou Homo-sapiens-sapiens por volta de 60.000 anos antes do presente, ainda na velha África, após sucessivos êxitos evolutivos, ou melhor dizendo competitivos, que levaram um primata superior, que vivia em Oldwai ou na África do Sul, há mais  de 2.000.000 de anos, a se transformar de Australopithecus em Homo-habilis, que depois se transformou em Homo-erectus, em  seguida aparece o Homo-sapiens-arcaico e logo depois o Homo-sapiens-sapiens, este ser, aparentemente frágil, saiu pela terra modificando os ecossistemas por onde passava. No início começou a matar seus próprios irmãos, para conquistar territórios, onde as fontes de proteínas, vitaminas, açúcares e sais minerais eram mais fartas. Ainda como Homo-erectus aprendeu a dominar o fogo. Este fato brinda-o com a oportunidade de expulsar das cavernas os animais carniceiros, para ocupar como abrigo este precioso local. Também é nesta fase que conquista o Oriente Próximo e grande parte da Eurásia.

A economia dos primeiros H. sapiens-sapiens era aparentemente simples, pois baseava-se na caça, coleta de frutos, cata de ovos e moluscos marinhos nos litorais, da mesma forma que moluscos terrestres eram coletados nas áreas interioranas. Por isso, os H. sapiens-sapiens, eram chamados genericamente de caçadores-coletores, embora muitos fossem, em determinadas épocas do ciclo anual, essencialmente pescadores. Na sua dieta também entravam várias espécies de insetos comestíveis. Entretanto, esta economia não era tão simples, como o nome sugere, exigia não só um grande conhecimento do ambiente, mas uma complexa estrutura social, não só no sentido hierárquico, mas sobretudo nas divisões etárias e sexuais do trabalho, da mesma forma, normas rígidas estabeleciam os laços matrimoniais. Alguns modelos desse sistema de vida ainda persistem até os dias atuais, mesmo que de forma tênue, em alguns bolsões desse planeta, notadamente na África, na América do Sul e em algumas Ilhas isoladas do Pacífico.

É errado pensar que os caçadores-coletores eram seres pacíficos e que viviam em equilíbrio com o meio ambiente mais que a humanidade moderna e seus descendentes. Esta é uma visão enganosa. Assim como nós, usaram seus conhecimentos para explorar o ambiente num grau extremo que suas habilidades permitiam. E assim, onde quer que chegassem ou por onde passassem, um rastro de extermínio ficava. Característica que foi aumentando de forma análoga às inovações tecnológicas.

Ainda como caçadores-coletores, um pouco antes de 30 mil anos atrás, esses humanos oriundos da África e já adaptados aos ambientes euro-asiáticos levaram à extinção do Homo-sapiens-neanderthalensis, única espécie de humanidade diferente da nossa espécie e que foi contemporânea do Homo-sapiens-moderno, ditos H. sapiens-sapiens.

Os Homens de Neanderthal viviam em cavernas e fabricavam instrumentos de pedra lascada e ossos, que competiam com os fabricados pelos Homo-sapiens-sapiens. Mas uma característica importante a destacar sobre os Neanderthais é que foram os primeiros humanos a sepultarem seus mortos e colocarem flores sobre as suas sepulturas, provavelmente acreditando numa vida pós morte.

O fato é que, onde quer que chegasse, o Homo-sapiens-sapiens levou à extinção todos os outros tipos de humanos que encontraram pela frente. Numa de suas peregrinações da África para a Eurásia, esses humanos de origem africana, mas que já estavam amplamente adaptados a este novo ambiente da Eurásia, promoveram a extinção do Homo-erectus da Ásia, como também do Homo-sapiens-soloensis, do H. sapiens de Denisova, e dos próprios Neanderthais dos Bálcãs.

E assim, sozinhos enquanto espécie, essa aparentemente frágil criatura iniciou seu reinado sobre a Terra. A partir da Eurásia começou a ocupar pequenas Ilhas nos oceanos Índico e Pacífico. Isso foi possível, porque o mundo estava vivendo um dos estágios da glaciação de Wurm/Wisconsin. O nível do Oceano estava mais baixo em relação ao atual em cerca de 100 metros, criando corredores que ligavam estas Ilhas ao continente.

O exemplo da Austrália pode muito bem ser usado para ilustrar as atitudes predatórias do Homo-sapiens-sapiens: como a Austrália, a partir da fragmentação da Gondwana, a exemplo de outras ilhas do Pacífico e do Indico, tornou-se uma área isolada de outras áreas ambientais maiores. Neste sentido, os elementos da flora e da fauna tiveram um processo evolutivo na direção de uma fauna e flora diferenciadas. Isto é explicado da seguinte forma: no ambiente estável, as espécies vegetais e animais tornam-se especializadas, cada espécie ou conjunto de espécie ocupa seu lugar na cena ecológica e assim continua até que todos os nichos sejam ocupados.

A fauna ganha então um estado de equilíbrio. Com a flora, o mesmo processo acontece. A alteração do equilíbrio cria flutuações de desequilíbrios, que se avolumam com o tempo causando modificações drásticas no habitat original. Em poucos séculos, após a chegada do Homo-sapiens-sapiens, a região que hoje corresponde à Austrália teve mais de 90% da megafauna extinta. Entre esses animais estavam: Cangurus gigantes, que atingiam 200kg, espécies de coalas também maiores que as atuais, o leão marsupial do tamanho de um tigre, grandes espécies de aves maiores que as avestruzes, grandes répteis e talvez o mais notável de todos os animais nativos da região, o diprotodonte, um grande marsupial, semelhante aos heremotherium ou preguiças-gigantes da América do Sul. Um grande número de espécies menores também desapareceu para sempre. Certos estudos apontam que das 24 espécies de animais australianos que viveram no Pleistoceno Superior, 23 foram extintas.

Como foi possível tamanha destruição, com tecnologias de caça bem simples? Muitos especialistas colocam o fator clima como primordial nesse processo de extinção, mas os defensores das ações climáticas perdem suas argumentações, porque jamais entenderão a dinâmica do clima terrestre e sua relação com os processos adaptativos, porque não levam em consideração uma visão da dinamicidade do Planeta; isto provoca uma lacuna de raciocínio, que é a falta de conhecimento sobre a história evolutiva. Os animais extintos da Austrália já estavam adaptados há diversos ciclos climáticos que atingiram a região desde os primórdios do Pleistoceno. O fato é que os animais de grande porte e outros da fauna australiana nunca tinham presenciado a figura do animal humano, portanto não criaram, para isto, sistemas de desconfiança, medo, ou sistemas de auto defesa, diante desses aparentemente frágeis primatas. Os animais australianos possuíam, como quase todos os animais de grande porte, um sistema de gestação de longo prazo. Ou seja, se fossem mortos, era necessário um longo tempo para aparecer outra geração, pois o prazo entre uma gestação e outra era longo. Outra explicação é que o H. sapiens-sapiens quando chegou à Austrália já estava usando o fogo. Dessa forma cercavam as manadas, ateavam fogo em volta e as empurravam até um precipício onde morriam ou ficavam aleijadas. Muito mais que o necessário.


Isto também aconteceu noutras áreas, inclusive na América, que falaremos mais adiante. O uso do fogo mudou também radicalmente a fisionomia vegetal da Austrália e o eucalipto, resistente a este, se espalhou por áreas antes ocupadas por outro tipo de vegetação. Vários exemplos nesse sentido podem ser colocados. Quando os ancestrais dos Maoris chegaram à região onde hoje é a Nova Zelândia, a maior parte da megafauna foi extinta e mais de 60% da avifauna desapareceu por completo.

Quando os eurasianos conseguiram desenvolver indumentárias que os protegessem do frio, em época mais recente, o Homo-sapiens-sapiens atingiu as regiões siberianas.

Sua chegada à Sibéria, foi também devastadora, dizimaram mamutes, espécies endêmicas de rinocerontes da Sibéria, algumas espécies de renas, mastodontes etc. Quando os interglaciais permitiram a formação de corredores de migração, esses homens perseguindo animais gregários, sem se dar conta, entraram no continente americano. Muitos voltaram, mas também muitos ficaram na América do Norte e, em menos de 2.000 anos, atingiram a América do Sul até a Terra do Fogo. Mataram milhares de bisontes, toxodontes, camelídeos, cavalos, grandes aves, preguiças-gigantes, como megatherium e o eremotherium, gliptodontes e outros tatus gigantes, haplomastodontes, e muitas outras espécies. Tudo que estivesse no seu caminho sofreu na própria carne o sabor da extinção, até o inacreditável tigre-dentes-de-sabre, cujo nome em latim é Smilodon populator, que significa devastador, embora fossem estes os próprios devastados.

Não poderia terminar esse breve relato dos caçadores e coletores, sem responder a uma questão óbvia. Por que os elementos da mega-fauna africana sobreviveram? A resposta se deve ao fato de que os humanos, desde seus primeiros ancestrais até o H. sapiens-sapiens, viveram mais densamente na África, isso fez com que os animais africanos criassem mecanismos contra sua predação. Somente em épocas bem modernas, com a criação de outras tecnologias bélicas, é que o Homo-sapiens-sapiens levou à extinção alguns dos animais africanos, dentre estes a quagga, espécie de zebra garbosa, caçada impiedosamente pela beleza da sua pele.

Quando o homem dominou a tecnologia da navegação, processo similar aconteceu em várias partes do mundo, como é o caso do dodô, que será fruto de um comentário posterior.

Antes porém, gostaria de mencionar as sucessivas revoluções tecnológicas e científicas que juntas foram fortalecendo ainda mais o Homo-sapiens-sapiens e o transformando numa grande ameaça predatória inclusive para a sua própria espécie.

Da mesma forma que se trata de uma visão errada considerarmos os caçadores-coletores seres que viviam em completa harmonia com os outros componentes do meio ambiente, é também completamente enganosa a ideia de que a Revolução Agrícola surgiu de um estalo genioso na cabeça de alguns habitantes do vale do Tigre e do Eufrates, ou às margens do Nilo. O início da domesticação das plantas e animais começou por volta de 10.000 anos Antes do Presente e, embora não saibamos os detalhes, foi um fenômeno universal. Este processo inaugura a primeira grande revolução tecnológica na história da humanidade. Conhecida por muitos como Revolução Muscular.

Próximo ao Oriente Médio, foram domesticadas espécies de trigo, ervilhas, lentilhas, oliveiras, videiras, dentre outras. Os citros são domesticados na Península Ibérica, assim como os figos, maçãs e outras frutas são domesticadas mais no interior da Europa. O arroz é domesticado no extremo oriente. A cana-de-açúcar e a banana foram domesticadas na região onde hoje se situa a Nova Guiné, a manga, na Índia.

A domesticação animal foi um fenômeno paralelo à domesticação vegetal. Para alguns animais, os humanos atiravam as sobras de seus cotidianos, isso os amansavam e provavelmente se sentiam confortáveis, pois, além do alimento, tinham a proteção dos humanos contra os possíveis predadores. Na Índia, as grandes estepes, com gramíneas e herbáceas, permitiam ao homem conduzir rebanhos de Bos-indicus, o boi indiano, para as regiões onde os capins eram mais suculentos. Em troca, as vacas davam leite, bezerros e todo o rebanho produzia grande quantidade de esterco, que, uma vez seco, se transformava em elemento fundamental para os afazeres domésticos e calefação, dado que era quase impossível, somente com a coleta das gramíneas nativas, realizarem essas atividades; já na forma de esterco isso era possível.

Em outras partes do mundo, o mesmo fenômeno da domesticação aconteceu à mesma época. É o caso do arroz africano e do sorgo e outras frutas, como melancia, por exemplo. Entretanto, um dos casos mais emblemáticos, embora poucos animais foram aí domesticados, é o caso das Américas. Neste continente, tanto ao norte como no centro e no sul, houve uma proliferação muito grande de cultígenos como o feijão, de origem norte-americana e sul-americana, do algodão, também norte e sul-americana, o milho de origem mexicana, mas que logo se espalhou por toda América; o tomate, a pimenta, o pimentão, na América Tropical. Também, é nesta região onde foi domesticada a mandioca, que pode ser consumida crua, cozida, assada e ainda pode ser processada em vários tipos de alimentos, como a crueira, o polvilho, o beiju e o mais antigo alimento desidratado que se conhece: a farinha, de grande utilidade. Neste rol de domesticações importantes da América, podem ser incluídas a abóbora ao norte, a batatinha originária do sul do Chile e que se espalhou pela América do Sul, a batata-doce, o cará, a taioba, além da quinoa e outras leguminosas sul-americanas. Mas diferentemente do Velho Mundo, onde houve grande domesticação de animais como bovinos, suínos, ovinos, caprinos, galináceos, na América no máximo três espécies foram domesticadas: a lhama, a chinchila e o peru.

Das milhares de espécies que nossos ancestrais caçadores e coletores lidavam, apenas algumas se mostraram aptas para a agricultura e o pastoreio. No caso do pastoreio, a domesticação é feita para que o animal forneça uma série de produtos, leite, ovos, crias, pelos, couros e, por fim, a carne. Em síntese o animal vai sendo consumido aos poucos. Em muitos rincões do Planeta, os animais não tinham essas características, criá-los para consumir sua carne era necessária muita energia, era mais fácil uma incursão de caça para conseguir tal objetivo, como é o caso da fauna nativa que conseguiu sobreviver no Brasil, nenhuma das espécies fornecem leite em quantidade ou outros produtos, somente carne, ossos e algum tipo de couro.

Por volta de 5.000 anos Antes do Presente, o processo de domesticação de plantas e animais chega ao fim. E mesmo hoje em dia, com toda a tecnologia que a humanidade possui, 90% dos alimentos que se consome vêm das plantas e animais domesticados pelos primeiros agricultores, o restante, refere-se às melhorias causadas pela manipulação genética. Antes de 10.000 anos, toda a humanidade era caçadora-coletora. Em breve, provavelmente nenhuma o será, as populações humanas que assim vivem serão extintas, civilizadas ou corrompidas, dependendo do ponto de vista.

A humanidade (claro que estou falando sempre no geral) dá então um grande salto em relação aos demais seres viventes da Terra. Aprende a moer grãos, inventa instrumentos agrícolas como a foice, a enxada, inventa a cerâmica, o tecido, escava as primeiras minas. E, de um modo geral, de nômades passam a sedentários. Esta é a grande Revolução Neolítica, ela faz a humanidade dar um salto maior do que nos 2 milhões de anos de história.

A partir de então, formaram-se os primeiros núcleos humanos, na verdadeira concepção sociológica, que nos milênios seguintes vão se transformar nas primeiras cidades e depois nos impérios do período designado pela história de antiguidade. No contexto dos impérios da antiguidade, são formadas as grandes correntes religiosas, tanto as ocidentais como as orientais, cujos princípios chegam até os dias atuais. Nesse período, os homens sentem na própria pele os efeitos cíclicos do clima e no ano em que suas plantações não são suficientes eles partem em hordas bélicas para atacarem outros povos que por ventura tiveram abundância. E, nessas circunstâncias, instalam-se as guerras. Ao vencedor cabem as migalhas. Muitos afirmam que é nesta época que florescem as artes, talvez estejam agindo dessa forma porque lhes faltem uma visão global de toda a humanidade, porque a arte rupestre por exemplo, já era companheira inseparável dos caçadores-coletores.

Da mesma forma, dizem da florescência da filosofia sistematizada pelos gregos, como se os caçadores-coletores já não tivessem um sistema filosófico repleto de pensamentos abstratos e concretos.

Entretanto, uma nova coisa extraordinária acontece nesse contexto: a invenção do alfabeto fonético, este, sim, trouxe para humanidade uma nova forma de ser, tanto individual quanto coletiva e traz no seu bojo o gérmen do pensamento científico.

Segundo Muraro (1969), a invenção do alfabeto veio romper em estilhaços toda estrutura da sociedade primitiva, abriu as sociedades até então fechadas sobre si, imersas no mundo oral e mágico para o pensamento abstrato, dependente de uma atividade essencialmente visual. Este é um raciocínio verdadeiro. No entanto, esse fato embora trouxesse um potencial de possibilidades que pudesse conduzir o homem para uma visão de globalidade, seu maior legado foi a noção de que o homem se sentia ainda mais um ser superior e a cada tempo que se passava foi afastando da natureza, ou melhor dizendo, dos outros elementos que compõem o meio ambiente.

O homem começa a se sentir onipotente. As consequências da palavra escrita são discutidas em profundidade por Mac Luhan (1) e por Muraro (2). A leitura desses autores reforça a ideia de que, além de não perder seu espírito predatório e egoísta, o homem adquire mais uma característica, o individualismo.

Outros inventos da antiguidade, como a roda, o papiro, a estrada, a catapulta, os metais e o uso do petróleo em estado bruto, foram criados a partir das necessidades geradas pela competição entre vilas, cidades, castelos e impérios.

Uma pequena ressalva deve ser observada neste ponto. Todos os impérios do mundo, lograram seus êxitos com base numa sociedade escravagista. Isto aconteceu na África, no Oriente Próximo, no Extremo Oriente, na Europa, na Meso-América e na América do Sul. O Império Incaico, por exemplo, estendia seus domínios dos Andes até o rio Paraná.

Esta situação durou até o século 15, quando algo novo aconteceu: a invenção da Imprensa por Gutenberg, baseando-se no sistema de prensa já utilizado na China, há pelo menos 300 anos. Gutenberg criou um sistema de tipos móveis que permitia a composição de páginas inteiras. E, aperfeiçoando o sistema da prensa chinesa e utilizando o papel também vindo da China e largamente já utilizado na Europa, com uma vantagem singular sobre o papiro e o pergaminho, criou um sistema de impressão e por isso é considerado o pai da Imprensa. A criação da imprensa foi um marco revolucionário. O primeiro grande fruto da Imprensa foi o livro, que é considerado o primeiro objeto fabricado em série. A imprensa através do livro trouxe para humanidade uma maior democratização da cultura, mas trouxe também uma nova técnica, a mecanização, cuja principal característica é a capacidade de produção em série. Trata-se de uma extensão das funções humanas de consequências profundas. A mecanização permitiu o advento de vários modelos de máquinas, que foram ao longo do tempo se aperfeiçoando e se transformando em grandes forças produtivas, permitindo um grande acúmulo de capitais para aqueles que detinham a propriedade dessas. E, pela primeira vez na história, a humanidade viu aumentar a margem entre o lucro e a vida.

Todavia, enquanto a humanidade colhia os frutos da mecanização com todas as suas consequências: especialização, urbanização etc., algo novo aconteceu: a invenção da tecnologia elétrica. O símbolo da nova era da humanidade, ou seja a idade elétrica, pode ser considerado a invenção da lâmpada incandescente. Este fato marca o início do século 20; isto significa que foi um evento recente, ou seja, muitos que estão lendo essa crônica nasceram no século 20. A lâmpada elétrica terminou com ciclo natural da escuridão e permitiu além de outras atividades o estudo e o trabalho noturno. As antigas máquinas foram aperfeiçoadas. A nova jornada de trabalho, associada às novas e mais ágeis máquinas, aumentou ainda mais a concentração de capitais nas mãos dos que detinham os meios de produção.

Mas a idade elétrica permitiu também vários avanços nas ciências e na tecnologia cujo aparecimento só foi possível graças à eletricidade. Surgiram o telégrafo, o telefone, o rádio, a televisão, os automóveis, o avião, o cinema e várias novas indústrias, incluindo as farmacêuticas, os fertilizantes e o início da mecanização da agricultura. Surgiram venenos para combater as várias pragas que causavam epidemias da humanidade como a peste bubônica, a doença de chagas, a malária, a doença do sono, transmitida pela mosca tse-tse, a cólera, a dengue e assim por diante. Também surgiram as vacinas e o antibiótico. Entretanto, foi na idade elétrica que aconteceram as duas grandes guerras mundiais, em ambas a ciência associada à técnica cresceu de forma vertiginosa, até permitir que a humanidade manipulasse a fissura nuclear, cujo fruto, a bomba atômica, usada contra os japoneses, coloca fim à segunda guerra, já quase na metade do século 20. No entanto, o final da segunda guerra mundial fez com que a humanidade começasse a desenvolver projetos científicos e tecnológicos de forma alucinante: foi assim com os foguetes para bombardeio.

 Em 1948, o mundo científico de modo geral vai se acostumando a usar de forma mais frequente a palavra cibernética, termo que vem do grego (kybernetes), que significa aquele que governa. Com a cibernética, nasce a era da automação, a quarta grande revolução na história da humanidade, chamada de Revolução Eletrônica; seu precursor foi o físico austríaco Norbert Wiener.

Todos os grandes inventos que surgiram depois foram frutos dos cálculos efetuados pelos computadores eletrônicos, que a cada momento se sofisticavam ainda mais, até chegarmos ao quadro atual. Com o auxílio do computador, foi possível a construção de máquinas nunca antes imaginadas, grandiosas e potentes. Com elas o homem conquistou o espaço, ocupou todos os rincões para novos empreendimentos agrícolas e pastoris, mudou os cursos dos rios, secou mares, aplainou montanhas e manipulou a genética humana vegetal e animal.

De modo geral, incrementou a comunicação via satélite, em níveis jamais imaginados, mudou de forma avassaladora os ecossistemas da Terra, continuando a obra iniciada pelos caçadores coletores. A grande diferença entre a tecnologia elétrica e a tecnologia eletrônica reside no fato de que os computadores foram projetados para funcionar iguais aos neurônios do cérebro humano. Na realidade, a computação trouxe para a humanidade grandes revoluções, e criou um mundo de relações instantâneas. Mas é importante destacar que a aldeia global pensada nos parâmetros de Mac Luhan não se concretizou, primeiro porque os grandes meios de comunicação ficaram nas mãos de corporações ou órgãos estatais, onde 80% ou mais do conteúdo veiculado refletem seus interesses e ideologias. Essas corporações, explorando ao máximo a fragilidade das massas, advindas da nova situação econômica, montou programas sensacionalistas, contribuindo dessa forma para uma crescente alienação da população. O lema é simples: quanto mais alienada for a população, mais fácil fica para semear as searas.

A popularização e a crescente vulgarização das comunicações virtuais se transformaram numa bússola sem ponteiros, onde os usuários se vêm mais perdidos que orientados. Em outras palavras, é mais indicado pensar a globalização na concepção de Milton Santos, onde ressalta que a conquista do território e a imposição de uma ideologia dominante é o que caracteriza este novo fenômeno. Assim é que ao chegarmos ao século 21 temos a certeza absoluta de que a humanidade, além de não abandonar seu espírito predatório, ainda anexou à sua disposição mecanismos capazes de conduzir à sua própria extinção. Não sabemos como os seres humanos evoluirão daqui para o futuro, ou se serão extintos, por causas naturais ou por fatores criados pela própria espécie. Casos que envolvem extinções são corriqueiros na história evolutiva da Terra.

 

DE VOLTA A UM PASSADO RECENTE

Neste subtítulo De volta a um passado recente, que bem poderia ser uma reflexão sobre o presente, o objetivo é exaltar a educação multidisciplinar. Talvez esse novo e desafiador modelo traga para a humanidade um fiapo de esperança. Em seu livro “Estórias para quem gosta de ensinar”, o educador Rubem Alves nos brinda com uma fábula do mundo das aves, muito rica em todo seu conteúdo. Assim diz o autor: “Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em que os bichos falavam... Os urubus, aves por natureza becadas, mas sem grandes dotes para o canto, decidiram que, mesmo contra a natureza, eles haveriam de tornar grandes cantores. E para isso fundaram escolas e importaram professores, gargarejaram dó-ré-mi-fá, mandaram imprimir diplomas, e fizeram competições entre si, para ver quais deles seriam os mais importantes e teriam a permissão para mandar nos outros. Foi assim que eles organizaram concursos e se deram nomes pomposos, e o sonho de cada urubuzinho, instrutor, em início de carreira, era se tornar um respeitável urubu-titular, a quem chamam por Vossa Excelência.

Tudo ia bem até que a doce tranquilidade da hierarquia dos urubus foi estremecida e a floresta foi invadida por bandos de pintassilgos tagarelas, que brincavam com os canários e faziam serenatas com os sabiás... Os velhos urubus entortaram o bico e convocaram pintassilgos, sabiás e canários para um inquérito – onde estão os documentos de seus concursos? E as pobres aves se olharam perplexas, porque nunca haviam imaginado que tais coisas houvesse. Não haviam passado por escolas de canto porque o canto nascera com elas. E nunca apresentaram um diploma para provar que sabiam cantar, mas cantavam, simplesmente...

- Não, assim não pode ser. Cantar sem titulação devida é um desrespeito à ordem.

E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta os passarinhos que cantavam sem alvarás...

O que se quer dizer é que em terra de urubu diplomado não se ouve canto de sabiá.

A fábula acima reflete o que também pensavam Paulo Freire, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, posicionados entre os maiores filósofos da educação do século XX. Eles foram unânimes em afirmar: que o maior analfabeto não é aquele que não sabe ler, mas aquele que lê mas não entende o que leu. Em outras palavras é aquele que não entende e não enxerga os sinais que a realidade atual insiste em colocá-los bem à nossa frente e que bailam diante de nós, como borboletas diante das plantas floridas.

A espiral da ignorância analfabética chegou ao ápice nos tempos atuais, onde produção de conhecimentos, produção cultural, saberes e culturas tradicionais de nada valem diante da burocracia, tal qual uma cerca mal feita de arame farpado que tomou conta das escolas públicas, contribuindo para a falência da educação, cujo desempenho dos mais letrados urubus é incapaz de gorjear uma nota afinada e a escola incapaz de propor uma Pedagogia da Esperança, ou para a Esperança.

...O caminho para o êxito, pode se assemelhar a uma encruzilhada, mas a sabedoria, conhecimento e discernimento podem apontar o rumo correto.

O primeiro, discernimento, é a clareza referente ao conceito de tempo, claro que neste espaço é impossível discuti-lo em profundidade desde Einstein, Hawking, Prigogine e as ideias modernas sobre a Teoria do Caos, ou mesmo sobre os Fractais e Efeito Borboleta. Mas seria de grande utilidade que se levasse em consideração alguns tipos de tempo: o tempo cosmológico, medido em vários bilhões de anos, o tempo geológico calculado em alguns bilhões, milhões e milhares de anos; o tempo da humanidade calculado em alguns milhares de anos, o tempo do homem, calculado em algumas décadas, e o tempo da sobrevivência, que é aquele tipo de tempo que se situa no fio da navalha e, por isto, está bem no limite entre a vida e a morte, entre as perspectivas e as desilusões, entre a alienação total e a busca da felicidade. Para este tempo, os remédios devem ser emergenciais, porque o tempo da sobrevivência não tem tempo de esperar.

Atualmente, torna-se impossível compreender fenômenos científicos, sociais e comportamentais, tomando como princípio os paradigmas tradicionais que fundamentaram o pensamento científico dos séculos XVIII, XIX, XX e até os do século XXI. Isto porque estamos presenciando a maior revolução da história da humanidade, onde o espaço entre um evento revolucionário e outro diminui com o tempo. O que se presencia, atualmente, não é somente uma revolução política, social ou econômica, mas uma revolução global – a revolução do próprio Homem.

... Quando parte da humanidade percebeu que seus modelos de se relacionar com os outros elementos que compõem o Meio Ambiente poderiam abreviar sua passagem como espécie pelo planeta Terra, ficou em posição de alerta.

Organizou uma conferência mundial para discutir o assunto. Isto aconteceu em Estocolmo 1972. Vinte anos depois, foi realizada uma outra conferência sobre o mesmo tema, denominada Rio 92. Entre uma conferência e outra, houve eventos menores visando protocolar ações concretas.

Estas conferências, reuniões, discussões e protocolos, trouxeram vários conhecimentos. Entre estes, figura o que possibilitou à humanidade perceber que não passa de uma espécie a mais no Reino Animal, cujo êxito de sobrevivência na Terra depende da interação harmoniosa dos diversos componentes do Meio Ambiente: atmosfera, hidrosfera, litosfera, biosfera, ventos, regimes climáticos, relevos, ruídos, fogos, energias etc. Entretanto, se por um lado veio o conhecimento, por outro faltou a conscientização. Esta exige mudanças radicais de atitudes e postura. Isto não aconteceu.

O que se pretende enfatizar é a ideia de que somente o conhecimento do problema, não é suficiente para sua solução. Para que isto aconteça torna-se necessária a tomada de atitudes concretas. Os caminhos para a busca da solução são vários e podem ser mais eficientes se forem interconectados. Estes caminhos, por um lado, exigem um novo padrão de educação, o que pressupõe incentivo à criatividade, à pesquisa e à busca de uma nova metodologia pedagógica. Por outro lado, exigem políticas públicas fundamentadas no conhecimento e que levem em consideração as vocações regionais. Faz-se necessário que se combata a miséria e faça o resgate da dignidade humana. É possível que algumas soluções possam exigir também mudanças, às vezes radicais, na orientação política e econômica.

Se mensurarmos global ou regionalmente as situações ambientais, que não podem ser separadas das questões sociais e econômicas, desde o momento em que se realizou a primeira conferência em Estocolmo, até os dias atuais, constataremos que a qualidade de vida piorou, em função da predação ambiental e da predação social e econômica. Neste período, a retirada da vegetação nativa aumentou de maneira assustadora, os cursos dos rios foram alterados, montanhas aplainadas pela atividade mineradora, os aquíferos diminuíram seus reservatórios de água, a violência urbana, tal como fogo em palheiro, tomou proporções antes inconcebíveis, o tráfico de pessoas tornou-se atividade rotineira, as diversas formas de neuroses aumentaram e assim por diante.

No meu modesto modo de ver o mundo, atribuo grande parte desses fatores à falta de criatividade e de idealismo. A criatividade é a matriz da competência. Sem criatividade não há idealismo. E a falta de idealismo reflete a falência da sociedade, e obriga os que buscam a consciência, e consequentemente a liberdade e a felicidade, a entrarem por caminhos ideológicos e tortuosos, às vezes nunca imaginados.

Na base de todas estas questões se encontra a educação. Neste sentido, as escolas, tanto as fundamentais, como as básicas e as superiores, que por algum tempo eram tidas como continuadoras da família, há muito deixaram de exercer esta função, mergulharam num pântano de lodo mal cheiroso e movediço que suga a criatividade.

Os professores não conseguem a motivação necessária para transmitir o conteúdo. Isto acontece, porque o conteúdo não traz novidade e não é mais motivador. Grande parte dos alunos já conhece, por outros meios, aquilo que lhes é transmitido. A aula dentro da sala perde o interesse e o sentido. A escola, que outrora se constituía num ponto de encontro para se fazer amizades, trocar ideias e aprender novidades, não é mais nada disso. Hoje, as redes sociais desempenham este papel, às vezes de forma imoral, mentirosa e alienadora.

Grande parte das escolas básicas e fundamentais carece de pátios ideais para brincadeiras, não tem bibliotecas, muito menos equipamentos para dinamizar uma aula. E nem sequer de longe pode-se mencionar que não possuem laboratórios. Isto é muito luxo, para quem acha que o ensino não necessita de experiências.

Os professores se sentem desmotivados não só pela remuneração. Aliás, para quem nunca ministrou uma aula, pode-se afirmar que não há, na terra, tarefa mais exigente, responsável e cansativa. Porém também sentem-se desmotivados, porque não são mais respeitados pelos alunos. As associações sindicais de pais de alunos, apoiadas pelos meios de comunicação sensacionalistas, são capazes de levar um professor à “Justiça” se este, no intuito de impor a disciplina, alterar um pouco a sua voz na sala de aula.

Aliás, por falar em disciplina, as escolas hoje em dia são vigiadas por policiais, porque viraram pontos de compra, venda e consumo de alucinógenos. A falta de perspectivas faz o aluno buscar esses caminhos.

Sabemos que não se trata de uma tarefa fácil. A influência do efêmero funciona como uma venda nos olhos que impede vislumbrar as atitudes duradouras e possivelmente eternas, que possam ser tomadas a favor da educação, cuja eficácia é a base de toda sociedade sólida, com valores que perpassam muito tempo e se adaptam com o próprio tempo. Esta palavra foi repetida, para que não esqueçamos do tempo.

Voltei ao passado utilizando uma fábula avícola. Termino-a não com uma fábula mas com a história real e comovente de uma outra ave, o Dodô, para que dessa história saibamos garimpar sabedorias e de mãos dadas com esta sabedoria, possamos caminhar em direção ao arco-íris. E possamos entender o porquê do subtítulo DE VOLTA A UM PASSADO RECENTE.

Contam que o saudoso Douglas Adams, comoveu-se com o triste caso do Dodô. Por causa disso, em um dos episódios da série Doctor Who que ele escreveu para o rádio nos anos 1970, a sala do idoso Professor Chronotis, em Cambridge, fazia às vezes de máquina do tempo, que ele usava para um único propósito, seu vício secreto: as visitas repetidas às Ilhas Maurício, onde ele vai chorar pelo Dodô. Por causa de uma greve na BBC, esse episódio nunca foi transmitido, e mais tarde Douglas Adams reciclou o persistente motivo do Dodô em outra novela denominada Agência de Detetives Holística.

Numa certa ocasião, o conto do Dodô caiu nas mãos de um benquisto professor universitário. Ao lê-lo, o professor comovido de tanta emoção não suportou suas lágrimas, seus olhos marejaram e ele com vergonha dos alunos escondeu num canto do corredor. Foi quando alguns alunos se aproximaram e perguntaram:

- Porque choras professor?

E assim rodeado de alguns alunos, com ar professoral de sempre e com sabedoria, o professor respondeu:

- Choro pela triste história do Dodô!

Percebendo que seus alunos não entenderam, começou a explicar:

- Dodô era uma ave indefesa que habitava as Ilhas Maurício, localizada no oceano Índico, descoberta por marinheiros portugueses e holandeses. Após uma série de atrocidades cometidas por estes, esta foi completamente extinta.

Os ancestrais do Dodô chegaram até o local hoje denominado Ilhas Maurícias ou Maurício, ainda aladas. Com o passar dos tempos, a seleção natural que está sempre mexendo nas espécies, diminuindo, expandindo, ajustando, pondo e tirando, otimizando o êxito reprodutivo imediato, contribuiu para que os dodôs perdessem as asas, pois não precisavam mais delas, especialmente porque não encontraram predadores na ilha e, assim, por milhares de anos, viveram e construíram suas colônias.

Quando os navegantes portugueses chegaram a Maurício em 1507, os abundantes dodôs, grandes aves que chegavam a pesar até 15 quilos, eram completamente mansos e se aproximavam daquelas novas figuras, sem receio ou desconfiança, já que por milhares de anos não haviam confrontado com predadores. Os infelizes dodôs foram mortos a pauladas pelos portugueses e mais tarde pelos holandeses. Muitos foram mortos por esporte. A extinção veio a galope. Como é comum, ela ocorreu por uma combinação de fatores. Os humanos introduziram na ilha cães, porcos, ratos e refugiados religiosos. Os cães os caçavam de forma esbaforida, os porcos e ratos comiam seus ovos, os humanos plantavam cana-de-açúcar e destruíram os seus habitats.

Chorar pelo Dodô, me remete a todas estas situações e outras mais, por isto, choro também por aqueles que o modelo fez com que perdessem seus territórios, choro pelos sem teto, choro pelos que foram enganados, choro por aqueles que o sistema fez perder o amor pela vida, choro pelos que tem fome.

Mas gostaria de lhes falar também, que por detrás de todo este chorar, que se manifesta de forma explícita, esconde um choro ainda mais dolorido, que procuro esconder, para que ninguém possa ver meus olhos marejados. Este choro é pelos elementos fundamentais que a educação perdeu, principalmente a dignidade, o respeito, o entusiasmo e o orgulho de ser professor. Para mim ele é o sinônimo da própria vergonha, por isso procuro chorar escondido e bem baixinho. Sinto vergonha da incapacidade de não poder ter evitado os tenebrosos caminhos que conduziram a educação para a situação em que se encontra.

E por último, dirigindo-se aos alunos ainda falou:

- A compreensão da realidade atual cibernética, a inércia na tomada de atitudes radicais, a falta de conscientização, a abdicação do papel fundamental da educação na formação de cidadãos conscientes, e o abandono da busca da felicidade e liberdade, são situações que somente poderão ser explicadas, ou talvez compreendidas, através da mudança radical dos padrões de como vimos o mundo, e como o vemos atualmente. Para isto, a busca de novos paradigmas se torna imprescindível. Os que existem são incapazes de fornecer as respostas necessárias para acharmos o caminho do êxito e do equilíbrio.

 

Se falharmos nesta missão, é possível que tenhamos o mesmo destino dos saudosos dodôs, mas certamente não sobrará ninguém para chorar por nós.