sábado, 23 de fevereiro de 2008

Adeus, Nêgo D'Água



O fim do protesto de d. Luiz Cappio, explicitado através de um jejum de vários dias, associado à decisão do Supremo Tribunal Federal de ordenar a retomada das obras para a transposição do Rio São Francisco, funcionou como uma ducha de água fria, despejada em todos os movimentos que têm uma visão diferenciada da posição oficial sobre a transposição. E, apagou de vez a esperança quanto a capacidade de diálogo dos governantes.

Desde aquela época, quase nada se escreveu sobre o tema. Retomamos o assunto, para que fique registrado nos Anais da História da Humanidade, o fato de que nós pesquisadores coerentes com os princípios atuais do nosso conhecimento, não fomos omissos. E, enquanto os dados e raciocínio não apontarem em outra direção, jamais deixaremos de lutar contra este projeto erroneamente denominado pelos burocratas oficiais de Integração de Bacias.

O argumento até então utilizado, que fundamentou nossa posição, sempre foi baseado em dados científicos, levando em consideração a história da evolução geológica regional, o estado de degradação atual do Cerrado, bem como sua história evolutiva. O argumento de que agora faço uso se baseia na etnologia do imaginário das populações ribeirinhas do vale do São Francisco. Neste universo imaginário, em meio a símbolos e personagens, se destaca a figura do Nêgo D'Água.


Segundo a crença das populações ribeirinhas, habitantes do vale do São Francisco, este forte personagem atormenta seus sonhos, ataca os pescadores, viola lavadeiras desprevenidas, além da acometer outras tantas traquinagens. De acordo com os pescadores mais destemidos, nem as carrancas fincadas nas proas das embarcações conseguem assustá-lo, a única maneira de acalmá-lo, quando está disposto a parar as frágeis embarcações, é presenteá-lo com um bom pedaço de fumo de rolo. Daí a razão pela qual estes pescadores sempre carregam nas suas traias, tal tipo de material, para agradar o Nêgo D'Água enfurecido. Os pescadores ainda dizem que este estranho habitante do rio não gosta de ser chamado Nêgo D'Água e sim, Cumpade D'Água.


Cresci ouvindo estas histórias. Os ribeirinhos ainda contam que os Nêgos D'Água, ou melhor, Cumpades D'Água, vivem em bandos e habitam as locas que ficam escondidas nas barrancas do rio, vez por outra, saem da água para um banho de sol nos lajedos ou bancos de areia.


Sempre zombei da sua existência, porém diante da grande convicção dos ribeirinhos, minha descrença se assemelhava àquela descrença do ateu, que se apega aos santos antes de embarcar num avião.

Em épocas de grandes cheias do São Francisco, sempre corria até às suas margens, para certificar-me da existência destes personagens. Nunca os vi, e isto era motivo para povoar o meu imaginário de muitas zombarias, e acabava encharcado por um riso de criança vendo os estragos causados pelas corredeiras que arrastavam galhos, árvores, criações e outros elementos. Hoje, diante do panorama da transposição, nós pesquisadores temos elementos suficientes para prever que o leito do rio principal, bem como o de seus afluentes, vai minguar lentamente, expondo como conseqüência bancos de areia, acumulados pelo processo de assoreamento. Também antevemos expostos de forma assustadora, grandes barrancos ao longo do rio.


Se os Cumpades D'Água saírem das suas tocas para morrerem desidratados nos montes de areia, certamente terei a certeza de sua existência. Entretanto, no imaginário dos ribeirinhos eles são muito teimosos e, por esta razão, certamente morrerão alojados nas suas tocas. Aí, jamais saberei da sua existência.


De qualquer maneira o fato é muito triste, pois afeta o imaginário de milhares de pessoas, cujas conseqüências podem ir além da nossa imaginação. Aliás, a única certeza que nós estudiosos do assunto temos é de que a História, mais dia, menos dia, saberá julgar os autores da ação da transposição e os assassinos dos Cumpades.


Nesta perspectiva, retomo novamente o verbo na primeira pessoa do singular, para afirmar que dentro da minha simples e ao mesmo tempo complexa maneira de ver a vida, me remeto às zombarias e aos risos da minha infância, para pedir mil perdões aos Nêgos D'Água, pelo meu deboche. E eu que já ri tanto daquele rio, pelos bramidos de suas enchentes, daquele rio, eu não rio mais. Adeus!

Altair Sales Barbosa é professor titular do Instituto do Trópico Subúmido da UCG


PUBLICADO NO JORNAL "O POPULAR" DE GOIÂNIA EM 19/02/2008