sábado, 23 de julho de 2016

À PROCURA DO ARU-APUCUITÁ

(Carta aos professores)
Altair Sales Barbosa


Narra uma lenda indígena que, num período muito antigo, os remos para as canoas eram elaborados de uma madeira muito resistente e recebiam o nome de Aru-Apucuitá. Trata-se de um remo que numa extremidade tinha o formato de uma pá de forneiro, possuía um metro de altura, com empunhaduras bem trabalhadas. Com o tempo, os índios deixaram de fabricar os Aru-Apucuitá. Várias estações chuvosas se passaram desde então. E esse remo virou relíquia que sobrevive nas mentes e lembranças de alguns povos.

Segundo a mesma lenda, a pessoa que tiver a sorte de encontrá-lo, mesmo que seja um fragmento, basta retirar deste uma pequena farpa, colocar fogo numa das pontas e encontrará não só a felicidade e a liberdade, mas sua mente será iluminada na direção do caminho seguro...

... A aurora já chega com o prenúncio do início de um novo semestre letivo e os professores, qual pião em rodopio, buscam ordenar sua desordem ideológica, que mascara tempestades mentais, na ânsia da busca por motivações que possam transformar os alunos em agentes da história. E, na ilusão de que isto seja possível, dentro da realidade atual, por um instante se esquecem e desprezam as interferências dos mecanismos sociais que transformam a argila bruta, que é o homem ao nascer, numa estátua social, dando a esta as configurações do meio que a modelou. Este fenômeno é conhecido como socialização e pode ser entendido como um processo dinâmico através do qual o Homem se transforma num ser social. Quatro são os pilares básicos, nos quais este fenômeno se apoia: a Família, a Escola, a Igreja e os Grandes Meios de Comunicação de Massa, incluindo os Sistemas Cibernéticos.

Atualmente, a crescente desestruturação da família, causada por problemas de ordem econômica, ideológica, e pelas imposições do mundo moderno, contribuem para que, a cada dia que passa, esta exerça cada vez menos seu papel socializante.

"..... a Silvia  e o esposo já iniciaram o espetáculo ao ar livre. Ele está lhe espancando, e eu estou revoltada com o que as crianças presenciaram. Ouvem palavras de baixo calão. Oh! se eu pudesse mudar daqui para um núcleo mais distante."

A narrativa, até parece que foi extraída do noticiário da televisão ocorrido um dia anterior. Não foi. Trata-se de um pequeno trecho pinçado do livro “Quarto de Despejo”, de Carolina de Jesus, publicado em 1960. E só reforça a afirmação da precariedade do papel socializante da família.
As escolas, tanto as fundamentais, como as básicas e as superiores, que por algum tempo eram tidas como continuadoras da família, há muito deixaram de exercer esta função, mergulharam num pântano de lodo mal cheiroso e movediço, que suga a criatividade e faz seus dirigentes adotarem uma dança macabra, como se fossem fantasmas, diante de imposições ainda mais fantasmagóricas.
Os professores não conseguem a motivação necessária para transmitir o conteúdo. Isto acontece, porque o conteúdo não traz novidade e não é mais motivador. Grande parte dos alunos já conhece, por outros meios, o que lhe será transmitido. A aula dentro da sala perde, então, o interesse e o sentido.

A escola que outrora se constituía num ponto de encontro para se fazer amizades, trocar ideias e aprender novidades, não é mais nada disso. Hoje, as redes sociais desempenham este papel.
A maior parte das escolas básicas e fundamentais carece de pátios para brincadeiras, não tem bibliotecas, muito menos equipamentos para dinamizar uma aula. E, sequer de longe, pode-se mencionar que não possuem laboratórios. Isto é muito luxo, para quem acha que o ensino não necessita de experiências.

Os professores se sentem desmotivados não só pela remuneração. Aliás, para quem nunca ministrou uma aula, pode-se afirmar que não há na terra, tarefa mais exigente, responsável e cansativa. Porém, também sentem-se desmotivados, porque não são mais respeitados pelos alunos. As associações sindicais de pais de alunos, apoiados pelos meios de comunicação sensacionalistas, são capazes de levar um professor à “Justiça” se este, no intuito de impor a disciplina, alterar um pouco a sua voz na sala.

Aliás, por falar em disciplina, as escolas hoje em dia são vigiadas por policiais, porque viraram pontos de compra, venda e consumo de alucinógenos. A falta de perspectivas faz o aluno buscar esses caminhos. Por isso e muito mais, a escola tal qual a família não faz corretamente o papel de socialização e formação de cidadãos.

O terceiro elemento fundamental na tarefa de socializar é a Igreja. Entretanto, com a materialização crescente dos princípios sociais, norteados pela bandeira maior do capitalismo que estampa o consumismo e ainda, com a deturpação da doutrina básica do Cristianismo, para citar apenas o caso do Brasil, doutrina esta mutilada pelo economicismo, a que muitas seitas lançam mão para sobreviverem, enriquecerem e criarem impérios, faz com que haja a disseminação da descrença. E, quando esta não vem, em seu lugar surgem o fanatismo e a alienação, que podem ser considerados a encarnação da própria escravidão. Portanto, se a família não cumpre adequadamente o papel de socializar, a escola e a igreja, atualmente, o fazem muito menos.

Quem desenvolve com eficiência o papel de socialização e formação das mentes na sociedade brasileira são os Grandes Meios de Comunicação de Massa. Esses veículos, com uma força avassaladora, modelam os hábitos da sociedade brasileira, mudam horários de eventos tradicionais, de acordo com seus interesses, transformam em artistas quem não são, fazem o povo cantar músicas alienantes e depressivas, visando a irradiação da mediocridade, porque, quanto mais medíocre e sem consciência crítica fica o ser humano, também se torna mais fácil aceitar programas banalizantes, com altos índices de audiência etc. Assim, estes Meios vão contribuindo para a formação de cidadãos doentes, agressivos, neuróticos, angustiados, depressivos, e miseráveis globalmente. Uma vez submetidos às condições desfavoráveis, esses seres se deixam dominar sem outra reação qualquer, que a do conformismo, ante sala da alienação.

Este, de modo geral, é o tipo de sociedade que compartilhamos atualmente. Não há solidariedade, não há valor pela vida, não há exemplos de honestidade e a corrupção, qual cavalo selvagem, campeia relinchando pelas campinas graminosas. Assim, convivendo com estes exemplos, a utopia da construção de uma sociedade sadia se torna cada vez mais longínqua.

Por sua vez, o Governo brasileiro, através do Ministério da Educação (MEC), sem criatividade e talvez sem a competência necessária, cria a todo instante mecanismos autoritários, repressores, restritivos, que só reforçam a situação atual refletida pela sociedade brasileira. Inadvertidamente, Governo e MEC parecem contribuir para a manutenção deste quadro.

Movidos pela ideia errônea de que povo culto é aquele que tem diploma universitário, cometeram e vêm cometendo erros imperdoáveis, permitiram a criação de cursos universitários sem qualidade e a multiplicação desenfreada das faculdades pegue-pague.

Buscando corrigir essas distorções monstruosas que foram criadas, o Ministério da Educação tem lançado mão de instrumentos ineficazes e inoperantes, que ao invés de corrigirem as falácias, colocam numa mesma caixa vazia de bombom, ou melhor dizendo, num leito de hospital psiquiátrico, todas as Instituições de Ensino Superior, sem considerar suas peculiaridades, sua história, seu contexto, a importância e a vocação regional de cada uma.

Ao proceder desta forma, o MEC intervém de uma maneira nunca vista na história do autoritarismo brasileiro, impedindo o crescimento destas instituições tradicionais, restringindo suas ações de pesquisa, que é o fundamento da existência da própria Universidade, impedindo suas ações inovadoras e criativas, uma vez que as obriga a vestirem uma camisa de força para cumprirem, sem reclamar, as equivocadas exigências do Ministério.

O sistema avaliativo atualmente implantado para aferir as Instituições de Ensino Superior, quer seja através dos alunos, quer seja avaliando a própria instituição, está cheio de contradições e não se baseia num alicerce teórico sólido, que consiga expressar a real situação institucional. Isto porque não se toma em consideração a inserção social da Instituição avaliada, sua participação na formação da realidade regional, sua vocação, sua missão, tampouco a história e os contextos.

A impressão que fica é que essas ideias absurdas parecem que de repente, brotam da cabeça de pessoas que se julgam geniais, cujo trabalho se desenvolve em um cubículo cercado por quatro paredes, distante da realidade do território brasileiro, que é um continente, com inúmeras diferenças regionais, refletidas nas atividades econômicas, sociais e culturais, permeadas por uma diversidade ambiental de grandeza e significados incomensuráveis.

Esses sistemas de avaliação nos remetem ao episódio em que Charles Darwin foi avaliado pelo conselho de classe do Colégio no qual estudava. Na ocasião, o reitor desse Colégio expressou: “Trata-se de um péssimo aluno, não gosta das aulas de canto e chega a chorar quando tem que assistir e participar das aulas de balé. Seu negócio é observar as mariposas pousarem nos troncos das árvores. Parece um desajustado!...”

Em tempo, foi observando as mariposas que Darwin criou o conceito de mimetismo, que culminaria na ideia de seleção natural e evolucionismo, fundamentos que revolucionaram o pensamento humano.
Da mesma forma que o MEC está enganado e deve rever seus processos avaliativos, a CAPES e o CNPq deveriam revisar seus conceitos de pesquisa.  Não deixar que esses conceitos que brotam em cabeças de burocratas se transformem em obstáculos para o desenvolvimento dessas atividades no seio das verdadeiras Universidades brasileiras. Para aqueles que sempre cantavam ou cantam as canções de Vandré, é sempre oportuno recordar o que este compositor e poeta diz em uma de suas músicas:

"Não vai falar de amor quem nunca soube amar".

Isto se aplica a diversas áreas de atuação. Não pode traçar diretrizes para a educação ou para a pesquisa quem nunca foi educador ou pesquisador. Se insistir nesta tecla, poderá ser criada uma teia complexa de instrumentos impeditivos e desafinados.

A missão de ser professor e ou pesquisador é tarefa que exige vocação e aptidão, é claro, que associada ao conhecimento. Tentar relacionar a titularidade de doutor a pesquisador é uma atitude semelhante ao do Reitor daquele mencionado Colégio, querendo transformar Charles Darwin num dançarino de balé.

... Assim, por detrás desta realidade, às vezes vem aquela vontade louca de corrermos de nós próprios, ou procurarmos esconder um choro ainda mais dolorido, para que ninguém possa ver nossos olhos marejando. Talvez, a vontade de fugir seja pela falta de comunhão e o choro, seja pelos elementos fundamentais que a educação perdeu, principalmente a dignidade, o respeito, o entusiasmo e o orgulho de ser professor.  O que significa a encarnação da própria vergonha, por isso procuramos chorar escondidos e bem baixinho. Sentimos vergonha da incapacidade de não podermos ter evitado os tenebrosos caminhos que conduziram a educação para a situação em que se encontra.

Por outro lado, na esperança daqueles que sentem que não foram derrotados, afirmamos ser impossível tentar entender ou explicar a curvatura do universo, utilizando os parâmetros da Física Newtoniana ou da Geometria Euclidiana. O máximo que a física de Newton alcançou foi compreender a gravitação universal e a geometria de Euclides conheceu no máximo três dimensões. A compreensão da realidade atual cibernética, a inércia na tomada de atitudes radicais, a falta de conscientização, a abdicação do papel fundamental da educação na formação de cidadãos conscientes e o abandono da busca da felicidade e liberdade são situações que somente poderão ser explicadas, ou talvez compreendidas, através da mudança radical dos padrões de como vimos o mundo, e como o vemos atualmente. Para isto, a busca de novos paradigmas se torna imprescindível. Os que existem são incapazes de fornecer as respostas necessárias para encontrarmos o caminho do êxito e do equilíbrio.


Por isso, como professores ou pesquisadores, mesmo nadando contra fortes correntezas, nunca perdemos a esperança. Quando em campo, ficamos vasculhando os barrancos dos rios por onde andamos, sempre à busca de um fragmento do Aru-Apucuitá. 

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