segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

A Mordaça dos Inocentes

Por que o título de Patrimônio da Humanidade para a Cidade de Goiás é discutível

Na euforia de se comemorar os 500 anos do início da colonização por-tuguesa no Brasil, movimentos de todos os matizes eclodem pelos diversos cantos do País, alguns autênticos, outros ridículos.

Por essa vereda, às vezes nem tanto luminosa, iniciou-se um movimento para transformar o sítio urbano da cidade de Goiás em Patrimônio da Humanidade. Quando os portugueses chegaram aonde hoje se situa a cidade de Goiás a região já era densamente habitada. Há mais de 550 gerações, os índios já faziam da Serra Dourada, que docemente lavava seus pés no rio Vermelho, a sua morada constante e o local onde recolhiam seus sustento. Daí tiravam os frutos, os remédios, a lenha e todos os utensílios.

A colonização portuguesa chegou aos sertões de rio Vermelho no final do século XVII. Nessa época, os antigos índios caçadores e coletores haviam já dominado a tecnologia da cerâmica e da agricultura e construído aldeões que abrigavam mais de 1.200 pessoas.

Os colonizadores portugueses, apoiados por uma sangrenta ideologia, chegaram fortemente armados. Estavam à busca de pedras preciosas e escravos. Pilharam as roças dos índios, violentaram as mulheres, trouxeram doenças desconhecidas, incentivaram a guerra entre as nações indígenas, para enfraquecê-los.

Os religiosos que acompanhavam esses destacamentos armados tentaram converter os índios em cristãos. Muitos índios conseguiram fugir, os que não conseguiram foram aldeados, depois catequizados, mais tarde exterminados. E assim esses novos conquistadores, sob a égide do poder religioso e do poder político, foram expulsando os primeiros habitantes da região e às custas de chibatadas no lombo dos escravos foram edificando seus símbolos de poder, na forma de um sobrado aqui, outro ali, uma igreja, um palácio etc.

Modificaram as condições do rio, no afã de pepitas preciosas. No lugar onde os índios tinham suas roças, implantaram novos roçados, com a força do luzir da foice e da enxada do negro. Trouxeram frutas estranhas, como a manga e a fruta-pão originárias da Ásia, trouxeram lima, limão, laranja, banana e pastos estranhos para um novo e estranho animal recém-introduzido. Assim é que, de repente, sem planejamento os núcleos mineradores se transformaram em núcleos urbanos. Isso foi há bem pouco tempo. Os descendentes desses colonos se julgam os autênticos representantes da cultura goiana.

Ao se levantarem, limpam seus dentes com creme dental, inventado na Europa e difundido pelo capital americano. Sentam-se à mesa para tomar seu café com bolo de arroz. O café é de origem arábica e o arroz asiático. Se deliciam com o saboroso empadão , cuja massa é feita de trigo, originário do velho Mundo, temperado e recheado com cebola, lingüiça, azeitona e batata. Desses, o único ingrediente nativo é a batata. No café da tarde, às vezes uma vaga lembrança do índio, a tapioca de origem indígena, misturada com queijo de origem européia, dá origem a um delicioso pão-de-queijo.

Não satisfeitos esses autênticos representantes da falsa cultura nativa, às vezes, saboreiam o que chamam de típica pamonha, cujo milho domesticado no México e irradiado para a Cordilheira dos Andes já fazia com que os índios andinos conhecessem a pamonha há mais de 5 mil anos.

Nas sobremesas , esses autênticos nativos juram servir guloseimas típicas endêmicas, servem o alfenim, de origem árabe/portuguesa, e doces cristalizados de figo, laranja, limão, todos de origem exótica. Seus festejos mais tradicionais, na realidade, são um ato de violência que o mundo há muito tenta esquecer. Trata-se de homens encapuzados perseguindo um pregador da paz e do amor.

Quando os encapuzados vencem, o justiceiro é crucificado. A elite delira: é a ânsia e então seus representantes da falsa cultura na-tiva vestem seus ternos de cashemir inglês, calçam seus sapatos de cromo alemão e vão até um teatro ouvir músicas medievais, tocadas por flautas, clarinetes, fagotes, piano. Todos instrumentos que certamente foram importados.

E então os falsos sábios dessa cultura se deliciam e, por um lapso de momento, se identificam com sua real cultura.

Hoje, essa elite luta para preservar os símbolos do poder que a identificam e procura transformá-los em patrimônio da Humanidade. Este pequeno relato mostra como esse patrimônio foi construído. À custa da violentação das mulheres indígenas, da extinção de milhares de índios, da pilhagem, das chibatadas no lombo dos negros escravos e do grande prejuízo ambiental.

É louvável a luta daqueles que querem transformar em Patrimônio da Humanidade parte desse complexo arquitetônico, porque de fato isto é passado, embora paire na cabeça de alguns uma deturpada concepção de passado. Em todo caso é louvável, mas que este tipo de relações sociais não seja tomado como exemplo para a humanidade futura.

Foto de Paulo J.S.

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