segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Enganaram o Bispo



Bendito seja louvado o ato do bispo da Diocese de Barra, Bahia, dom Luiz Flávio Cappio, por tomar a atitude de jejuar e chamar a atenção dos brasileiros para um problema gravíssimo: o projeto de transposição do rio São Francisco que, sorrateiramente, está sendo preparado pelos técnicos e burocratas do Governo Federal sem uma discussão maior e profunda com a comunidade científica brasileira e também com a população. Afinal de contas, o rio São Francisco é o mais brasileiro de nossos rios maiores. Ele nasce e deságua em terras brasileiras.

O Bispo chamou a atenção para um assunto muito mais complexo do que se imagina. Por isso, precisa ser ouvida a honesta comunidade científica brasileira, para que, ao tomar sua decisão final, o Governo não se restrinja às opiniões de seus técnicos nem às opiniões de técnicos ligados às empreiteiras da obra. Porque estes, para usar uma expressão nordestina, são cabras desmoralizados, que só pensam em engordar suas contas bancárias, ou rechearem suas cuecas. Portanto, o ato de Dom Cappio abre a possibilidade para que a imprensa colha informações dos cientistas brasileiros e leve o problema, de forma correta, ao conhecimento do povo.

Infelizmente o Bispo foi enganado e parece que sua luta chegou ao fim, a não ser que tome outras atitudes corajosas; caso contrário, cairá brevemente no esquecimento da fraca memória do povo brasileiro. Foi enganado pelos Doutores da Lei da própria Igreja Católica, que publicamente condenaram o seu ato, recorrendo a não sei que tipo de lei para justificarem suas posições contrárias.

É preciso lembrar que o verdadeiro cristianismo se constrói com coragem, determinação, amor, sabedoria e radicalismo, no sentido de se cortar o mal pela raiz. O próprio Jesus Cristo, antes de tomar atitudes, tidas como revolucionárias, tinha o hábito de jejuar. E, nos seus ensinamentos, diz ser o jejum um ato purificador e de coragem. Foi enganado também pelos ministros e técnicos do Governo Federal, que o procuraram para garantir que faria a obra, porém antes se comprometeria a fazer a revitalização do rio São Francisco.

Senhor Bispo, a revitalização do São Francisco não depende da boa vontade do Governo, nem de decretos ou Medidas Provisórias. Também não depende do nosso amigo São Pedro, controlador das torneiras do céu, porque se algum dia for possível revitalizar o São Francisco é preciso levar em consideração o tempo da natureza, que é medido em milhares e milhões de anos. Portanto, é diferente da escala de tempo, que regula o mandato dos governantes.

O rio São Francisco nasce no Cerrado de Minas Gerais, num local denominado Serra da Canastra, e percorre mais de 3.000 km até chegar ao Oceano Atlântico. Ao longo desse percurso, vai engrossando suas águas, principalmente com seus afluentes da margem esquerda, que formam as sub-bacias do rio Paracatú, do rio Urucuia, do rio Carinhanha, do rio Corrente e do rio Grande. Todos esses rios e seus alimentadores menores estão morrendo a cada hora que passa. Alguns já desapareceram para sempre. Isto acontece porque os dois grandes aqüíferos que fazem o São Francisco brotar e o alimenta ao longo do seu percurso, conhecidos como Aqüífero Bambuí e Aqüífero Urucuia, estão secando.

Para entender este fato é necessário recuar no tempo, pelos menos 35 milhões de anos. É nesta época que surge o cerrado que, com seu sistema radicular complexo, começou a reter as águas das chuvas que caíam principalmente nos Chapadões do Noroeste de Minas e Oeste da Bahia, Distrito Federal e Nordeste Goiano. Essas águas primeiro são armazenadas nas rochas moles que formam o lençol freático; depois, pela abundância, infiltram pelas brechas das rochas e se acomoda nos lençóis profundos também chamados de artesianos. No Bambuí, que é calcário, esta água, após atravessar a Formação Urucuia, que é arenosa, se armazena nas imensas galerias comuns às formações calcárias. No Urucuia, a água, com o tempo, foi formando grandes reservatórios que se acomodavam por entre os poros dessa rocha mole.

Quando os aqüíferos retiveram água suficiente, esta começou a brotar, na forma de nascentes, principalmente nas testas da Serra e na forma de pequenas lagoas nas áreas aplainadas, formando as veredas. Com o tempo as águas, como lágrimas milagrosas, começaram a descer em direção a leste, encontrando a calha do seu condutor mór, o rio São Francisco. E assim foram se formando paisagens que deveriam ser maravilhosas. Ao longo dos rios surgiam lagoas e banhados, onde se multiplicavam, em grande quantidade, os peixes que outrora eram abundantes, não só no São Francisco, mas em todos os seus afluentes. Hoje, pergunto onde estão os surubins, os pacus, os dourados e outros, que saciavam a fome de um grande contingente populacional?

Senhor Bispo, certamente lhe disseram que irão repovoar o rio através da soltura de alevinos. É sempre bom lembrar que a cadeia alimentar desses filhotes de peixes se inicia nas lagoas e matas ciliares, ambientes produtores de fitoplânctons. Nem as lagoas nem as matas ciliares contínuas existem mais.

Entretanto, pior que um rio sem peixes, é um rio sem água. Foi dito que os aqüíferos Bambuí e Urucuia, alimentadores do São Francisco, estão secando. Não se trata de uma afirmação irresponsável nem demagógica. Um aqüífero é recarregado pelas suas bordas, onde existem os terrenos planos que impedem o escorrimento rápido da água. A vegetação nativa dessas áreas planas, chamadas chapadões, retém no mínimo 70% das águas das chuvas. Estas águas vão alimentar os lençóis subterrâneos, que por sua vez alimentam as nascentes, os córregos, os riachos e os rios. Este processo de formação e recarga dos aqüíferos vem acontecendo há pelo menos 35 milhões de anos, numa Época Geológica denominada Mioceno.

A partir de 1970, a vegetação nativa do cerrado, que ocupava os chapadões, capinas e tabuleiros, foi sendo, num ritmo cada vez mais feroz, substituída por plantações de grãos: primeiro, a soja; depois vieram outros e agora vem a cana com toda voracidade. O cerrado que existia em solo onde a agronomia ainda não tinha tecnologia para sua correção foi sendo retirado e transformado em carvão.

Conseqüência: a chuva continuou caindo, mas não infiltrava como anteriormente, nem era absorvida pelo complexo sistema radicular da vegetação nativa, porque esta não existia mais. As plantas exóticas introduzidas têm raiz sub-superficial e não chegam a reter 20% das águas. Além do mais, como são culturas temporárias, fazem com que em grande parte do ano o solo fique desnudo, aumentando a perda da umidade do lençol freático. Acrescente-se a isso os pivôs centrais que, nos chapadões, são alimentados através de poços artesianos. Ou seja, além de não estarem sendo recarregados normalmente, a pouca água existente nos aqüíferos ainda é sugada para umedecer as grandes plantações, que não retém o excesso dessa água, que acaba evaporando.

Para falar em revitalização é necessário o conhecimento da ecologia e da história evolutiva do cerrado. O cerrado é a maior diversidade florística do planeta. Um plano de revitalização levaria isto em consideração?

Quanto tempo leva para atingir a maior idade a árvore do burití? da buritirana? da mangaba? os arbustos, as gabirobas, as bromélias e as gramíneas? Ou seja, ainda não existe uma tecnologia eficiente capaz de restabelecer a biodiversidade do cerrado.

Já foi demonstrada a importância que as plantas nativas do cerrado tem para a recarga dos aqüíferos. Os que falam em revitalização deveriam saber também que o cerrado já atingiu seu clímax evolutivo. Isto significa que, uma vez degradado, jamais se recupera na plenitude de sua biodiversidade.

O fato é que a existência do rio São Francisco depende de fatores ecológicos extremamente complexos e interdependentes.

O processo de desaparecimento dos seus alimentadores está acontecendo num ritmo mais acelerado do que imaginávamos e infelizmente êsse é um processo irreversível. Portanto, qualquer obra que coloque em risco o frágil equilíbrio do rio São Francisco pode significar a sua morte, num tempo mais curto que aquele que podemos imaginar.

O raciocínio é simples: a chuva que caía era absorvida em grande parte pela vegetação nativa e ao longo de muito tempo foi-se formando aqüíferos formidáveis, que fazem suas descargas nos declives e áreas baixas formando os rios.

Era como se fosse um imenso reservatório, abaixo de nós, alimentando os rios. Uma grande caixa d'água com vários furos enfileirados de cima para baixo. Quando o reservatório estava cheio a água jorrava por todos os furos. A medida que o nível ia se baixando a água que jorrava dos furos superiores deixava de correr. E assim sucessivamente. Êste fenômeno é conhecido pelo nome de migração de nascentes. E assim está acontecendo: a migração das nascentes provoca o desaparecimento de pequenos cursos d'água no início, mas à medida que o processo se acentua os cursos maiores são afetados, até desaparecerem totalmente. De vez em quando vão ocorrer cheias estrondosas, mas isto não significa que o rio ressuscitou; são fenômenos efêmeros provocados por enxurradas resultantes de chuvaradas, que se deslocam pelos antigos caminhos d'água.

Usando a figura da novela nordestina poderia se dizer:

É a derrubada,
São os grãos,
É o lençol que diminui,
É a seca,
Se continuar assim,
A passagem pra morte,
É o tempo!

Portanto, Dom Cappio, compartilho da sua atitude e o parabenizo pela coragem. De onde estiver estarei comungando com o Senhor. Entretanto, se a situação de degradação dos alimentadores do São Francisco continuar no ritmo desse modelo econômico, imposto pelo capital internacional, e se o Senhor tiver que esperar pelos resultados da revitalização, é bom, por precaução, levar para o próximo jejum as encomendadeiras de alma, para rezarem por nós e pelo rio. Provavelmente a água será incorporada no seu próximo jejum.

O que se espera é que os acomodados olhem mais para o povo e deixem a vã legislação ou normas para o bom senso resolver.

É claro que a revitalização é impossível, mas há, no Brasil, pessoas honestas e com conhecimento para sugerirem ao Governo programas de planejamento ambiental que amenizem o problema.

Entretanto, o presidente Luis Inácio, que sempre usou nos seus discursos o tema das moratórias, que tenha ao menos a coerência de apoiar e tomar iniciativa para estabelecer uma moratória ambiental. Assim faria um grande bem ao povo brasileiro.

PUBLICADO NO JORNAL "O POPULAR" DE GOIÂNIA EM 17/10/2005

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