quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Cerrado: a dor fantasma



Para efetuar uma avaliação correta do nível de degradação em que se encontra o Sistema Biogeográfico do Cerrado é necessário que se tenha em mente um conceito correto do que é cerrado, da sua história evolutiva e de todos os seus componentes básicos.

Se tomarmos, como exemplo, somente a cobertura vegetal como parâmetro, para medir a degradação, incorre-se em dois erros básicos: o primeiro é eleger uma determinada fisionomia vegetal como guia e não considerar a diversidade de paisagens que compõe o cerrado em sua plenitude. O segundo é utilizar, sem os devidos cuidados, o sensoriamento remoto, pois não se trata de um método seguro para medir a degradação vegetal, porque é incapaz de diferenciar espécies nativas de vários tipos vegetacionais exóticos.

Isto ocorre com freqüência quando em grandes áreas, onde outrora existiam monoculturas, que foram abandonadas e agora surge uma vegetação sub-arbórea homogênea, estranha e que não tem nenhuma relação com a vegetação de cerrado. Nas imagens de satélite, entretanto, os menos avisados interpretam como áreas com vegetação intacta, quando na realidade são invasoras exóticas. A análise global deve abranger os componentes da fauna, os aqüíferos e as populações humanas, dentre outros elementos.

O Cerrado é um Sistema Biogeográfico, composto por diversos subsistemas intimamente inter-atuantes e inter-dependentes. Cada sub-sistema tem uma história ocupacional que consequentemente reflete seu nível de degradação. Estes subsistemas flutuam de um gradiente aberto com claridade para gradientes sombreados.

As matas
O subsistema coberto pelas matas é uma área florestada que não pode ser confundida nem com a Floresta Amazônica, nem com a Mata Atlântica, porque se trata de florestas subúmidas, com uma história evolutiva totalmente diferenciada dessas florestas. Estas matas ocorrem no Sistema do Cerrado em função de manchas de solo de alta fertilidade natural - são as chamadas terras de cultura e justamente por esta razão foram as mais cobiçadas desde o início da ocupação humana.

As primeiras grandes fazendas, as primeiras grandes lavouras, foram implantadas nestas áreas, que hoje abrigam também as maiores cidades do cerrado. O nível de degradação dessas áreas é tão grande que o que resta não chega a 2% de sua área original, levando-se em consideração não as plantas isoladas, mas as comunidades e populações de vegetais.

Os campos
Na outra extremidade do gradiente estão os campos, que ocupam os chapadões. Estes foram intensamente ocupados para produção de grãos, a partir da década de 70, de forma tão intensa que praticamente criou-se uma situação que hoje nos permite afirmar que esta paisagem, em termos de população vegetal, não mais existe.

Considerando neste contexto as Unidades de Conservação, situadas em áreas onde originariamente eram campos, estas estão altamente descaracterizadas por manejos inadequados.

O cerradão
Outro subsistema integrante do Sistema do Cerrado é o Cerradão, formação vegetacional associada a solos bem especiais, como é o caso do sudoeste goiano, em que esta associação se dá com solos do arenito Bauru.

Desafiamos a qualquer pesquisador, conhecedor do cerrado, a nos mostrar hoje em dia uma população intacta de cerradão. Isto significa afirmar que seu nível de preservação beira a casa do 0%.

O Cerrado propriamente dito
Por ocupar solos oligotróficos, cuja correção é muito dispendiosa, este subsistema, de árvores pequenas e tortuosas, paisagem dominante que deu nome ao Sistema como um todo, foi até bem pouco tempo desprezado pela agricultura e pecuária.

No entanto, seu carvão, de alta qualidade, despertou a gula dos gananciosos, que usaram e usam correntões para seu desmatamento, em pseudos projetos aprovados pelo IBAMA, como Projetos de Manejo Florestal.

O carvão é utilizado cada vez mais intensamente na siderurgia. Em função disto, as populações de cerrado stricto sensu, como este subsistema é também conhecido, não ultrapassa a casa dos 5% de preservação, em relação às formações originais.

Veredas, ambientes ciliares, várzeas
Estes outros sub-sistemas, com diversos tipos de fácies, não fogem à regra comum da degradação . São ambientes importantíssimos para a ecologia do cerrado como um todo, pois constituem a maternidade da fauna do cerrado, incluindo não só os peixes, mas também mamíferos, répteis e aves.

Os ambientes ciliares há muito vem sofrendo um grande processo de erosão provocado pelas ocupações desordenadas e grandes projetos agrícolas, tipo Pró-Várzea, Projeto Rio Formoso e outros similares.

As veredas, ambientes importantíssimos para a manutenção das águas superficiais, vêm paulatinamente sofrendo grande processo de morte lenta, em função da diminuição do nível das águas dos mananciais. Apesar de tudo, ainda é sste o ambiente mais preservado em todo sistema, atingindo o nível de 16% em relação às áreas originais.

Fauna

O entendimento sobre os aspectos ambientais do Cerrado exige uma análise integrada entre os elementos da fauna, da flora, do espaço geográfico e como eles se relacionam com os demais componentes. Acredita-se que a grande biodiversidade de fauna do Cerrado está vinculada à diversidade de ambientes. Esta correlação permite vislumbrar o ambiente na sua totalidade, o que facilita o estabelecimento adequado de políticas ambientais para a região.

Geograficamente, a região dos cerrados situa-se em um local estratégico entre os domínios brasileiros, o que facilita o intercâmbio florístico e faunístico. Representado no centro do País, a sua área estende-se de um extremo ao outro, do Mato Grosso do Sul ao Piauí, em seu eixo maior, e limita-se, para oeste, com a Floresta Amazônica, para o leste e nordeste, com a vegetação da Caatinga, sendo acompanhada ao sul e sudeste pela Floresta Atlântica. Essas ligações favoreceram o delineamento de corredores de migração importantes, tanto por via terrestre quanto aquática.

Algumas espécies animais do Cerrado são limitadas a determinados tipos de habitat. Os espaços são bem definidos de acordo com a necessidade biológica de cada espécie. Esse condicionamento ao ambiente pode ser explicado pelo determinismo ambiental, imposto pela natureza através de recursos alimentícios, que condicionaram os animais especialistas a viverem em determinadas áreas em função do hábito alimentar. Um exemplo conhecido é o da espécie Myrmecophaga tridactyla (tamanduá-bandeira), que se alimenta basicamente de cupins terrestres e formigas, abundantes em campos abertos.

Para a região do cerrado são apontados para a avifauna 935 espécies que ocorrem em todo o sistema, distribuídas em diferentes habitat por todo o cerrado. Quanto aos mamíferos, foram listadas 298 espécies para os cerrados e 268 espécies de répteis.

A maturação dos frutos e a rebrota das gramíneas, fonte principal de alimento de um grande contingente de fauna, não ocorrem de forma homogênea em todas as áreas de cerrado. A grande frutificação acontece durante os meses de novembro, dezembro e janeiro, época que coincide com o auge da estação chuvosa.

A concentração desses recursos diminui, acompanhando o fim do período chuvoso. Entretanto, com exceção dos meses de maio e junho, considerados críticos no que se refere à oferta de alimentos, os demais meses, que correspondem à época seca, mesmo em menor quantidade, apresentam alguns recursos, entre eles flores, raízes, resinas e alguns frutos.

Os mamíferos dos cerrados podem ser observados durante todo o ano, principalmente os que vivem em áreas abertas. Todavia, a maior concentração dessas espécies em seus nichos alimentares se dá nos meses de setembro, outubro, novembro, dezembro e janeiro. Esta época coincide com a rebrota das gramíneas que, geralmente durante a estação, secam por ação natural ou antrópica, sofrem a ação do fogo e coincide também com a maturação dos frutos. Neste mesmo período acontece a revoada de insetos (mariposas e tanajuras), o que torna fartos os recursos para os mamíferos insetívoros.

Grande parte desses animais estão se acasalando durante os meses correspondentes à estação seca. Isso significa que no período chuvoso vão estar com filhotes. Essa dinâmica da natureza revela a estreita relação entre a flora e a fauna dos cerrados.

Infelizmente, a cada ano que passa, aumenta a lista dos animais ameaçados de extinção total. A natureza dotou esta região de certos mecanismos naturais que garantem a multiplicação e a propagação das espécies. Existe uma estreita interdependência entre a fauna e a flora. O fator biodiversidade animal está diretamente relacionado à diversidade de ambientes. Estes, por sua vez, relacionam-se à variedade de espécies vegetais que se multiplicam sob a influência de fatores litológicos, edáficos e climáticos, de ordem regional e local.

Infelizmente, a falta de uma política séria para o meio ambiente tem colocado em risco todo o patrimônio natural dessa região, marcada por processos intensos de ocupação desordenada dos espaços. A política desenvolvimentista aplicada no Brasil, principalmente no cerrado, que é considerado a última grande fronteira para a produção de grãos, tem levado muitas espécies da fauna à extinção e consequentemente alguns exemplares da flora, em função da sua interdependência.

Muitos animais da Megafauna (fauna gigante) já foram extintos dentro de um processo lento e natural, imposto pela evolução da natureza. Os animais modernos estão se extinguindo ou em vias de extinção, dentro de uma dinâmica proporcionada pela ação humana, muitas dessas espécies não alcançaram nem alcançarão o seu clímax evolutivo, pois a velocidade dos processos de degradação, supera em milhares de anos os fenômenos naturais.

Ocupação humana

A diversidade de ambiente empresta à biodiversidade do cerrado um caráter peculiar e seus aspectos evolutivos fizeram com que processos culturais diferenciados também ocorram de forma "sui generis", transformando a região do cerrado numa espécie de fronteira cultural.

Na realidade alguns dos mais importantes processos culturais americanos nasceram no cerrado, como a formação do tronco lingüístico Macro-Jê, a domesticação e disseminação de certos tubérculos e outros vegetais e o desenvolvimento de tecnologia de caça, pesca e processamento de recursos vegetais nativos e cultígenos.

O estudo detalhado de diversas comunidades indígenas habitantes do cerrado demonstra que essas populações aprenderam sabiamente a desenvolver mecanismos adaptativos e planejamento ambiental e social que fossem capaz de lhe permitir uma vida em abundância. Assim são os Kayapó, que habitam as áreas mais elevadas, os Karajá, específicos da calha do Araguaia, os Xavante etc.

Todos estes fatores reunidos fazem com que o cerrado seja um laboratório antropológico único, no qual se deve olhar e aprender para, com sabedoria, saber planejar o futuro.

A população indígena que povoou o cerrado não produziu qualquer modificação brusca no equilíbrio do ecossistema, porque inicialmente os homens eram poucos e o nicho adaptativo era amplo.

Até que a população humana crescesse a ponto do seu tamanho ser prejudicial, coube à seleção natural levar a termo uma adaptação primorosamente equilibrada aos recursos ambientais.

A chegada dos exploradores de origem européia, trouxe conseqüências bem diversas, por duas razões:

-1a A principal finalidade não era o povoamento e sim a exploração comercial.

-2a Mantiveram um contato íntimo, ou com a mãe pátria ou com um poder central deslocado, a quem competia ditar as mercadorias a serem fornecidas e o seu preço.

Portanto, pela primeira vez em sua longa história a região do Cerrado ficou sob a influência contínua de um agente que era alienígena ou exótico, às vezes, como no princípio até extracontinental e consequentemente imune às forças modeladoras da seleção natural local.

No início a devastação foi mínima, mas com o passar dos tempos os sinais destas já eram bastante visíveis. O aumento da imigração acelerou cada vez mais o processo de degradação. Surgiram epidemias novas, que contribuíram para dizimar populações indígenas, como a gripe, o sarampo, a varíola e tal qual como aconteceu em outras áreas do País a entrada de escravos africanos introduziu a malária e a febre amarela.

O crescimento demográfico também é algo surpreendente, principalmente de 1950 para cá, e é bem provável que, no ano 2010, a região do cerrado tenha uma população tão grande que escape às políticas de planejamento. Esta perspectiva é aterradora, tendo em vista a magnitude da degradação que já ocorreu com uma densidade demográfica bem menor.

A partir da década de 50, implanta-se no Brasil um modelo econômico chamado desenvolvimentalista, onde a meta é atingir o desenvolvimento a todo custo.

Essa política que, no início, é executada de forma até ingênua, com os governos militares de 1964 em diante adquire um caráter ideológico e a partir desse momento o hemisfério começa a presenciar uma grande revolução, não uma revolução do homem e para o homem, mas uma revolução de desrespeito à vida humana e à vida do ambiente.

Dentro dessa perspectiva o cerrado é recortado por inúmeras estradas, rios são represados, montanhas aplainadas, vegetação derrubada, animais são ameaçados de extinção, pequenas comunidades são desestruturadas num ritmo nunca visto na história da civilização.

Ambiciosos projetos de colonização, sem o mínimo de planejamento e conhecimento, com objetivos puramente políticos, são postos em execução.

Fatos recentes, ainda vivos na nossa memória, atestam a pujança que este modelo desenvolvimentista tem, como a ocupação dos chamados Chapadões por capital alienígena para projetos de reflorestamento com espécies estranhas ao meio ambiente do cerrado, para produção maciça e efêmera de grãos para exportação. A criação do Estado do Tocantins pode ser citada como outro exemplo, as especulações para a implantação da Hidrovia do Araguaia e tantos outros exemplos, que podem ser listados, demonstram a força dessa ideologia.

Assim é que, ao se entrar no início do século XXI, encontra-se em suspenso o destino do cerrado. Se as próximas décadas trarão sua ruína ou salvação ainda não se pode dizer.

Os aqüíferos

Outro elemento importante que deve ser considerado como conseqüência da degradação do cerrado se refere aos aquíferos.

O cerrado é a cumeeira da América do Sul, distribuindo águas para as grandes bacias hidrográficas do continente. Isto ocorre porque na área de abrangência do Cerrado se situam três grandes aquíferos, responsáveis pela formação e alimentação dos grandes rios do continente: o aquífero Guarani, associado ao arenito Botucatu e a outras formações areníticas, mais antigas, responsáveis pelas águas que alimentam a bacia do Paraná. Os aquíferos Bambuí e Urucuia.

O primeiro associado às formações geológicas do Grupo Bambui e o segundo associado à Formação arenítica Urucuia, que em muitos locais está sobreposto ao Bambuí e em certos locais há até o encontro dos dois aquíferos, apesar de existir entre os dois uma grande diferença de idade. Os aquíferos Bambuí e Urucuia são responsáveis pela formação e alimentação dos rios que integram as bacias do São Francisco, Tocantins, Araguaia e outras, situadas na abrangência do Cerrado.

Estes aquíferos, que se vem formando durante milhões de anos, de pouco tempo para cá não estão sendo recarregados como deveriam, para sustentar os mananciais. Isto ocorre porque a recarga dos aquíferos se dá pelas suas bordas nas áreas planas, onde a água pluvial infiltra e é absorvida cerca de 60% pelo sistema radicular da vegetação nativa, alimentando num primeiro momento o lençol freático e lentamente vai abastecendo e se armazenando nos lençóis mais subterrâneos.

Com a ocupação dos chapadões de forma intensa, que trouxe como conseqüência a retirada da cobertura vegetal, sua substituição por vegetações temporárias de raiz subsuperficial, a água da chuva precipita, porém não infiltra o suficiente para reabastecer os aquíferos. Conseqüência, com o passar dos tempos, estes vão diminuindo de nível, provocando, num primeiro momento, a migração das nascentes, das partes mais altas, para as mais baixas e a diminuição do volume das águas, até chegar o ponto do desaparecimento total do curso d'água. Convém ressaltar que este é um processo irreversível.

A dor fantasma
Por estas razões, a situação do Cerrado hoje em dia se assemelha ao fenômeno conhecido em Neurologia como dor fantasma.

As pessoas que são vítimas deste mal sofrem um duplo infortúnio. Estas pessoas perderam uma extremidade ou parte dela. E sofrem dores às vezes muito intensas que sentem como provenientes do membro que já não tem mais. As discussões sobre o Cerrado se assemelham a esta situação, porque estamos sentindo as dores da perda de um ambiente, que não existe mais na plenitude de sua biodiversidade.

Nenhum comentário: