Altair Sales Barbosa
Numerosos estudos referentes ao
sequestro e fixação de dióxido de carbono por formas vegetacionais demonstram a
importância e a relação direta que o Cerrado tem exercido ao longo da sua
história evolutiva para o equilíbrio da vida no planeta Terra. No mesmo
sentido, estudos de Geotecnia apontam o valor dos lençóis freáticos, artesianos
e aquíferos, oriundos do Cerrado, para a perenidade das principais bacias hidrográficas
da América do Sul.
Entretanto, a ocupação humana
desordenada, decorrente de programas de políticas públicas equivocadas, que
colocam o Cerrado como grande fronteira de expansão agrícola e econômica, tem
criado um panorama assustador, de dimensões nunca observadas na História da
Humanidade.
Nesse contexto, o Cerrado foi e é
recortado por inúmeras estradas, rios são represados, montanhas aplainadas,
vegetação derrubada, rompendo o equilíbrio da cadeia alimentar e, como consequência,
animais são levados a extinção, comunidades rurais desestruturadas de forma
avassaladora e crescimento rápido e desordenado dos polos urbanos.
Geralmente, os responsáveis pela
implantação de políticas públicas não levam em consideração o “tempo da
natureza” em seus planejamentos; tampouco consideram a dinâmica da Ecologia do
Cerrado. Por esta razão são incapazes de entender aspectos da sua história
evolutiva, cujo tempo é medido pelos padrões estabelecidos pela Geologia, e
calculado em milhares, milhões e até bilhões de anos antes do tempo presente.
Se este cenário continuar
persistindo, dentro de um tempo mais curto que possamos imaginar poderemos
presenciar um quadro desolador, conforme nos apontam dados e observações
atuais.
No Sistema Biogeográfico do
Cerrado, o lençol freático se forma diferentemente nos diversos subsistemas.
Nos Subsistemas de Campos, também
conhecidos pelas denominações de Chapadões ou Campinas Tabulares, o lençol
freático é profundo e constitui-se no grande alimentador dos aquíferos. E, dependendo
da natureza do solo, a água das chuvas que é infiltrada se desloca de forma
rápida em direção aos aquíferos. Nos chapadões de origem lacustre, a
infiltração é mais lenta e depende exclusivamente das formas vegetacionais
nativas.
Nos Subsistemas de Cerrado ‘stricto
sensu’ e Cerradão, situados nos interflúvios, a água da chuva, que se
infiltra no solo, forma um lençol freático rico e abundante, mas também é
profundo. Grande parte das águas pluviais escorre, de acordo com a declividade
dos terrenos, para o leito dos rios.
Onde o estrado de gramíneas e
arbustos nativos é denso, não há processos acentuados de ravinamentos; o
contrário ocorre quando aparecem manchas que caracterizam áreas desnudadas.
Nos Cerrados e Cerradões,
situados em declives mais acentuados, não há formação de lençol freático. As
águas pluviais escorrem com velocidade para o leito dos cursos d’águas.
No subsistema de Matas o lençol
freático é abundante e sub-superficial, em função do caráter umbrófilo, que
diminui o impacto da insolação e da serapilheira que protege o solo. A rede
hidrográfica que aí se forma é caracterizada por pequenos córregos e muito
rica. Sua origem e alimentação estão na dependência direta dos lençóis
freáticos aí existentes.
Nas Matas Ciliares o panorama é similar;
a diferença é que o lençol freático alimenta diretamente o curso d’água mais
próximo, através de escoamento rápido.
Nas Veredas, em função do sistema
radicular das plantas e do caráter do solo húmico, turfoso e às vezes argiloso,
o lençol é abundante e superficial, formando pequenas lagoas e sendo
responsável pelas nascentes dos cursos d’águas do cerrado, cuja morfologia se
apresenta como um anfiteatro.
Uma vez retirada a cobertura
vegetal nativa, o primeiro lençol a secar é o que se encontra nos Subsistemas
de Matas, Matas Ciliares e Veredas. O tempo para a finalização deste processo,
de acordo com observações, situa-se entre dois a cinco anos.
Nas Veredas, por se tratar de um
lençol superficial, o processo de desaparecimento será muito acelerado; talvez
não chegue a alcançar o período de dois anos.
Nos Capões ou manchas de matas
mais homogêneas, tipo as que definiam em outros tempos o chamado Mato Grosso
Goiano, a rede de drenagem, caracterizada por pequenos córregos, também será
extinta no prazo de dois a cinco anos; deixa, nos locais, os caminhos secos,
que serão avolumados por processos erosivos colossais, em cada estação chuvosa,
dependendo da gênese dos solos.
Nos Cerrados e Cerradões situados
nos interflúvios, os lençóis secarão no prazo máximo de cinco a oito anos.
Haverá a acentuação dos processos de ravinamento, cujas erosões serão capazes
de esculpir no solo sinistras cicatrizes ruiniformes.
A retirada total da cobertura
vegetal afetará, também de forma decisiva, a já reduzida recarga dos aquíferos,
cujas reservas chegarão a um nível crítico, pois as águas pluviais que
conseguirem penetrar através do solo serão de imediato absorvidas por estes,
dado aos seus estados de aridez em função da insolação. A pouca umidade retida
se evaporará de forma rápida devido às mesmas causas. No início, os problemas
oriundos dessa situação tentarão ser contornados com a construção de
barramentos, através de curvas de níveis e pequenos açudes, para reter as águas
das chuvas. Entretanto, os ambientes que surgem desse processo tem caráter
bêntico, fato que origina a argilicificação e a conseqüente impermeabilização
do fundo dos poços, que, associada à forte insolação, resultará numa ação de
nula eficácia.
O primeiro aquífero a ter suas
reservas diminuídas será o Urucuia, até o quase total desaparecimento, seguido
do aquífero Bambuí e do aquífero Guarani. O prazo para finalização deste
processo, de acordo com dados de Geotecnia atuais, deverá compreender um
período situado entre 15 a 25 anos.
Com o desaparecimento do
lençol freático, seguido da diminuição drástica da reserva dos aquíferos, os
rios iniciarão um processo de diminuição da perenidade, oscilando sempre para
menos, entre uma estação chuvosa e outra e desaparecendo quase por completo na
estação seca.
Este fato afetará primeiro os
pequenos cursos d’água, depois os de médio porte e em seguida os grandes rios.
Os fenômenos ocorridos nos
chapadões centrais do Brasil, em função do desaparecimento do cerrado, afetarão
de forma direta várias partes do continente.
A parte sul da calha do rio
Amazonas, representada pelos baixos chapadões, terá uma rede de drenagem
insignificante no que diz respeito ao volume d’água, uma vez que os grandes
afluentes da margem direita que tem suas nascentes e seus alimentadores
situados no cerrado, deixarão de existir ou terão seus volumes diminuídos de
forma significativa nos cursos superiores e médios. Os grandes afluentes do rio
Amazonas, pela sua margem direita, serão alimentados apenas nos seus cursos
inferiores, fato que reduzirá em mais de 80% suas vazões.
A floresta equatorial deixará de
existir na sua configuração original, sendo paulatinamente substituída por uma
vegetação rala tipo caatinga, salpicada em alguns locais, por espécies de
plantas adaptadas a um ambiente mais seco.
O vale do Parnaíba, englobando a
bacia geológica Parnaíba-Maranhão, será invadido na direção sul/norte por dunas
arenosas secas, provenientes da formação Urucuia, existente no Jalapão e
Chapada das Mangabeiras. E, na direção norte/sul, por sedimentos arenosos
litorâneos, que caracterizam os Lençóis Maranhenses e Piauienses, que em
virtude de condições favoráveis terão facilidade de transporte eólico em
direção ao interior. Os atuais poços jorrantes do vale do Gurguéia deixarão de
ser fluentes, mas uma ou outra pequena fonte continuará existindo de forma
precária.
Com o desaparecimento dos
principais afluentes do rio São Francisco, pela sua margem esquerda, que cortam
o arenito Urucuia, a ausência de alimentação constante, associada ao assoreamento,
contribuirão para o desaparecimento do grande rio, nos seus aspectos originais.
Permanecerão algumas lagoas e cacimbas onde o terreno tiver característica
argilosa, ou outra rocha impermeabilizante originária da metamorfose do
calcário Bambuí.
A Caatinga que já caracteriza
parte do curso inferior do rio São Francisco avançará um pouco mais em direção
ao norte, transicionando paulatinamente para a formação de uma grande área
desértica, que certamente abrangerá o centro, o oeste, o sul da Bahia e norte e
centro de Minas Gerais.
A região da Serra da Canastra
permanecerá com alguns elementos originais, como uma espécie de enclave
geoecológico, com clima subúmido.
Nas áreas correspondentes aos
formadores e bordas da Bacia Hidrográfica do Paraná, as desintegrações intensas
dos arenitos Botucatu e Bauru – que já formaram, na região durante os períodos
Triássico e Cretáceo, grandes desertos, abrangendo um período de tempo
compreendido entre 245 a 70 milhões de anos antes do tempo atual, com pequenas variações
de tempo – acordarão de um sono profundo, expandindo seus grãos de areia, em
várias direções, provocando erosões colossais, assoreamento e acúmulos de
sedimentos na configuração de dunas. Do curso médio da Bacia do Paraná, até a
parte superior de seus afluentes, haverá muitas áreas desérticas, separadas por
formações rochosas ostentando vegetação de características áridas e
semi-áridas.
A sub-bacia do rio Paraguai,
alimentada pelo aquífero Guarani, sofrerá as mesmas consequências das demais
regiões hidrográficas do Cerrado, transformando o atual Pantanal Matogrossense
numa área de desertos arenosos, tal como já ocorreu na região durante o
Pleistoceno Superior, onde ali existia o deserto do Grande Pantanal.
Logo após o desaparecimento por
completo das comunidades vegetais nativas, fato que poderá ocorrer entre dez a
trinta anos, a agroindústria terá seus dias de grande apogeu em termos de
produtividade.
Os núcleos urbanos criados ou
dinamizados como suportes destas atividades atingirão também seu apogeu em
termos de aumento demográfico e em termos de ofertas e oportunidades de
serviços de natureza diversa.
Passado certo tempo, contado em
alguns poucos anos, esta realidade experimentará um grave processo de
modificação. A produtividade agrícola começará a diminuir assustadoramente,
causando ondas de demissões nas empresas estabelecidas. Isto acontecerá porque
a água dos lençóis subterrâneos não é mais suficiente para sustentar a produção
no sistema de rotatividade de antes. Não há água para fazer funcionar os pivôs
centrais. A atividade agrícola sobrevivente se restringirá à época da estação
chuvosa, que já se manifesta com instabilidades sazonais.
Os solos, outrora preparados
intensivamente para os cultivos, serão ocupados em pequenas parcelas, deixando
exposta uma grande superfície desnuda. Da mesma forma as pastagens que
sustentavam a pecuária encontrarão afetadas, provocando a redução paulatina do
rebanho.
Esta situação começará a refletir
de forma visível nos polos urbanos. Haverá racionamento de água, em função da
diminuição da vazão dos rios, que por sua vez provocará a redução do nível dos
reservatórios. O racionamento de energia elétrica também será imposto pelas
mesmas causas. O desemprego e os serviços, antes fartos e variados, afundarão numa
crise sem precedentes.
Este fato provocará o aumento de
pessoas ociosas e vadias nas cidades, situação que criará enormes embaraços
sociais desagradáveis. Há a intensificação da criminalidade de todas as
espécies, desde pequenos furtos, saques, assaltos e assassinatos. A
prostituição se generalizará, trazendo consequências consideráveis para a saúde
pública, que se apresenta cada vez mais decadente.
Os serviços públicos, incluindo a
educação, por falta de arrecadação e manutenção começarão a beirar o caos.
Depois de aproximadamente uma
década, a ausência de água nos rios criará uma paisagem desoladora. Áreas
outrora ocupadas pelas lavouras serão caracterizadas agora por formas
vegetacionais rasteiras e exóticas, típicas de formações desérticas, com um
ciclo vegetativo muito curto.
Grande parte dos campos agrícolas
abandonados, sem a cobertura vegetal necessária para fixar o solo, passará
durante algumas épocas do ano a ser assolada por ventos e tempestades fortes,
que criarão uma atmosfera escura carregada de grãos finos de poeira em
extensões quilométricas.
Será possível ainda avistar um ou
outro ser humano vivente, utilizando água empoçada, provavelmente de chuvas e
exercendo pequenas atividades de subsistência. Também será possível encontrar
uma ou outra família desgarrada e solitária, sobrevivendo de restos que ainda
poderão ser obtidos. Os mais bem situados economicamente migrarão para o
litoral, ou para outros países.
Os polos urbanos serão assolados
por diversas epidemias, que provocarão índices alarmantes de mortalidade. A
maioria da população sucumbirá, diante da miséria crescente.
A fauna nativa praticamente
desaparecerá, mas ainda será possível observar alguns urubus e outras aves de
rapina. A população de ratos aumentará descontroladamente, num primeiro
momento, contribuindo também para o aumento da população de felinos, outrora
domésticos. A mesma sorte, porém, não é compartilhada pelos cães, que no início
desenvolverão alguns hábitos selvagens, mas não terão êxito na sobrevivência.
Passadas aproximadamente duas
décadas, praticamente não existirão mais formas efetivas de população humana.
A população de ratos e gatos
diminuirá de forma brusca e outros grupos de animais como répteis, tanto
pequenos lagartos e cobras, começarão a aparecer em certos locais. Também será
possível observar aracnídeos e insetos, dentre estes, pequenos besouros e
escorpiões.