Jaime Sautchuk
Especial para a Folha de São Paulo em 15
de outubro 2000.
Expedição da Universidade de Brasília refaz trajeto do explorador alemão Alexander von Humboldt (1769 - 1859) 200 anos depois e revela que o maior rio da Venezuela é também um dos formadores do Amazonas
O rio Orinoco, que drena 70% do
território venezuelano, é um dos dois principais formadores do rio Negro e,
portanto, do Amazonas. O canal do Cassiquiare, ligação natural do Orinoco ao
Negro, descoberto em 1744, não é um simples canal, como se imaginava, e
desempenha papel muito mais relevante na geografia da região. O Cassiquiare é,
isso sim, um defluente (contrário de afluente) do Orinoco. Ele se separa do
curso principal desse rio para juntar-se ao colombiano Guainía e formar o
Negro, próximo da fronteira dos dois países com o Brasil. E corre sempre no
mesmo sentido. A constatação é de membros da Expedição Humboldt Amazônia 2000,
organizada pela Universidade de Brasília (UnB), após analisarem a geologia e o
relevo da região e constatarem a direção do fluxo da água. O grupo é composto
por 39 cientistas, que percorrerão até novembro cerca de 7.000 quilômetros de
rios amazônicos. "É um caso único no mundo", diz o hidrólogo francês
Alain Laraque, autor das medições realizadas no início de setembro. Com
equipamentos de ponta, as aferições são as primeiras feitas no Cassiquiare em
cem anos. São medidas de temperatura, condutividade elétrica, turbidez, pH,
batimetria, velocidade da correnteza e localização por GPS (Sistema de
Posicionamento Global). Ao deixar o Orinoco, ele atinge velocidade e
profundidade maiores que as do rio principal. Ali, sua largura é de 50 m e sua
água é marrom. Depois de percorrer 320 km e receber inúmeros afluentes de água
escura, o Cassiquiare vai mudando de cor, e atinge uma largura de 500 m ao
encontrar-se com o Guainía, também preto. Ambos são rios de planície, que
retiram pouco sedimento de seus leitos. A cor escura de sua água deve-se à
decomposição de matéria orgânica da floresta. São verdadeiros xaropes de
plantas, com elevada acidez. Daí a escassa presença de peixes nessas águas.
Daí, também, a diferença em relação aos rios de montanha, como o próprio
Orinoco e, depois, o Solimões. Este vem dos Andes peruanos e forma o Amazonas,
ao encontrar-se com o Negro, gerando o famoso "encontro das águas",
na altura da cidade de Manaus (AM). A região cortada pelo Cassiquiare é de
planície, um enorme vale entre os Andes e o maciço da Guiana, onde estão as
serras do Imeri, Parima, Pacaraima e Tumucumaque. É um parque nacional
venezuelano, de selva amazônica, habitado principalmente por índios das etnias
iecuana e ianomâmi. A floresta, praticamente intocada, ocupa as margens do
canal em toda a extensão. Como a maioria dos rios da região, o Cassiquiare é
navegável na maior parte do ano por embarcações grandes. No período de menos
chuvas na região (dezembro a março), sua profundidade diminui, dificultando a
navegação. De qualquer modo, ele quase não é usado como meio de transporte
entre Brasil e Venezuela.
Humboldt barrado
O viajante alemão Alexander von Humboldt percorreu a região e transpôs o Cassiquiare em 1800, chegando até a fronteira com o Brasil, já no rio Negro. Ali, foi detido pelas autoridades portuguesas e impedido de entrar no território brasileiro.
Na parte venezuelana, a expedição contou com a participação da Universidade Simón Bolívar, uma das principais instituições universitárias da Venezuela. Um grupo de seus pesquisadores acompanhou as medições.
Até l950, o rio Orinoco era navegado apenas até poucos quilômetros acima do Cassiquiare, onde está a vila de La Esmeralda. É uma mistura de aldeia iecuana com missão religiosa católica e base militar. Acima dali, o rio tem muitas corredeiras, o que fazia supor que suas nascentes estivessem bem próximas.
A rigorosa legislação venezuelana sobre a entrada de cientistas estrangeiros limitou pesquisas naquele país.
Foi só em 1951 que uma missão venezuelana localizou a nascente do Orinoco, 350 km acima de La Esmeralda, próximo à fronteira com o Brasil. Ela está a cerca de 200 km a leste do pico da Neblina. Nos dois lados da fronteira, há cerca de 15 anos, ocorreu um surto de garimpo, hoje bastante reduzido. A última povoação não-indígena na entrada do Cassiquiare é uma missão da entidade norte-americana New Tribes. Há muitas aldeias indígenas, inclusive ianomâmis, em toda a extensão do parque. Só depois do seu encontro com o Guainía, formando o rio Negro, é que surgem povoações maiores. As primeiras são as cidades de San Carlos de Rio Negro, do lado venezuelano, e de San Felipe, no colombiano. Menos de cem quilômetros rio abaixo, está o povoado de Cucuí, a primeira localidade brasileira, pertencente ao município de São Gabriel da Cachoeira (AM). Há uma estrada de terra, com 240 km de extensão, ligando Cucuí à sede do município. Mas o rio continua sendo a principal via de transporte por ali.
De helicóptero
O único trabalho de pesquisa feito pela
expedição Humboldt na Venezuela foi este do Cassiquiare. De resto, a missão foi
considerada de intercâmbio científico-cultural, devido ao rigor das leis
daquele país quanto a pesquisas por estrangeiros. Em algumas áreas de
fronteira, a expedição viajou em helicóptero da Força Aérea venezuelana, por
causa dos conflitos armados na vizinha Colômbia.
A situação colombiana, aliás,
reflete-se em toda a região. O Brasil retomou o Projeto Calha Norte, há anos
paralisado, e está ampliando a presença militar em toda a fronteira. Há, nessas
ações, sintonia com o Plano Colômbia, iniciado pelo governo dos EUA sob o
pretexto de combate ao narcotráfico.
Já em solo brasileiro, a expedição deu
início a um grande número de trabalhos científicos, técnicos ou de simples
interação com as comunidades ribeirinhas.
A região do alto rio Negro, conhecida
como Cabeça do Cachorro, hoje é formada, em sua maior parte, por terras
indígenas ou unidades de conservação. Ali mais de 30 mil índios estão
organizados em 42 associações, e essas formam a forte Federação das
Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn).
Em São Gabriel, a Expedição
Humboldt concluiu sua primeira etapa no regresso ao Brasil. Seu primeiro trecho
começou em Manaus, por terra, em 1º de setembro, entrando na Venezuela por
Roraima. Ainda há três etapas até Belém do Pará, onde chegará no dia 4 de
novembro. Só então haverá um relatório final de todas as atividades, que será
divulgado em livro e vídeo.
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