sábado, 22 de outubro de 2016

ANTHROPOS + LOGOS


A diferença que a diferença faz

Altair Sales Barbosa

Entre as ciências que se dedicam ao estudo do Homem, a Antropologia é a única que o estuda como animal e as coisas que este animal faz ou poderá fazer.

Ao estudar o Homem como animal, a Antropologia abraça a Biologia em termos metodológicos e desse abraço surgiram dentre outras revoluções do conhecimento, as classificações sanguíneas, a descoberta do DNA, o conhecimento do genoma humano, a descoberta e função da melanina, a sistemática ou taxonomia animal, etc. Com base na Anatomia e outras técnicas somáticas, a Antropologia descobriu a datiloscopia ou a individualidade das impressões digitais que evoluiria para a Antropometria, hoje genericamente conhecida como Biometria.

Assim, a Antropologia demonstrou ao mundo que pigmeus, germânicos, árabes, zulus, carajás, judeus, russos, holandeses, portugueses etc. não passam de variações dentro de uma só espécie. Entretanto, com base na Paleontologia a mesma Antropologia revelou que nem sempre fomos o que somos. Australopithecus, Pithecantropus, Neandertal e Cro-Magnon além de evidenciarem de que um dia fomos Homo-habilis, Homo-erectus e Homo-sapiens primitivo, evidencia também que a terra presenciou, num período não muito distante a existência de duas humanidades. Uma foi extinta no Paleolítico Superior. Somos sobreviventes da humanidade que triunfou.


Para compreender a totalidade do homem, o antropólogo se transformou num estudioso árduo da Primatologia. Desses estudos surgem conhecimentos novos, tais como a Sexologia, cujo estudo deste tema na sociedade bonobo contrariou antigas suposições sobre a supremacia masculina na evolução humana, criando assim as janelas que possibilitaram o estudo de “gênero” hoje tão atual.

Os estudos antropológicos associados a pesquisa médica proporcionaram conhecimento de um tipo especial de mutação genética que com frequência causa doenças nos seres humanos, isto ajudou a medicina perceber que certos grupos humanos são mais susceptíveis a determinadas patologias que outros. Possibilitou também o rastreamento das doenças, descobrindo em alguns casos as suas origens. Foi a Antropologia que alertou aos programas humanitários universais, sobre a necessidade de se conhecer os hábitos alimentares das populações a serem atendidas, pois certos grupos humanos ao ingerirem a lactose contida no leite bovino inevitavelmente contrairão a diarreia. 

Com a Geologia, a Antropologia, buscou compreender a história do planeta através dos seus estratos, para entender a história do Homem. Este processo conhecido como estratigrafia que traz noções sobre datação relativa, motivou a Física e a Química criarem os métodos para datação absoluta.

Portanto, gênese, evolução, adaptação e mutação, são apenas algumas das facetas da Antropologia Física ou Biológica, aquela parte da Antropologia que estuda o Homem como animal. E, assim procedendo a Antropologia demonstrou que compartilhamos com os demais animais muito mais semelhanças que diferenças.

Ao estudar as coisas produzidas pelo animal humano, a Antropologia criou o conceito de cultura, embora este já havia sido concebido por Locke no seu “An essay concerning human understanding”, mas foi a Antropologia que o lapidou, produzindo a partir de então uma verdadeira revolução nas ciências conhecidas como humanas, sociais, políticas e econômicas. 

A Antropologia que foi concebida por alguns como a ciência da História, ultrapassou este limite, demonstrando que a História tem seu próprio corpo epistemológico, criando a história da História.

Ao demonstrar que a aquisição da linguagem e do simbolismo nas artes pode ser a causa das extraordinárias habilidades cognitivas e que nosso intelecto supostamente único tem raízes muito mais profundas do que se supõe, a Antropologia abriu caminhos para a Filosofia, Psicologia e Pedagogia, portanto não é de se estranhar que a tolerância a outros costumes é uma atitude característica nas obras de Descartes, Vico, Voltaire, Diderot, Montesquieu, Turgot, só para citar alguns pensadores que caracterizam a época do Ilustracionismo. Não é de estranhar também a convergência de idéias, nas obras de Freud, Ruth Benedict, Margaret Mead e os estudos atuais da Psicologia comportamental que tem suas bases na Primatologia.


Também não é de se estranhar que pedagogos criadores de “métodos” buscaram inspirações em estudos antropológicos foi assim com Maria Montessori (1900), foi assim com Paulo Freire (1968). A autora, criadora do método Montessori afirmava “A Antropologia Pedagógica difere da Antropologia Criminal e da Antropologia Médica; estas duas não têm nem necessitam mais cultivadores do que médicos especialistas. Pelo contrário, a primeira, além de médicos, aos quais se confiam os diagnósticos e cura, necessita fundamentalmente do professor o qual deve realizar pessoalmente um grande trabalho de observação que possibilite a continuidade dos trabalhos de observação médica”.
Já Paulo Freire, fundamentado no conceito de cultura, criou uma concepção fecunda de Pedagogia da dominação, Pedagogia da alienação, Pedagogia da conscientização e Pedagogia da libertação.

 Não se pode negar a importância das técnicas desenvolvidas pela Antropologia, para a Educação Física, para os Serviços Militares e para outras incontáveis atividades humanas. A Antropologia demonstrou também para as Ciências Jurídicas, que existe outros corpos jurídicos, independentes da orientação greco-romana, pelos quais pautam aborígines australianos, nativos africanos e indígenas americanos e brasileiros. Mesmo altas civilizações têm ou tiveram seus corpos jurídicos próprios, fora dos padrões ocidentais. Ainda em sociedades pautadas pelo Direito Greco-Romano, foi responsabilidade da Antropologia demonstrar a força do Direito Consuetudinário.

Nesse movimento de distanciamento de antigos triunfos transformados em comodismo, de grandes avanços de outrora transformados em barreiras, a Antropologia desempenhou em nossa época um papel de vanguarda. Fomos os primeiros a insistir numa série de coisas: que o mundo não se divide entre devotos e supersticiosos; que há esculturas nas selvas e pinturas nos desertos; que a ordem política é possível sem o poder centralizado, e a justiça proba sem regras codificadas; que as normas da razão não foram estabelecidas na Grécia nem a evolução da moral se consumou na Inglaterra. Mais importante, fomos os primeiros a insistir em que vemos a vida dos outros através das lentes que nós próprios polimos e que os outros nos vêem através das deles.

A Antropologia criou na academia a figura do pesquisador de campo, que nunca foi bem compreendida pelas academias periféricas, demonstrou que as habilidades necessárias na sala de aula e as exigências em campo são bem diferentes. O sucesso num ambiente não garante o sucesso no outro e vice-versa, mas ambos são imprescindíveis, naquelas instituições que querem se destacar pela eficiência.

A lista das relações da Antropologia com outros campos do conhecimento é interminável e precisaria de muito espaço e tempo para explicitá-la. Entretanto, para finalizar não poderia passar desapercebida a relação entre Antropologia e Geografia, porque tratam de ciências gêmeas siamesas, uma não vive sem a outra.

Na sua própria concepção Geografia e Antropologia se apoiam
em duas pernas interdependentes. A primeira se apóia nas pernas física e humana, a segunda se apóia nas pernas física e cultural. Nos seus princípios a Geografia desenvolveu seu raciocínio com base no determinismo geográfico enquanto a Antropologia fez o mesmo, com base no determinismo racial. Com o passar dos tempos uma série de orientações teóricas similares cadenciam as duas ciências de forma quase idêntica: possibilismo, funcionalismo, relativismo, positivismo que motiva o estruturalismo, a revisão do determinismo e atualmente o materialismo histórico e cultural, que desemboca na atual orientação teórica denominada ecologia cultural já adotada pela Antropologia de forma consistente, enquanto a Geografia busca achar caminhos para os problemas ambientais atuais.

Portanto, como a Geografia se perdeu na unilateralidade da interpretação equivocada do materialismo dialético. A Antropologia, como ciência irmã sente-se na obrigação de reafirmar que o homem atual é o resultado de dois processos evolutivos que se sobrepuseram ao longo do tempo: a evolução biológica que comparte com os demais seres vivos e que fundamentalmente consiste na transferência das adaptações biológicas que facilitam a sobrevivência e seleção das espécies e a evolução cultural, produto dos avanços tecnológicos logrados pela espécie humana em sua evolução biológica.


A evolução cultural tem significado por um lado, a organização do homem em grupos sociais que tem gerado problemas demográficos, problemas de saúde, problemas de educação, problemas institucionais etc. Por outro lado, a evolução cultural agregou, ao fluxo básico de energia e de informação e de circulação de matéria, o fluxo de dinheiro como resultado de intercâmbios e das transações, gerando assim uma serie de variáveis econômicas relacionadas com produção, capital, trabalho, comércio, indústria, consumo, níveis de preços, planificação de inversões, maximização de ganho, transferências de tecnologias, etc. a aplicação das diversas tecnologias sobre o mundo natural, não só originou diversas manufaturas como: artesanato, instrumentos, maquinários etc. como também deu origem a uma grande quantidade de ecossistemas artificiais, cidades, metrópoles, megalópoles, campos de cultivo, áreas de pastoreiro, pastagens artificiais, represas, canais de regadio, rodovias, vias férreas, aeroportos, grandes usinas, complexos atômicos, etc. Por último, a evolução cultural deu origem a uma série de estruturas ou ideo-facturas filosóficas, crenças, conhecimentos, valores, normas etc.

O homem atual pertence, portanto, a dois mundos diferentes: ao mundo natural por herança, já que é um ser vivo e ao mundo sócio-cultural, como conseqüência de sua própria evolução cultural.
O Meio Ambiente Humano atual é um sistema complexo no qual intervém variáveis físicas, químicas, biológicas, sociais, econômicas e culturais, o que dá origem a uma trama complexa de interação e interdependências.

Isto significa que quando se analisa um ecossistema humano tem que considerar, tanto as variáveis relacionadas com as bases físicas que sustentam a primeira perna da geografia, como as variáveis relacionadas com o sócio-estruturas, as tecno-estruturas e as estruturas culturais. Como um todo integrado, porque a organização básica do ecossistema natural segue vigente ainda que profundamente modificada e enriquecida quanto ao número de variáveis participantes.

No campo da Geopolítica, foi a Antropologia que chamou a atenção para a ideia que pregava o fim da história com a criação do Homo-Davos(2006). Alertou que a criação de fundos mundiais ao invés de amenizar, acentuaria a pobreza.

Alertou a humanidade para os perigos do grande capital, com relação a privatização, transposição e uso indiscriminado e sem planejamento dos recursos de água potável. Alertou ainda que a falta de idealismo, na qual o sistema estava e está conduzindo a juventude ocidental, poderia direcionar essa juventude para ações e práticas onde o idealismo tenha um sinal forte e desperte esperanças, mesmo que algumas das práticas e ações sejam marcadas pelo sectarismo.

Tem criticado a atitude mercantilista de falsos profetas religiosos, que se utilizam até de sofisticados meios de comunicação de massa, para fortalecerem seus impérios. Tal como cegos que não querem enxergar as consequências danosas dessas práticas, que por sinal ajudam a minar o ideal de homens de boa fé, engajados na construção de uma sociedade recheada de verdadeiros cidadãos.   

Este é o papel da Antropologia: inquietar, ficar de atalaia. Tranquilizar é tarefa de outros e parafraseando Geertz, diríamos se quiséssemos verdades caseiras, deveríamos ter ficado em casa.

Este é o papel da Antropologia destacar e respeitar as diferenças na aldeia global de Mac Luhan.


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