A diferença que a diferença faz
Altair Sales Barbosa
Entre as ciências que se dedicam
ao estudo do Homem, a Antropologia é a única que o estuda como animal e as
coisas que este animal faz ou poderá fazer.
Ao estudar o Homem como animal, a
Antropologia abraça a Biologia em termos metodológicos e desse abraço surgiram
dentre outras revoluções do conhecimento, as classificações sanguíneas, a
descoberta do DNA, o conhecimento do genoma humano, a descoberta e função da
melanina, a sistemática ou taxonomia animal, etc. Com base na Anatomia e outras
técnicas somáticas, a Antropologia descobriu a datiloscopia ou a individualidade
das impressões digitais que evoluiria para a Antropometria, hoje genericamente
conhecida como Biometria.
Assim, a Antropologia demonstrou
ao mundo que pigmeus, germânicos, árabes, zulus, carajás, judeus, russos,
holandeses, portugueses etc. não passam de variações dentro de uma só espécie.
Entretanto, com base na Paleontologia a mesma Antropologia revelou que nem
sempre fomos o que somos. Australopithecus, Pithecantropus, Neandertal e Cro-Magnon
além de evidenciarem de que um dia fomos Homo-habilis, Homo-erectus e Homo-sapiens
primitivo, evidencia também que a terra presenciou, num período não muito
distante a existência de duas humanidades. Uma foi extinta no Paleolítico
Superior. Somos sobreviventes da humanidade que triunfou.
Os estudos antropológicos associados
a pesquisa médica proporcionaram conhecimento de um tipo especial de mutação
genética que com frequência causa doenças nos seres humanos, isto ajudou a
medicina perceber que certos grupos humanos são mais susceptíveis a
determinadas patologias que outros. Possibilitou também o rastreamento das
doenças, descobrindo em alguns casos as suas origens. Foi a Antropologia que
alertou aos programas humanitários universais, sobre a necessidade de se
conhecer os hábitos alimentares das populações a serem atendidas, pois certos
grupos humanos ao ingerirem a lactose contida no leite bovino inevitavelmente contrairão
a diarreia.
Com a Geologia, a Antropologia,
buscou compreender a história do planeta através dos seus estratos, para
entender a história do Homem. Este processo conhecido como estratigrafia que
traz noções sobre datação relativa, motivou a Física e a Química criarem os
métodos para datação absoluta.
Portanto, gênese, evolução,
adaptação e mutação, são apenas algumas das facetas da Antropologia Física ou
Biológica, aquela parte da Antropologia que estuda o Homem como animal. E,
assim procedendo a Antropologia demonstrou que compartilhamos com os demais
animais muito mais semelhanças que diferenças.
Ao estudar as coisas produzidas
pelo animal humano, a Antropologia criou o conceito de cultura, embora este já
havia sido concebido por Locke no seu “An essay concerning human understanding”,
mas foi a Antropologia que o lapidou, produzindo a partir de então uma
verdadeira revolução nas ciências conhecidas como humanas, sociais, políticas e
econômicas.
A Antropologia que foi concebida
por alguns como a ciência da História, ultrapassou este limite, demonstrando
que a História tem seu próprio corpo epistemológico, criando a história da História.
Ao demonstrar que a aquisição da
linguagem e do simbolismo nas artes pode ser a causa das extraordinárias
habilidades cognitivas e que nosso intelecto supostamente único tem raízes
muito mais profundas do que se supõe, a Antropologia abriu caminhos para a
Filosofia, Psicologia e Pedagogia, portanto não é de se estranhar que a
tolerância a outros costumes é uma atitude característica nas obras de Descartes,
Vico, Voltaire, Diderot, Montesquieu, Turgot, só para citar alguns pensadores
que caracterizam a época do Ilustracionismo. Não é de estranhar também a
convergência de idéias, nas obras de Freud, Ruth Benedict, Margaret Mead e os
estudos atuais da Psicologia comportamental que tem suas bases na Primatologia.
Também não é de se estranhar que
pedagogos criadores de “métodos” buscaram inspirações em estudos antropológicos
foi assim com Maria Montessori (1900), foi assim com Paulo Freire (1968). A
autora, criadora do método Montessori afirmava “A Antropologia Pedagógica
difere da Antropologia Criminal e da Antropologia Médica; estas duas não têm
nem necessitam mais cultivadores do que médicos especialistas. Pelo contrário,
a primeira, além de médicos, aos quais se confiam os diagnósticos e cura, necessita
fundamentalmente do professor o qual deve realizar pessoalmente um grande trabalho
de observação que possibilite a continuidade dos trabalhos de observação
médica”.
Já Paulo Freire, fundamentado no
conceito de cultura, criou uma concepção fecunda de Pedagogia da dominação, Pedagogia
da alienação, Pedagogia da conscientização e Pedagogia da libertação.
Não se pode negar a importância das técnicas
desenvolvidas pela Antropologia, para a Educação Física, para os Serviços Militares
e para outras incontáveis atividades humanas. A Antropologia demonstrou também
para as Ciências Jurídicas, que existe outros corpos jurídicos, independentes
da orientação greco-romana, pelos quais pautam aborígines australianos, nativos
africanos e indígenas americanos e brasileiros. Mesmo altas civilizações têm ou
tiveram seus corpos jurídicos próprios, fora dos padrões ocidentais. Ainda em
sociedades pautadas pelo Direito Greco-Romano, foi responsabilidade da Antropologia
demonstrar a força do Direito Consuetudinário.
Nesse movimento de distanciamento
de antigos triunfos transformados em comodismo, de grandes avanços de outrora
transformados em barreiras, a Antropologia desempenhou em nossa época um papel
de vanguarda. Fomos os primeiros a insistir numa série de coisas: que o mundo
não se divide entre devotos e supersticiosos; que há esculturas nas selvas e
pinturas nos desertos; que a ordem política é possível sem o poder
centralizado, e a justiça proba sem regras codificadas; que as normas da razão
não foram estabelecidas na Grécia nem a evolução da moral se consumou na
Inglaterra. Mais importante, fomos os primeiros a insistir em que vemos a vida
dos outros através das lentes que nós próprios polimos e que os outros nos vêem
através das deles.
A Antropologia criou na academia
a figura do pesquisador de campo, que nunca foi bem compreendida pelas academias
periféricas, demonstrou que as habilidades necessárias na sala de aula e as
exigências em campo são bem diferentes. O sucesso num ambiente não garante o
sucesso no outro e vice-versa, mas ambos são imprescindíveis, naquelas
instituições que querem se destacar pela eficiência.
A lista das relações da Antropologia
com outros campos do conhecimento é interminável e precisaria de muito espaço e
tempo para explicitá-la. Entretanto, para finalizar não poderia passar
desapercebida a relação entre Antropologia e Geografia, porque tratam de
ciências gêmeas siamesas, uma não vive sem a outra.
Na sua própria concepção
Geografia e Antropologia se apoiam
em duas pernas interdependentes. A primeira
se apóia nas pernas física e humana, a segunda se apóia nas pernas física e
cultural. Nos seus princípios a Geografia desenvolveu seu raciocínio com base no
determinismo geográfico enquanto a Antropologia fez o mesmo, com base no
determinismo racial. Com o passar dos tempos uma série de orientações teóricas
similares cadenciam as duas ciências de forma quase idêntica: possibilismo,
funcionalismo, relativismo, positivismo que motiva o estruturalismo, a revisão
do determinismo e atualmente o materialismo histórico e cultural, que desemboca
na atual orientação teórica denominada ecologia cultural já adotada pela
Antropologia de forma consistente, enquanto a Geografia busca achar caminhos
para os problemas ambientais atuais.
Portanto, como a Geografia se
perdeu na unilateralidade da interpretação equivocada do materialismo dialético.
A Antropologia, como ciência irmã sente-se na obrigação de reafirmar que o
homem atual é o resultado de dois processos evolutivos que se sobrepuseram ao
longo do tempo: a evolução biológica que comparte com os demais seres vivos e
que fundamentalmente consiste na transferência das adaptações biológicas que
facilitam a sobrevivência e seleção das espécies e a evolução cultural, produto
dos avanços tecnológicos logrados pela espécie humana em sua evolução
biológica.
A evolução cultural tem
significado por um lado, a organização do homem em grupos sociais que tem
gerado problemas demográficos, problemas de saúde, problemas de educação,
problemas institucionais etc. Por outro lado, a evolução cultural agregou, ao
fluxo básico de energia e de informação e de circulação de matéria, o fluxo de
dinheiro como resultado de intercâmbios e das transações, gerando assim uma
serie de variáveis econômicas relacionadas com produção, capital, trabalho,
comércio, indústria, consumo, níveis de preços, planificação de inversões,
maximização de ganho, transferências de tecnologias, etc. a aplicação das
diversas tecnologias sobre o mundo natural, não só originou diversas
manufaturas como: artesanato, instrumentos, maquinários etc. como também deu
origem a uma grande quantidade de ecossistemas artificiais, cidades,
metrópoles, megalópoles, campos de cultivo, áreas de pastoreiro, pastagens
artificiais, represas, canais de regadio, rodovias, vias férreas, aeroportos,
grandes usinas, complexos atômicos, etc. Por último, a evolução cultural deu
origem a uma série de estruturas ou ideo-facturas filosóficas, crenças,
conhecimentos, valores, normas etc.
O homem atual pertence, portanto,
a dois mundos diferentes: ao mundo natural por herança, já que é um ser vivo e
ao mundo sócio-cultural, como conseqüência de sua própria evolução cultural.
O Meio Ambiente Humano atual é um
sistema complexo no qual intervém variáveis físicas, químicas, biológicas,
sociais, econômicas e culturais, o que dá origem a uma trama complexa de
interação e interdependências.
Isto significa que quando se
analisa um ecossistema humano tem que considerar, tanto as variáveis relacionadas
com as bases físicas que sustentam a primeira perna da geografia, como as
variáveis relacionadas com o sócio-estruturas, as tecno-estruturas e as
estruturas culturais. Como um todo integrado, porque a organização básica do
ecossistema natural segue vigente ainda que profundamente modificada e
enriquecida quanto ao número de variáveis participantes.
No campo da Geopolítica, foi a
Antropologia que chamou a atenção para a ideia que pregava o fim da história
com a criação do Homo-Davos(2006). Alertou que a criação de fundos mundiais ao
invés de amenizar, acentuaria a pobreza.
Alertou a humanidade para os
perigos do grande capital, com relação a privatização, transposição e uso
indiscriminado e sem planejamento dos recursos de água potável. Alertou ainda
que a falta de idealismo, na qual o sistema estava e está conduzindo a
juventude ocidental, poderia direcionar essa juventude para ações e práticas onde o idealismo tenha um sinal forte e desperte esperanças, mesmo que algumas das práticas e ações sejam marcadas pelo sectarismo.
Tem criticado a atitude
mercantilista de falsos profetas religiosos, que se utilizam até de
sofisticados meios de comunicação de massa, para fortalecerem seus impérios. Tal
como cegos que não querem enxergar as consequências danosas dessas práticas,
que por sinal ajudam a minar o ideal de homens de boa fé, engajados na
construção de uma sociedade recheada de verdadeiros cidadãos.
Este é o papel da Antropologia:
inquietar, ficar de atalaia. Tranquilizar é tarefa de outros e parafraseando
Geertz, diríamos se quiséssemos verdades caseiras, deveríamos ter ficado em
casa.
Este é o papel da Antropologia
destacar e respeitar as diferenças na aldeia global de Mac Luhan.
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