sábado, 25 de março de 2017

O ERRANTE GERAIZEIRO



Em Homenagem a Clodomir Santos de Morais

Altair Sales Barbosa

Seu Nhandu era um senhor esguio, pernas compridas e tez morena clara. Ninguém sabia ao certo sua moradia. Era um andarilho dos gerais. Nada se ouvia de sua boca a não ser, vez em quando, um lapso de humm... humm...! Percorria época sim, época não as feiras animadas, que existiam nos pequenos povoados daqueles sertões de dentro. Sempre carregava um velho e surrado alforje, no qual colocava alguns presentes que ganhava dos feirantes: farinha, rapadura, sal, arroz e até beijuzinho de tapioca. Às costas trazia um saco de estopa com alguma coisa volumosa, leve e disforme, que despertava em todos certa curiosidade. Não fazia mal a ninguém. Sempre tranquilo, andava com olhar aguçado reparando tudo que via; às vezes se admirava com uma ou outra coisa, e, com muita atenção e sinal de respeito, ouvia a cantiga dos cantadores. Seu semblante só mudava quando pressentia o som de uma rabeca.

Ficava parado ao lado das rodas de pessoas que conversavam e trocavam opiniões sobre assuntos variados. Parecia se inteirar dos noticiários. Mas nunca dizia nada, nem pedia as coisas, o agrado vinha de graça, porque todos gostavam dele. Agradecia com gesto singular e por isso todos pensavam tratar-se de um ser que não possuía a propriedade da voz. Nunca pronunciou uma só palavra.

Quando a feira ia chegando nos finalmente, ele tomava um rumo qualquer e partia, ficava às vezes até três meses sem voltar naquele local. No outro fim de semana, lá estava ele na feira de outro povoado, carregando o mesmo tipo de comportamento. No final, sumia novamente. Ninguém sabe para onde ia.

Curioso é que, em todos os lugares que aparecia, era conhecido pelo codinome de “Seu Nhandu”, certamente apelidado pelos feirantes. A alcunha de Nhandu deveria ser pelo porte esguio, semelhante ao da ema, ave conhecida pelos geraiseiros por este nome.

Certa ocasião, Seu Nhandu desapareceu por muito tempo das feiras, cerca de três anos, mais ou menos. Todos sentiram sua ausência. E não faltaram comentários sobre o paradeiro. Uns perguntavam “será que ainda é vivente?”; outros atreviam a dizer que onça o comeu. E, assim, por esses caminhos situados entre adivinhação e lamentação, o povo das feiras desenhava o destino de Seu Nhandu.

Um belo dia, era sábado, não faz tanto tempo assim, quando as chuvas de outubro ainda não haviam dado o ar da graça e os riachos já estavam secos e o povo, meio atônito, se agonizava na feira de Santo Antônio das Águas Puras para se remediar do pouco que encontrava. Naquele momento, uma figura esguia, maltrapilha como sempre e com um saco de estopa às costas aponta na ladeira do areião. O povo meio que surpreso e estupefato, não teve dúvida: - É o Seu Nhandu. E à medida que se aproximava da feira, todo aquele povo, num gesto simbólico, parecia reverenciá-lo. Seu Nhandu, como sempre, chegou sereno, mas dessa vez estava sem os alforjes e dizem que alguém o notou angustiado. Foi então que ele, num gesto educado e calmo, pegou um banquinho de madeira e dirigindo-se ao centro da feira, assim se expressou: “Hoje tenho uma história para lhes contar”.

Um misto de comoção e surpresa tomou conta do povaréu, pois todos achavam que ele era mudo.

Foi então que ele se pôs a falar:
- Povo de Santo Antônio, meus irmãos, fiquei muito tempo longe de vocês, senti a falta de cada um como se sente a falta de um ente querido. Senti também tamanha saudade, que às vezes meus olhos não suportavam a quantidade de águas e eu chorava. Meu nome é Antônio e não Nhandu como vocês carinhosamente me chamam. Nas feiras dos povoados por onde andei, percebi no ar uma grande curiosidade sobre o conteúdo que eu carregava no saco de estopa. Hoje vou revelar a vocês. São sementes de tingui, conhecidas em outras localidades como timbó, hoje as deixo para vocês.

Nesses quase três anos de ausência, pude percorrer vários cantos desse imenso gerais. Presenciei coisas estarrecedoras.

Quando eu era mais jovem, gostava de ficar muito tempo à beira dos rios para ver a piracema da manjuba. Ficava dias. E me perguntava de onde vinha tanto peixe. Na espreita ao lado, vibrava quando surubins e dourados, esganados como sempre, se atiravam sobre o cardume. Gostava de visitar as aguadas, as lagoas que se formavam ao longo dos rios, recheadas de peixes. E, também, descansar de barriga para cima à sombra de um pequizeiro onde inutilmente tentava contar o número dos bandos das aves de arribação. O sabor gelatinoso dos puçás e o agridoce vinho do buriti criavam a sensação de que eu estaria entrando no sétimo céu de Allah, descrito pelo profeta no livro do Alcorão.

Quase entrava em delírio quando algum morador desses muitos ranchos de buritis dos gerais me oferecia um copo de lata recheado com café de fedegoso adoçado com rapadura.

Pois sim, meus irmãos! Nesses três anos que me ausentei de vocês saí quase que como numa missão para rever esses locais. O resultado dessas visitas veio como um saco de desilusão, tal qual o que carreguei a vida toda, recheado de tingui.

Nada das minhas lembranças existe mais, as águas, as piracemas, as lagoas, os pequizeiros, os ranchos de buritis, todos queimados. Aliás, no último pelo qual passei ainda se ouvia o estalar das brasas.
 
Pensei, meu Deus o que terá acontecido?

Foi aí que recordei das profecias do velho João-Cego, que morava lá pras bandas do Taboleiro da Conceição e sempre gostava de repetir: “Vocês mais jovens tomem cuidado, porque chegará um dia em que gente estranha vai pisar neste lugar dizendo para todos bem assim:
  

“Quero terra”.
“Quero água”.

E, para conseguir esses bens, usará de meios escusos, perigosos e enganadores, que eles escondem atrás de uma botija como se esta fosse do bem. Uma vez instalados, roubarão tudo que é seu, tudo que você ama e construiu, roubarão a vida de vocês que, no fundo, se confunde com a vida dos rios e dos gerais.

Eu vim aqui hoje até vocês, para lhes suplicar duas coisas: Espalhem essas notícias e nunca deixem que os forasteiros ou seus mandantes lhes roubem a alma e tirem de vocês a capacidade de sonhar.

Dizendo assim, com uma voz forte e sonora, pronunciou a frase latina:
“Eodem habitus et actus nostros in via nostra dependet!”

Depois mansamente desceu do banco, colocou-o no local onde o pegou e seguiu mundo afora no rumo do areião.

O povo, atônito, não sabia o que fazer, nem o que dizer, um silêncio fundo tomou conta do lugar. Ninguém deu um pio.  Quando todos acordaram de seu estado quase letárgico e procuraram pelo senhor Antônio ou Seu Nhandu, este já havia sumido.

Só se avistou no centro da feira um monte de sementes secas de Tingui.



* Tradução da frase latina:
 "O rumo dessa estrada dependerá de nossas atitudes e de nossas ações!"









2 comentários:

Francisco Carneiro disse...

Cheguei a pensar que seu Antonio era mais um viajante deste país, mas não era. Era mais um sábio destes rincões de nosso país que são taxados como loucos, mas que são verdadeiros desbravadores,"cientistas" naturais, que precisavam ser vistos, ouvidos pelos cientistas das universidades e ai quem sabe teríamos um país melhor pra vivermos.
Parabéns professor.

José Luiz Vaz disse...

Quem vive ou viveu nesses interiores brasis, há de se lembrar de muitos Antonio Nhandu! Nunca dizem a que vieram, mas quando são necessários, estão prontos, e todo o seu imenso conhecimento disponível.