terça-feira, 17 de junho de 2008

Semana do Índio

Uma dívida com a história e um buraco na consciência

Estamos em abril, certamente alguém lembrará, que neste mês é comemorado o Dia do Índio, 19 de abril. Muitas fotos serão publicadas e alguns artigos irão rechear as páginas dos jornais e revistas e ilustrar imagens da televisão. Nesta perspectiva, aproveitamos a oportunidade para colocarmos alguns pontos que possam esclarecer a real história e situação indígena, na região do cerrado. A compreensão destes pontos é de fundamental importância, para que inspire nos homens a busca da construção de uma sociedade justa.

Embora marginalizados desde o início pela colonização portuguesa, a cultura indígena era tão forte que contribuiu de forma decisiva para a formação da identidade do povo brasileiro. E, se penetrarmos além das aparências, veremos que nós brasileiros carregamos a cada momento do nosso cotidiano vários elementos indígenas: nos gens, na alimentação, nas músicas e nos inúmeros medicamentos, nos mitos etc. O nosso lado de predarmos a natureza certamente não herdamos do índio.

Se pudéssemos recuar no tempo talvez resumiríamos de forma poética essa história da seguinte forma:

O sol ainda tingia de dourado as folhas do buriti, quando pela primeira vez o índio pisou nessa terra Pindorama.

Isto foi há muito tempo; de lá para cá, mais de 550 gerações se passaram.

No início eram grupos nômades, caçadores e coletores; muito tempo depois eles se transformaram em agricultores e colonizaram os verdejantes vales desta terra. Neste local, implantaram suas grandes aldeias e seus roçados.

E, assim, viviam tranqüilos, respeitando a riqueza do ambiente e as fronteiras que estabeleceram.

Depois que os troncos e famílias lingüisticas se formaram, Tupi foi para o norte, Guarani para o sul, Tupinambá para o litoral e os guerreiros povoaram o centro da América do Sul.

Entretanto, como antropólogo e arqueólogo, sentimos-nos na obrigação de esmiuçar com dados concretos, os passos dessa história, mesmo que seja ainda resumida.

A região do Cerrado é um ponto de encontro entre a Amazônia, o Nordeste e o Sul. O planalto é recortado pelos rios das três grandes bacias brasileiras (do Amazonas, do Paraná e do São Francisco), acompanhadas de matas de galeria, ora mais ora menos largas. No encontro dos rios das três bacias formou-se uma extensão maior de floresta, conhecida como Mato Grosso de Goiás.

As áreas de matas oferecem solos para cultivos, a serem instalados no começo das chuvas. Por outro lado, o cerrado é muito rico em caça e em grandes variedades de frutos que podem complementar a agricultura no começo das chuvas, os rios proporcionam muito peixe no começo da estação seca.

Muito antes dos horticultores ceramistas, os caçadores e coletores pré-cerâmicos se haviam esparramado pelo território, utilizando os recursos de acordo com suas necessidades e em conformidade com sua tecnologia. Não se tem ainda nenhuma idéia de quando e como se instalaram os cultivos. Aparentemente, eles não surgiram nesta área, porque as diversas tradições tecnológicas até agora estudadas pertencem a horizontes mais amplos e as datas mais altas para horticultores já instalados se encontram fora da região.

Faz exceção a Tradição Uru, até agora só conhecida no oeste de Goiás, mas que certamente ultrapassa os seus limites em direção ao Estado de Mato Grosso, ainda não pesquisado. Os cultivos poderiam ter chegado através da migração de grupos horticultores, ou pela aculturação dos caçadores e coletores anteriormente aí presentes, que os poderiam ter recebido de vizinhos. É possível que ambos os fenômenos tenham ocorrido.

Certamente não se pode mais resumir todo o jogo do povoamento em deslocamentos de grupos já prontos, por que sobra a pergunta: onde estes se formaram? Certamente, como nas outras áreas do mundo, os sistemas agrícolas desenvolvidos por populações indígenas, como as de Goiás, são o resultado final de um longo processo de experimentação, de coleta, cultivo e domesticação, desenvolvimento e empréstimo de técnicas de um ajustamento da sociedade.

Talvez a transição do período úmido e quente do altitermal para um período mais seco e ameno, fato que ocorreu por volta de seis mil anos antes do presente, fosse a ocasião do aparecimento da agricultura na região. O fato é que no centro do Brasil ainda se desconhece por completo todo o processo, porque depois dos caçadores se encontram de repente, já formados, os horticultores ceramistas num tempo em que o ambiente supostamente já era o atual. O mais antigo até agora detectado é denominado pela arqueologia como Fase Pindorama, supostamente horticultor, que já tem cerâmica ao menos desde 2.500 anos antes do presente. Toda essa denominação se refere à classificação usada pela arqueologia. Depois aparece a Tradição Aratu/Sapucaí, a Una, a Uru e a Tupiguarani.

As diferentes Tradições (cerâmicas) de horticultores exploram ambientes e cultivos diversos. A Tradição Una coloniza vales enfurnados, geralmente pouco férteis, com predominância de cerrados usando como habitação os abrigos e grutas naturais e como economia uma forte associação de cultivos, onde predomina o milho, com a caça e com a coleta. Imagina-se que a população se distribuía em pequenas sociedades, mais aptas para explorar os recursos diversificados que poderiam alcançar do seu ponto de instalação: o rio próximo, a pequena mata de galeria, o cerrado e muitas vezes o campo no alto do chapadão. Este ambiente não é disputado pelos grupos que constroem suas aldeias em áreas abertas.

Os primeiros aldeões conhecidos são os da Tradição Aratu/Sapucaí. Seus domínios são os contra-fortes baixos das serras do centro-sul e leste de Goiás, especialmente as áreas férteis e mais florestadas do Mato Grosso de Goiás, onde podem instalar uma economia mais fortemente dependente de cultivos, mas provavelmente sem dispensar a exploração dos frutos do cerrado, a caça e a pesca. Sua população é numerosa e nenhum outro grupo conseguiu infiltrar-se no seu território, que por seus recursos deveria ser muito ambicionado.

Suas aldeias populosas poderiam permanecer longamente no mesmo lugar e quando era desejado poderia se deslocar para um espaço próximo porque o território era fértil e estava sob seu domínio. Também o sistema de cultivo, baseado em tubérculos e provavelmente no milho, pôde resistir aos avanços dos grupos mandioqueiros da Tradição Uru e Tupiguarani.

A Tradição Uru chega mais tarde e domina o centro-oeste do Estado. Avançando ao longo dos rios, ocupa terrenos mais baixos, provavelmente de pouca utilidade para os aldeões que haviam se instalados antes, mas importante para eles por causa da locomoção e principalmente da pesca. Desta forma se criou entre os dois grupos uma fronteira bastante estável, mas talvez não sempre pacífica, onde aparentemente a Tradição Aratu é mais receptiva, aceitando elementos tecnológicos selecionados, entre os quais não está a mandioca e seu processo de transformação, aceito apenas em locais restritos.

A Tradição Tupiguarani parece ser a mais recente das populações aldeãs do cerrado. Teve um certo domínio sobre o vale do Paranaíba; a partir dele acompanha os afluentes, indo acampar nos abrigos anteriormente habitados pela Tradição Una. Também tem aldeias dispersas na bacia do Alto Araguaia, mas aparentemente sem muita autonomia, convivendo às vezes na mesma aldeia com grupos horticultores de outras Tradições.

O Tupiguarani da bacia do Tocantins tem as aldeias ainda mais dispersas e recentemente, como se realmente fosse, tal qual se imagina, populações vindas já no período colonial, este fato contribuiu para que enfrentassem não só os demais índios aldeões já instalados, mas também os colonizadores brancos que os teriam trazido.

Se a Tradição Uru e a Tradição Tupiguarani, mandioqueiros, parecem mais próximos às culturas amazônicas, embora talvez não tenham procedência imediata de lá, a Tradição Aratu/Sapucaí faz parte de uma Tradição mais de Centro-Nordeste. A Tradição Una, com menos domínio sobre as áreas abertas, disputadas pelos aldeões da Tradição anterior, se comprime numa faixa entre estes e as populações coletoras e cultivadoras do planalto meridional, tradicionalmente conhecidas por suas aldeias de casas subterrâneas. Não obstante esta sua posição marginal, é nela, fora da amazônia, que estão as datas mais antigas para a cerâmica; talvez seja ela uma forma de cultura anterior ao desenvolvimento dos aldeões e, quem sabe, a origem deles.

Talvez com exceção do Tupiguarani, os representantes das outras Tradições de grupos horticultores viveram no território durante séculos sem muita movimentação, como numa terra que era deles; entre 70 e 100 gerações de horticultores sem maiores mudanças, a não ser as normais adaptações de fronteiras, onde populações mais antigas aceitem novas tecnologias recém-vindas.

E, assim viviam, até o dia em que irromperam na área, em grandes destacamentos armados, homens diferentes, não interessados em plantar, colher e caçar, nem em construir aldeias entre o cerrado e a mata, ou à beira da lagoa ou do rio. Queriam levar gente, pedras brilhantes e ouro. Para muito longe. Meados do século XVII.

Foi o caos. As roças foram pilhadas, as aldeias foram demolidas, as mulheres violentadas, as terras de cultivo invadidas, as pessoas morrendo de doenças desconhecidas. A guerra foi a solução ditada pelo desespero. A derrota, o aldeamento, a desmoralização, a extinção ou a fuga foram as conseqüências. Este é o tipo de relações sociais que herdamos e que molda nossa sociedade atual. Espero que este exemplo nos faça refletir e nos impulsione para a busca de um novo alvorecer, que faça brotar em nossos corações um raminho de coragem.

(abril/2006)

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