sábado, 8 de novembro de 2008

Cerrado - Biodiversidade e Pluralidade

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Os estudos sobre o Cerrado, enfatizando alguns dos seus aspectos abióticos e bióticos, sugerem que este domínio deve ser entendido como um Sistema Biogeográfico, composto por diversos subsistemas intimamente interatuantes. Os aspectos evolutivos dentro da paisagem geral da flora brasileira, desperta a necessidade de se repensar os modelos de planejamento ambiental e organização do espaço utilizados até então.

A área do cerrado cobre 2.000.000 Km2, situada nos chapadões centrais do Brasil e basicamente representando o ponto de equilíbrio entre os diversos "domínios" ou sistemas biogeográficos brasileiros, uma vez conecta com a maior parte deles, através de corredores hidrográficos, utilizados também como corredores de migração faunística.


O Cerrado como Sistema Biogeográfico


A região dos cerrados se enquadra em quase sua totalidade, dentro da Província Zoogeográfica Cariri-Bororo de Melo-Leitão ou no Distrito Zoogeográfico Tropical, definido por Cabrera e Yepes. Fitogeograficamente porém, é tratada de forma particular, constituindo uma província própria: Província do Cerrado, definida por Cabrera e Willink. Da mesma forma, Rizzini em sua Divisão Fitogeográfica do Brasil, dispensa o mesmo tratamento particularizado, incluindo-a na Sub-Província do Planalto Central, embora seus limites não coincidam com os limites da Província de Cabrera e Willink.

A região dos cerrados, não pode ser entendida como uma unidade zoogeográfica particularizada porque não apresenta esta característica, tampouco pode ser considerada uma unidade fitogeográfica, porque não se trata de uma área uniforme em termos de paisagem vegetal. O mais correto é correlacionar os diversos fatores que compõem a sua biocenose e defini-la como um Sistema Biogeográfico.

Um sistema porque abrange áreas planálticas - o Planalto Central Brasileiro- com altitude média de 650m, clima tropical subúmido de duas estações, solos variados e um quadro florístico e faunístico extremamente diversificados e interdependentes. A fauna variada que transita noutros domínios morfoclimáticos e fitogeográficos, como por exemplo a caatinga, tem sua maior concentração registrada nesta região ou neste Sistema Biogeográfico, em virtude das possibilidades alimentares que oferece, durante todo ciclo anual.

Há um estratogramíneo, que sustenta uma fauna de herbívoros durante boa parte do ano enquanto não está seco. A sequia acontece no exato momento em que aparecem as flores, que em grande parte, durante uma determinada época, substituem como alimento as pastagens. O final das floradas coincide com o início da estação chuvosa, fazendo rebrotar os pastos secos e ainda brindando com a maturação de várias espécies frutíferas. Acompanhando os herbívoros e atrás também de recursos vegetais, animais de outros hábitos formam, uma complexa cadeia.

Em termos vegetais, este Sistema é complexo e nunca pode ser entendido como uma unidade, há o predomínio do cerrado (strictu sensu) como paisagem vegetal, mas há também seus variados matizes, como campo, cerradão, além de formações floresta das como matas, matas ciliares e ainda são comuns as veredas e ambientes alagadiços.

As áreas florestadas são constituídas pelas matas ciliares que ocorrem nas cabeceiras dos pequenos córregos e rios e nas margens destes, como também se espalham em áreas mais extensas acompanhando as manchas de solo de boa fertilidade natural, por exemplo as matas do rio Claro e outras vertentes do Paranaiba e o chamado "Mato Grosso de Goiás" .As veredas e ambientes alagadiços são mais abundantes, a partir do centro do sistema nuclear, (sudoeste de Goiás) em direção a norte e a leste. Para o sul à medida que se aproxima do Pantanal Matogrossense, as veredas tendem a desaparecer ficando apenas os ambientes alagadiços com contornos diferenciados.

Nesta perspectiva, o Sistema Biogeográfico dos Cerrados, pode ser subdividido em subsistemas específicos, caracterizados pela fisionomia e composição vegetal e animal, além de outros fatores, apresentando a seguinte organização: Subsistema dos Campos; Subsistema do Cerrado; Subsistema do Cerradão; Subsistema das Matas; Subsistema das Matas Ciliares e Subsistemas das Veredas e Ambientes Alagadiços.
Essa diversidade de ambiente, é um fator muito importante para a diversificação faunística, permitindo a ocorrência de animais adaptados a ambientes secos, como também adaptados a ambientes úmidos. Da mesma forma, propicia tanto a ocorrência de formas adaptadas a áreas ensolaradas e abertas, como favorece a ocorrência de formas umbrófilas. Esses fatores atribuem ao Sistema Biogeográfico dos Cerrados, caráter singular, distinguindo-o pela diversidade de formas vegetais e animais.

Estudos de paleoecologia demonstram que os limites modernos do Sistema Biogeográfico dos Cerrados, não coincidem com os limites que o mesmo deveria os tentar durante o Pleistoceno Superior e Holoceno inicial. Estes extrapolavam em muito os limites da área "core" que hoje ocupa os chapadões centrais do Brasil, prolongando-se na forma de "línguas" e enclaves por grande parte da Amazônia Sulamericana, alcançando áreas localizadas até mesmo ao norte do rio Amazonas.

Os mesmos estudos demonstram que a par das regressões que este Sistema sofreu em direção ao centro do Brasil, simultaneamente com a expansão da floresta úmida, foi apesar disto, o sistema Sulamericano menos afetado pelas oscilações climáticas, do Pleistoceno Superior. Da mesma forma, com respeito às modificações na biomassa animal, foi um dos sistemas sulamericanos menos afetado. O que vale dizer, que a fauna que o caracteriza modernamente, representa, quando comparada com outros domínios continentais, quase que 50% da biomassa animal que o caracterizava durante o Pleistoceno Superior e fases iniciais do Holoceno. Esse fato, apesar das proporções, é significativo quando comparado com a extinção animal que afetou outras regiões do continente, durante o Pleistoceno Superior e fases do Holoceno, que em alguns casos atinge a proporção de 98%.


Os subsistemas do Sistema Biogeográfico dos Cerrados
Como foi mencionado, o Sistema Biogeográfico dos Cerrados, não pode ser tomado como uma unidade homogênea, pois ostenta no do seu domínio, uma série de biomas, ambientes diversificados entre si, pelo caráter fisionômico e pela composição vegetal e animal. Estes ambientes constituem os seus subsistemas. Sua compreensão é de fundamental importância para entender o sistema como um todo e o caráter da biodiversidade que ostenta.

Este Sistema Biogeográfico, se compõe de seis subsistemas inter atuantes, assim denominados:

Subsistema dos Campos
Ocupa as partes mais elevadas do Sistema, de morfologias planas, denominadas regionalmente chapadões ou campinas. Há forte ventilação durante quase todo o ano e a temperatura em geral é mais baixa que nos demais subsistemas. A rede de drenagem é insignificante. `As vezes aparecem pequenas lagoas, algumas perenes. A vegetação é arbustiva esparsa e há uma composição graminácea intensamente distribuída pela área. Durante o Pleistoceno Superior, possivelmente esse Subsistema deveria abranger espaços geográficos maiores. Sua presença atual pode ser explicada por fatores estruturais desolo, como também associada a micro climas especiais, ainda não totalmente refeitos da agressão climática do Pleistoceno Superior.



Subsistema do Cerrado (Stricto Sensu)
Este Subsistema constitui a paisagem dominante do Sistema. Ostenta um estrato gramíneo, mas diferencia do campo pela ocorrência de árvores de pequeno porte e aspecto tortuoso, explicada pela teoria do escleromorfismo oligotrófico. A rede de drenagem é boa e os solos são de baixa fertilidade natural, mas não são uniformes. Há formações de cerrado que ocorrem em latossolos avermelhados como também em solos arenosos, exemplo: sudoeste de Goiás e oeste da Bahia, respectivamente.




Entre o Subsistema dos Campos e o Subsistema do Cerrado, há uma paisagem intermediária, designada popularmente por Campo Sujo. Não se considera esta paisagem como um subsistema à parte, porque sua abrangência geográfica é pequena e ecologicamente, mostra as mesmas características dos dois Subsistemas, tendendo o ramais, ora menos para um ou para outro.


Subsistema do Cerradão
Este Subsistema, fisionomicamente é mais vigoros o que o Subsistema do Cerrado. As árvores atingem de 10 a 15 metros de altura e os solos demonstram maior fertilidade natural. Não há um estrato gramíneo forte como no cerrado e as árvores são mais encopadas. A rede de drenagem é bastante significativa. Antigamente alguns botânicos classificavam esta paisagem como flores taxeromorfa, hoje essa denominação foi abandonada.





Subsistema das Matas

Ocorre em manchas de solo de boa fertilidade natural. Às vezes adquire a configuração de ilha sem meio a uma paisagem dominante de cerrado, conhecida pelo nome de capõese às vezes formam áreas extensas, compactas e homogêneas, como é o exemplo clássico do Mato Grosso de Goiás.


Subsistema das Matas Ciliares
Ocorre nas cabeceiras dos pequenos córregos e rios e acompanha estes pelas suas margens em estreitas faixas. Essas faixas são muito variáveis quanto à configuração. Há locais onde se alargam na forma de bosque e há outros locais, onde praticamente desaparecem, como é o caso de algumas áreas do médio Tocantins.









Subsistema das Veredas e Ambientes Alagadiços

As cabeceiras de alguns córregos e rios são às vezes caracterizados por ambientes alagadiços, de correntes do afloramento do lençol de água, ou ainda em virtude de características impermeabilizantes do solo. Nestes locais são muito freqüentes as veredas que são paisagens onde predominam os coqueiros buriti e buritirana que às vezes se distribuem acompanhando os cursos d'água, até a parte média de alguns rios, formando uma paisagem muito bonita, conhecida pelo nome de veredas. Há um estrato inferior de gramíneas que se apresenta verde durante todo ano. Em alguns locais, o afloramento do lençol chega a formar verdadeiras lagoas, rodeadas por buritis (Mauritia vinífera).

Esta paisagem é mais freqüente do centro do Sistema em direção norte e leste. Quando se aproxima do Pantanal Matogrossense, sudoeste do sistema, as veredas tendem a desaparecer, ao passo que as áreas alagadas aumentam.

O Sistema Biogeográfico dos Cerrados, é limitado por uma série de complexas formas vegetacionais intermediárias que adquirem contornos específicos em direção à caatinga e outras configurações em direção à floresta amazônica úmida.

No aspecto fisionômico e em muitos pontos da composição faunística e florística como de ocupação humana, as áreas com savanas da América do Sul, que aparecem nas Guianas, Venezuela e Colômbia, muito se assemelham ao Sistema do Cerrado e, senão fosse o caráter da descontinuidade, poderiam perfeitamente estar incluídas como um subsistema do mesmo Sistema.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Enterrem meu Coração atrás do Morro do Estreito

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“Oração pela vida de Correntina”

Lá nos confins dos sertões, entre Goiás e Bahia, onde o maciço calcáreo da Serra Geral repousa docemente seu dorso sob um manto de areia fina, depositada pelo sopro milenar de ventos mutantes, existia, há muito tempo, um deserto conhecido pelo nome de Urucuia. Nessa época, quase não existia vida por lá e tempestades de areia constantemente surgiam ao longo do horizonte, como um balé macabro unindo o céu e a terra.

Muito tempo se passou e as condições do clima, com sua habitual preguiça, aos poucos se modificaram. Nuvens carregadas, passando por lá, salpicavam de pétalas o areião e a serra que, sabiamente, retinham as sobras pelos poros subterrâneos, formando um rico lençol aqüífero. Não se viam mais as tempestades de areia. A vida brotava na forma de folhas e troncos aqui e ali, formando campinas e gerais. Na fronte da serra, surgiam olhos, que comovidos de tanta alegria, marejavam lágrimas deslizantes sobre o solo frouxo de areias, formando sulcos que iam verediando na direção do sol nascente.

Os olhos viraram lagoas, as lágrimas eram rios. Por onde passavam, enriqueciam a vida. Brotavam buritis, buritiranas, pororocas, gameleiras, ingás, ipês-amarelos, mussambés até cipós e jenipapo. Ao largo, como um abraço carinhoso, surgiram jatobás, paus d’óleo, paus ferro, cagaitas, pequis, mangabas, puçás, vinháticos, cajus, cascudos, araçás, bacoparis, grão-de-galo e tantos outros que seriam necessários muitos janeiros para contar suas histórias.

Buriti atraiu a arara que, com seu grito ressoante, avisou a bicharada a descoberta daquele paraíso. Vieram emas, capivaras, seriemas, veados, periquitos, tatus, sabiás, cervos, canarinhos, camaleões, pássaros-pretos, suçuaranas, onças-pintadas, mutuns, calangos, lagartixas, tamanduás, antas e até preguiças eram vistos fazendo malabarismos nos galhos da embaúba.
As frutas que caiam n’água atraiam toda sorte de peixes que, num balé sincronizado, passeavam subindo e descendo os rios.

O sol ainda tingia de dourado o orvalho nas folhas da buritirana, quando, por detrás da vasta vereda, um bando de gente inaugurava uma nova era. Eram os índios, os primeiros seres humanos a chegarem na região. Isso foi há muito tempo e por quase quinhentas e cinqüenta gerações. Estas populações, se enamorando da paisagem, elegeram como prioridade a harmonia, e assim viveram durante séculos.

Um belo dia, muito tempo depois, outros seres humanos, procurando pepitas douradas entre os cascalhos dos rios, redescobriram aquele paraíso e, ao longo desses rios de águas cristalinas, construíram suas vidas, implantaram suas cidades, seus roçados, suas oficinas de farinha, seus canaviais e suas moendas.

Quando a seca afetava as pastagens da Caatinga, os vaqueiros, entoando cantigas de aboio, transportavam o gado para os gerais e assim construíram uma vida de migrações sazonais.
Como um feixe de luz, os rios entraram no cotidiano das populações, dando-lhes o sustento, influenciando nos seus hábitos de maneira tão forte, que ainda hoje, quando os ventos sopram de leste para oeste, ainda soa na lembrança os versos daquela cantiga de roda dizendo que o navio da cachoeira não navega mais pro mar...

Os rios passaram a ser um pouco da vida dessa gente, um pouco da pessoa amada, o pai, a mãe e os filhos. Saciando a sede, higienizando e acariciando os corpos bronzeados pelo sol do meio-dia.

Quando o perigo iminente ameaçava descristalizar suas águas, as carrancas do Velho Guarany se posicionavam como guardiões do bem, expulsando para longe as ameaças vadias.

Um belo dia, numa época bem recente, homens estranhos com chicotes e boleadeiras, aterrorizando as carrancas, subiram os rios em direção às suas cabeceiras e ocuparam os chapadões.

Era o caos! As campinas minguaram e bancos genéticos valiosos foram substituídos por grãos estranhos. Máquinas pesadas, semelhantes a dragões acorrentados, atiraram ao chão as plantas raquíticas dos gerais.

Árvores exóticas surgiram em alguns locais, como um ralo de esgoto, exaurindo os recursos públicos. Roçaram as veredas, as bombas sugadoras do pivô central começaram a devolver ao rio o veneno usado para imunizar as novas lavouras.

Os buritis desfolhados começaram a presenciar a desestruturação da vida dos brejeiros.

E assim, a vida foi canalizada pelos meandros da má qualidade.

Os solos encharcados das veredas aos poucos se transformaram em pedra dura e a água dos rios, diminuindo, expôs nos barrancos os seixos arredondados, que outrora repousavam no leito farto desses rios.

Por isso, quando os ventos da desolação soprarem rajadas de pobreza e o povo, desorientado, clamar por salvação, enterrem meu coração atrás do morro do estreito. Não quero ver a pedra do lajedo agonizando de sede, clamando por uma gota de água.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Por uma Universidade do Cerrado


O Bioma Cerrado em pé é um grande laboratório. Durante longos anos estamos chamando a atenção para os fatos negativos advindos da degradação deste importante conjunto de ambientes. A recém encerrada Conferência de Paris sobre as mudanças ambientais no planeta só vieram a reforçar o que há anos vimos falando sobre o tema.

Dentro desta perspectiva, torna-se imprescindível que os nossos representantes políticos, especialmente os goianos, Governador, senadores, prefeitos, deputados de modo geral, representantes no Conselho Federal de Educação, Arquidiocese de Goiânia e outras Dioceses, além de vários segmentos sociais, se alinhem junto ao Governo Federal para a criação da Universidade do Cerrado.

Antes porém de enfocarmos o cerne da questão, que se trata da necessidade urgente da criação de uma Universidade para estudar o cerrado em toda sua dimensão, gostaríamos de tecer um comentário elogioso acerca do pronunciamento do Reverendíssimo Arcebispo de Goiânia e Chanceler da Universidade Católica de Goiás Dom Washington Cruz, sobre a função, visão e papel estratégico que uma Universidade deve ter diante das exigências do mundo moderno. Sua fala realizada durante a XX Semana de Integração Acadêmica e Planejamento da UCG, recheada de sabedoria, trouxe uma grande esperança para aqueles que sonham com uma Universidade engajada, que busca na vocação regional as diretrizes para suas ações. Dois pequenos trechos do seu discurso ilustram o raciocínio acima.

... "A Universidade tem diante de si um imenso papel profético - afirmou, para explicar que, como instituição de ensino, de pesquisa e de extensão, tem a urgente tarefa de continuar formando a opinião pública acerca dos cuidados com o meio ambiente. De continuar oferecendo aos órgãos públicos que lidam com a questão ambiental os elementos de análise para uma eficaz gestão ambiental. De marcar uma presença colaborativa, propositiva e atenta à missão da Igreja de ser, para o mundo, sinal da salvação e do amor de Deus para com todas as Suas criaturas."

... "A experiência da vida no planeta passa por momentos cruciais, dramáticos, que nos interpelam fortemente como comunidade acadêmica, como docentes, pesquisadores, dotados do senso de responsabilidade social. As mudanças climáticas abruptas são o reflexo direto de uma certa mentalidade utilitarista que tanto marcou, sobretudo deste a revolução industrial, a relação do homem com o meio ambiente. Um dos maiores dramas que vai marcar as relações entre os povos, num futuro bem próximo, será a questão ambiental e a utilização dos recursos da natureza ou a proliferação de substâncias que agridem o ambiente e trazem conseqüências extremamente danosas para a vida."

Por que uma Universidade do Cerrado?

Porque hoje temos a certeza de que o Cerrado que se espalha pelos Chapadões Centrais da América do Sul, pela sua história evolutiva e ecológica, constitui-se num ponto de equilíbrio para a vida, não só do continente, mas para a vida de todo o planeta Terra. O conhecimento de seus mecanismos evolutivos, históricos e sociais, orientados por pessoas que pensam além do economicismo, poderá trazer benefícios concretos e imediatos para o Brasil, além de abrir em perspectivas a possibilidade de um novo modelo de escola.

Quando Darwin apresentou, em 1859, sua obra "A Origem das Espécies", convenceu muitos naturalistas de que os seres não tinham sido criados com formas físicas imutáveis, mas que tinham mudado graças a processos naturais, através de gerações, cobrindo longos períodos. Aqueles que mudaram para formas melhor adaptadas ao ambiente sobreviveram, os outros declinaram e extinguiram-se. A este processo Darwin denominou de seleção natural. Estes conceitos foram suficientes não só para revolucionarem a biologia, mas também todo o pensamento humano.

Os argumentos e fatos indicados por Charles Darwin não incluem os efeitos da inversão de polaridade do campo magnético terrestre, nem a deriva dos continentes, pois estes fenômenos eram desconhecidos ou mesmo inconcebíveis naquela época. Entretanto, os seus efeitos na evolução, diversidade e extinção das espécies constituem elementos importantes e só reforçam o mecanismo da seleção natural.

Esta introdução é oportuna para mostrar a dinâmica do cerrado, sob o olhar biológico e antropológico da seleção natural. Dentro dessa ótica podem-se perceber elementos que de outra maneira passam desapercebidos e a dinâmica da seleção natural tem a força de ressaltar a necessidade de iniciativas embasadas num seguro planejamento ambiental, que, por sua vez, esteja embasado num seguro conhecimento científico.

1) O primeiro ponto a ser levantado no sentido de se compreender esta dinâmica se refere à evolução dos continentes, procurando enfatizar o espaço que hoje corresponde aos chapadões centrais da América do Sul.



Durante o início do Paleozóico, a pelo menos 600 milhões de anos, uma grande massa continental formava a crosta terrestre. Este supercontinente denominava-se Pangéa e ostentava paisagens muito diferentes dos "stoks" que se conhecem atualmente. Somente a título de ilustração, no espaço que hoje corresponde ao território brasileiro formaram-se três grandes bacias de sedimentação, denominadas no Brasil de Bacia Amazônica, Bacia do Maranhão e Bacia do Paraná. Estas áreas, separadas por arcos geológicos, experimentaram durante milhões de anos, diferentes processos de sedimentação e ambientes, ora sendo marinho, ora terrestre e eram conectados com áreas similares no que hoje em dia corresponde à Antártida, África e Austrália, como atestam os processos sedimentares e a existência de fósseis semelhantes encontrados nestes locais.

No Permiano Superior, ou seja, no final do Paleozóico, a 220 milhões de anos, esta grande massa continental inicia um processo de cisão, baseado no deslocamento das placas tectônicas e no Triássico, início do Mesozóico, a 200 milhões de anos, já existem dois grandes blocos continentais, um ao norte denominado Laurásia e outro ao sul denominado Gondwana. Separando os dois supercontinentes se encontrava o mar Tethys, nome que significa mãe dos mares, segundo a mitologia grega.

A Laurásia estava constituída pelo que mais tarde seria a América do Norte, Groenlândia, e a parte da Europa e da Ásia que fica ao norte dos Alpes e Himalaia.

O continente de Gondwana, por sua vez, era constituído pelas terras que futuramente constituiriam América do Sul, África, Índia, Austrália e Antártida.

Ainda no Triássico, dois grandes blocos continentais começaram a se fragmentar em unidades menores, mas as fossas originadas entre estas unidades continentais não chegaram, no início, a constituir barreiras para o movimento dos animais terrestres. Entretanto, no período Cretáceo, no Mesozóico Superior, a 65 milhões de anos, os obstáculos já não permitiam esta comunicação. É importante salientar que esta época coincide com um período de extinção em larga escala dos grandes répteis.

Quando os mamíferos começam a diversificar no final do Mesozóico e Terciário Inferior o início do Cenozóico, a separação dos continentes parece ter chegado ao máximo. Isto aconteceu por volta de 65 milhões de anos. E a partir desta data não se formaram novas rotas de migração. As áreas terrestres foram por sua vez diminuídas. Houve elevação do nível do mar, as águas inundaram as margens dos continentes e formaram grandes mares interiores, alguns dos quais fracionaram completamente os continentes. Por exemplo, nesta época a América do Sul se constituía de duas zonas emersas separadas por água, que ocupava a região que mais tarde formaria a Amazônia.


2) Outra abordagem importante a ser colocada, no sentido de ressaltar o caráter peculiar do Cerrado, se refere ao princípio da irradiação adaptativa

Neste sentido, convém enfatizar a seguinte questão: num ambiente estável, as espécies animais e vegetais tornam-se especializadas, cada espécie ocupando seu lugar na cena ecológica e assim continua até que todos os nichos sejam efetivamente ocupados. A fauna ganha então um estado de equilíbrio em que o coeficiente de produção de novas espécies é igual ao da extinção de espécies existentes. As menores alterações nas condições do ambiente ou habitat produzem pequenas flutuações em torno da posição de equilíbrio.

Em princípios do Terciário, a 60 milhões de anos, a primitiva América do Sul esteve ligeiramente conectada com a América do Norte, mas em seguida esteve completamente isolada até o Pleistoceno Superior, a 18 milhões de anos. A prova desta conexão está na presença de duas ordens de mamíferos fósseis que correspondem a mamíferos comuns às duas Américas: ordem Edentata e Notoungulata.

Este fator, associado a outros, foi fundamental no equilíbrio e delineamento da fauna atual da América do Sul e consequentemente dos animais que mais tarde constituirão a fauna do Cerrado.

Outras quatro ordens de mamíferos são exclusivas da América do Sul: os Paucituberculata - que envolvem os marsupiais, os Pyrotheria, animais já extintos, semelhantes aos elefantes, os Litopterna, ungulados herbívoros, já extintos, parecidos com os camelos e cavalos atuais, e os Astropotheria, grandes ungulados herbívoros atualmente extintos.

A penetração de animais carniceiros da América do Norte para a América do Sul através do Istmo do Panamá, durante o Pleistoceno Superior, associada posteriormente à atividade de caça dos primitivos grupos indígenas, que nesta época já habitavam a América e ainda as mudanças ambientais decorrentes do final da glaciação de Wisconsin, foram fatores decisivos na alteração do equilíbrio ambiental, o que levou à extinção em larga escala da megafauna sul-americana. A partir daí um novo padrão faunístico se configura até a fauna atual, que é de médio e pequeno porte.

No que se refere à flora, pode-se atribuir ligeiramente o mesmo princípio. Dessa forma, a flora brasileira e a africana compartilham muitos ancestrais comuns que, num processo de evolução paralela, associada a agentes climáticos e geológicos diferenciados, apresentam certas semelhanças, embora sejam distintas.

O CERRADO, entendido aqui como sistema biogeográfico, tem sua história evolutiva ligada aos principais processos experimentados pelos vegetais, o que culminou com a formação da flora atual, mas está intimamente ligado também às mudanças ambientais, que aconteceram na área que hoje corresponde a grande parte do território brasileiro, principalmente a partir de 65 milhões de anos. Nesta época, num período denominado Cretáceo, da era Mesozóica, existiam grandes desertos nas áreas hoje correspondentes ao Brasil, sendo que o maior desses desertos recebia a denominação de Botucatu. Daí para frente, porém, houve uma sensível atenuação da aridez, posto que a maior parte do território tenha comportado climas quentes semi-áridos e subúmidos, segundo se deduz, dos tipos de sedimentos e suas microestruturas. Nessa época, uma geografia de grandes lagos rasos, situados em depressões detríticas interiores, limitadas por terrenos semidesérticos, de extensão subcontinental, era a paisagem dominante. Isto ocorreu porque a maior parte dos rios formava drenagem endorreica, ou seja, nascia e desaguava no interior do continente. Nesse tempo, a vegetação era do tipo subdesértica e, provavelmente devido à tipologia geral dos solos, teria sido uma flora diferente de todas aquelas conhecidas no País.

O soerguimento Pós-Cretáceo do Planalto Brasileiro criou outras paisagens sob a vigência de climas bem mais úmidos do que os do Cretáceo, e a custa de drenagens que foram preferencialmente exorreicas, isto é, com franca saída para o mar. Este esquema novo de topografia mais compartimentado e de solos relacionados com climas mais úmidos perdurou por longos períodos do Terciário. Neste contexto surge o Cerrado, que é a mais antiga das paisagens da história geológica recente da Terra. É também a partir do Cretáceo que se consolidam os três maiores aqüíferos do Continente e talvez do mundo: o aqüífero Bambuí, o Urucuia e o Guarani. Cuja totalidade ou bordas, no caso do Guarani, se situam na área hoje ocupada pelo Cerrado. Por isso, todas as grandes bacias hidrográficas do Continente têm suas nascentes ou seus principais alimentadores situados na área do Cerrado.

Uma outra questão importante se refere à teoria do escleromorfismo oligotrófico, proposta por Arens para explicar a gênese do ambiente de cerrado strictu sensu. Este autor admite que o pronunciado xeromorfismo do cerrado seja uma conseqüência das condições oligotróficas do solo. Afirma que um dos fatores principais seja, provavelmente, a relativa escassez de nitrogênio assimilável que pode originar o escleromorfismo oligotrófico, fazendo com que a vegetação peculiar do cerrado seja selecionada pela deficiência de minerais, tendo-se adaptada à mesma. Estudos posteriores de Goodland, Kuhlmamm e Coutinho, dentre outros, comprovam esta afirmação. Arens também afirma que o fogo é um fator que acentua o oligotrofismo, influindo dessa maneira sobre a conservação e propagação do cerrado. Nessa perspectiva a ação do fogo deve ser levada em consideração, quando se tratar de áreas de preservação, com vegetação de campo e cerrado strictu sensu. É por causa do caráter oligotrófico que as plantas do cerrado necessitam seqüestrar grande quantidade de carbono para seu desenvolvimento.


3) Uma terceira abordagem importante se refere à questão do povoamento humano, as ações antrópicas decorrentes desse processo e suas relações com a seleção natural.

Com toda segurança pode-se afirmar hoje que entre 18.000 e 16.000 anos atrás um contingente populacional cruzou o istmo do Panamá e veio de forma mais densa e efetiva povoar a América do Sul. Essas populações no início se acomodaram em nichos específicos do noroeste da América do Sul, onde puderam desenvolver uma cultura cuja economia se baseava na caça especializada de megafauna. Este sistema de vida perdurou de forma efetiva até por volta de 12.000 anos atrás quando a maior parte dessa fauna específica entra num processo de extinção. À medida que o processo de extinção se acentua as populações humanas aí situadas começam a buscar novas alternativas de sobrevivência, o que pressupõe novas formas de organização do espaço e planejamento social.

Nesta perspectiva buscaram-se novos ambientes e teve início um processo migratório em direção leste. Da cultura baseada na caça especializada resulta uma cultura baseada na caça generalizada de animais de médio e pequeno portes. A organização social representada por esses agrupamentos humanos eram bandos compostos de famílias aparentadas que migravam de um lugar para o outro, na medida em que os recursos alimentícios se esgotavam ou apareciam plantas comestíveis próprias de cada estação. Descendo os contrafortes da Cordilheira dos Andes, esses bandos vieram parar na Amazônia Brasileira, atraídos pela diversidade de flora e fauna que caracteriza uma grande mancha de cerrado, que naquela época existia nos baixos chapadões da Amazônia e chapadões Centrais da América do Sul. Estes dados são hoje comprovados pelos estudos de Halffer, Vanzolini, Ocsenius, Prance, Noble, Brown Jr., Greemberg, Rodrigues, Ab'Saber, e vários estudos de Palinologia.

Quando a floresta amazônica começa a coalescer sobre as áreas de cerrado existentes nos baixos chapadões, força um processo de migração faunística, que migra para a grande área existente no Centro da América do Sul; a migração faunística favorece no mesmo sentido uma migração humana.

A área core de cerrado dos chapadões centrais da América do Sul deve ser entendida como um Sistema Biogeográfico, composto por subsistemas interatuantes e interdependentes tanto no aspecto florístico como no aspecto da fauna. Há ambientes secos e úmidos durante todo o ano. A vegetação varia de um gradiente de campo limpo, até um gradiente de mata. Esta diversidade de ambiente empresta à biodiversidade do cerrado um caráter peculiar e seus aspectos evolutivos fizeram com que processos culturais diferenciados também ocorressem de forma "sui generis", transformando a região do cerrado numa espécie de fronteira cultural.

Na realidade alguns dos mais importantes processos culturais americanos nasceram no cerrado, como a formação do tronco lingüístico Macro-Jê, a domesticação e disseminação de certos tubérculos e outros vegetais e o desenvolvimento da tecnologia de caça, pesca e processamento de recursos vegetais nativos e certos cultígenos.

O estudo detalhado de diversas comunidades indígenas habitantes do cerrado demonstra que essas populações aprenderam sabiamente a desenvolver mecanismos adaptativos e planejamento ambiental e social que fossem capaz de lhe permitir uma vida em abundância. Assim são os Kayapó, que habitam as áreas mais elevadas, os Karajá, específicos da calha do Araguaia, os Xavante etc.

Todos estes fatores reunidos fazem com que o cerrado seja um laboratório antropológico único, no qual se deve olhar e aprender para, com sabedoria, saber planejar o futuro.

A população indígena que povoou o cerrado não produziu qualquer modificação brusca no equilíbrio do ecossistema, porque inicialmente os homens eram poucos e o nicho adaptativo era amplo.

Até que a população humana crescesse a ponto do seu tamanho ser prejudicial, coube à seleção natural levar a termo uma adaptação primorosamente equilibrada aos recursos ambientais.

A chegada dos exploradores, de origem européia, trouxe conseqüências bem diversas, por duas razões:

- A principal finalidade não era o povoamento e sim a exploração comercial।

- Mantiveram um contato íntimo, ou com a mãe pátria ou com um poder central deslocado, a quem competia ditar as mercadorias a serem fornecidas e o preço das mesmas.

Portanto pela primeira vez em sua longa história a região do Cerrado ficou sob a influência contínua de um agente que era alienígena ou exótico, consequentemente imune às forças modeladoras da seleção natural local.

No início a devastação foi mínima, mas com o passar dos tempos os sinais destas já eram bastante visíveis. O aumento da imigração acelerou cada vez mais o processo de degradação. Surgiram epidemias novas, que contribuíram para dizimar populações indígenas, como a gripe, o sarampo, a varíola e tal qual como aconteceu em outras áreas do país, a entrada de escravos africanos introduziu a malária e a febre amarela.

O crescimento demográfico também é algo surpreendente, principalmente de 1950 para cá e, é bem provável que depois de 2010 a região do cerrado tenha uma população tão grande que escape às políticas de planejamento. Esta perspectiva é aterradora, tendo em vista a magnitude da degradação que já ocorreu com uma densidade demográfica bem menor.

A partir da década de 1950 implanta-se no Brasil um modelo econômico chamado desenvolvimentalista, onde a meta é atingir o desenvolvimento a todo custo.

Essa política que, no início, é executada de forma até ingênua, a partir dos governos militares de 1964 adquire um caráter ideológico e a partir desse momento o hemisfério começa a presenciar uma grande revolução. Não uma revolução do homem para o homem, mas uma revolução do desrespeito à vida humana e à vida do ambiente.

Dentro dessa perspectiva o cerrado é recortado por inúmeras estradas, rios são represados, montanhas aplainadas, vegetação derrubada, animais ameaçados de extinção, e comunidades tradicionais são desestruturadas num ritmo nunca visto na história da civilização.

Ambiciosos projetos de colonização, sem o mínimo de planejamento e conhecimento, com objetivos puramente políticos, são postos em execução.

Fatos recentes atestam a pujança que este modelo desenvolvimentista tem, como a ocupação desordenada do cerrado por capital alienígena para projetos de reflorestamento com espécies estranhas e produção maciça e efêmera de grãos para exportação. A formação de grandes lagos para geração de energia, cujas conseqüências provocam inúmeras entropias em termos de saúde; por exemplo, podemos ver os sinais de um grande iceberg que virá por aí na forma de epidemias de algumas doenças extremamente devastadoras, como a esquistossomose, a leximoniose e a raiva, cujos efeitos a população atingida pelos lagos e barragens já está sofrendo.

Assim é que no início do século 21, encontra-se em suspense o destino do cerrado.

Se as próximas décadas trarão sua ruína ou salvação, ainda não se pode dizer.

Embora sejam grandes as lacunas no nosso conhecimento, dispomos de informações suficientes para impedirmos uma degradação irreversível.


4) O que se pode afirmar é que enquanto o desejo de explorar o cerrado não levar em consideração a vocação regional, a possibilidade de um programa racional de desenvolvimento será nula.

Esta perspectiva é ainda mais trágica porque só o Homo sapiens, entre todos os seres vivos, tem a capacidade de encarar o seu meio ambiente dentro de uma escala mais abrangente, não se limitando à duração de uma vida. Quando analisamos as atividades humanas, dentro da perspectiva do tempo geológico, somos forçados a reconhecer que o que está acontecendo na biosfera, hoje em dia, nada tem de comum. De fato, desde que os organismos primordiais desenvolveram a capacidade de liberar oxigênio, por volta de centenas de milhões de anos, nenhuma das espécies novas desenvolveu a habilidade de alterar as condições de adaptação da vida sobre a terra. Os continentes mudaram de forma, as geleiras avançaram e recuaram, os mares se ergueram, algumas montanhas submergiram e os pólos se deslocaram, mas os parâmetros físicos e químicos permaneceram essencialmente os mesmos.

Agora, de repente, novos compostos químicos, em concentrações anormais, estão sendo lançados na água, no solo e no ar. Do mesmo modo que as populações indígenas do cerrado, foram quase que exterminadas pelas doenças do Velho Mundo, assim também as plantas e os animais que evoluíram durante dezenas de milhões de anos são incapazes de enfrentar produtos químicos estranhos, introduzidos bruscamente no seu habitat.

Conhecendo de uma maneira geral como opera a seleção natural, podemos predizer com toda a segurança que das milhares de espécies que restaram, poucas serão pré-adaptadas às novas condições, mas nada garante que o Homo sapiens venha a figurar entre os sobreviventes.

Conduzir o Homem do cerrado e a humanidade através dessa crise ecológica é o maior desafio para todos nós, que um dia tomamos consciência da gravidade e da grandeza desse problema.

A possibilidade da criação de uma Universidade do Cerrado abriria entre as universidades brasileiras a busca de soluções para estes tipos de problema e ainda poderia abrir a perspectiva de novos modelos de universidades, onde a teoria poderia caminhar de mãos dadas com a prática, pois a Universidade que une teoria e prática inevitavelmente é holística, multidisciplinar e transdisciplinar, categorias de saberes importantes para a formação de novas mentalidades e formação global do homem.

Na prática este modelo efetuaria com eficiência a pesquisa, o ensino e a extensão, categorias que nos modelos tradicionais estão impossibilitadas de se associarem e se desenvolverem conjuntamente.

Para a criação de uma Universidade do Cerrado pouco se gastaria em termos de recursos humanos, pois algumas instituições federais, como IBGE, Embrapa-CPAC, Universidade Federal de Goiás, além de Centros de Excelência em instituições particulares como o Instituto do Trópico Subúmido e o Instituto de Pré-História e Antropologia, ambos da Universidade Católica de Goiás, poderiam se agregar para formar o corpo profissional dessa nova Universidade.

Outro ponto importantíssimo a destacar é que pela grande quantidade de recursos que o cerrado possui em função de sua diversidade geológica, florística, faunística, cultural etc., e pela experiência dos profissionais envolvidos, uma Universidade do Cerrado tem todos os meios para se tornar auto-sustentável.

Este grande laboratório que é o cerrado, de importância fundamental para o mundo moderno, está somente à espera de que alguma liderança com influência política assuma a bandeira de organizar uma equipe para sua implantação.

Era época em que um dragão voraz olhava para aquelas plantas com apetite devorador. Chegou a época da racionalidade antes que o dragão voraz nos devore.

(abril/2007)

Semana do Índio

Uma dívida com a história e um buraco na consciência

Estamos em abril, certamente alguém lembrará, que neste mês é comemorado o Dia do Índio, 19 de abril. Muitas fotos serão publicadas e alguns artigos irão rechear as páginas dos jornais e revistas e ilustrar imagens da televisão. Nesta perspectiva, aproveitamos a oportunidade para colocarmos alguns pontos que possam esclarecer a real história e situação indígena, na região do cerrado. A compreensão destes pontos é de fundamental importância, para que inspire nos homens a busca da construção de uma sociedade justa.

Embora marginalizados desde o início pela colonização portuguesa, a cultura indígena era tão forte que contribuiu de forma decisiva para a formação da identidade do povo brasileiro. E, se penetrarmos além das aparências, veremos que nós brasileiros carregamos a cada momento do nosso cotidiano vários elementos indígenas: nos gens, na alimentação, nas músicas e nos inúmeros medicamentos, nos mitos etc. O nosso lado de predarmos a natureza certamente não herdamos do índio.

Se pudéssemos recuar no tempo talvez resumiríamos de forma poética essa história da seguinte forma:

O sol ainda tingia de dourado as folhas do buriti, quando pela primeira vez o índio pisou nessa terra Pindorama.

Isto foi há muito tempo; de lá para cá, mais de 550 gerações se passaram.

No início eram grupos nômades, caçadores e coletores; muito tempo depois eles se transformaram em agricultores e colonizaram os verdejantes vales desta terra. Neste local, implantaram suas grandes aldeias e seus roçados.

E, assim, viviam tranqüilos, respeitando a riqueza do ambiente e as fronteiras que estabeleceram.

Depois que os troncos e famílias lingüisticas se formaram, Tupi foi para o norte, Guarani para o sul, Tupinambá para o litoral e os guerreiros povoaram o centro da América do Sul.

Entretanto, como antropólogo e arqueólogo, sentimos-nos na obrigação de esmiuçar com dados concretos, os passos dessa história, mesmo que seja ainda resumida.

A região do Cerrado é um ponto de encontro entre a Amazônia, o Nordeste e o Sul. O planalto é recortado pelos rios das três grandes bacias brasileiras (do Amazonas, do Paraná e do São Francisco), acompanhadas de matas de galeria, ora mais ora menos largas. No encontro dos rios das três bacias formou-se uma extensão maior de floresta, conhecida como Mato Grosso de Goiás.

As áreas de matas oferecem solos para cultivos, a serem instalados no começo das chuvas. Por outro lado, o cerrado é muito rico em caça e em grandes variedades de frutos que podem complementar a agricultura no começo das chuvas, os rios proporcionam muito peixe no começo da estação seca.

Muito antes dos horticultores ceramistas, os caçadores e coletores pré-cerâmicos se haviam esparramado pelo território, utilizando os recursos de acordo com suas necessidades e em conformidade com sua tecnologia. Não se tem ainda nenhuma idéia de quando e como se instalaram os cultivos. Aparentemente, eles não surgiram nesta área, porque as diversas tradições tecnológicas até agora estudadas pertencem a horizontes mais amplos e as datas mais altas para horticultores já instalados se encontram fora da região.

Faz exceção a Tradição Uru, até agora só conhecida no oeste de Goiás, mas que certamente ultrapassa os seus limites em direção ao Estado de Mato Grosso, ainda não pesquisado. Os cultivos poderiam ter chegado através da migração de grupos horticultores, ou pela aculturação dos caçadores e coletores anteriormente aí presentes, que os poderiam ter recebido de vizinhos. É possível que ambos os fenômenos tenham ocorrido.

Certamente não se pode mais resumir todo o jogo do povoamento em deslocamentos de grupos já prontos, por que sobra a pergunta: onde estes se formaram? Certamente, como nas outras áreas do mundo, os sistemas agrícolas desenvolvidos por populações indígenas, como as de Goiás, são o resultado final de um longo processo de experimentação, de coleta, cultivo e domesticação, desenvolvimento e empréstimo de técnicas de um ajustamento da sociedade.

Talvez a transição do período úmido e quente do altitermal para um período mais seco e ameno, fato que ocorreu por volta de seis mil anos antes do presente, fosse a ocasião do aparecimento da agricultura na região. O fato é que no centro do Brasil ainda se desconhece por completo todo o processo, porque depois dos caçadores se encontram de repente, já formados, os horticultores ceramistas num tempo em que o ambiente supostamente já era o atual. O mais antigo até agora detectado é denominado pela arqueologia como Fase Pindorama, supostamente horticultor, que já tem cerâmica ao menos desde 2.500 anos antes do presente. Toda essa denominação se refere à classificação usada pela arqueologia. Depois aparece a Tradição Aratu/Sapucaí, a Una, a Uru e a Tupiguarani.

As diferentes Tradições (cerâmicas) de horticultores exploram ambientes e cultivos diversos. A Tradição Una coloniza vales enfurnados, geralmente pouco férteis, com predominância de cerrados usando como habitação os abrigos e grutas naturais e como economia uma forte associação de cultivos, onde predomina o milho, com a caça e com a coleta. Imagina-se que a população se distribuía em pequenas sociedades, mais aptas para explorar os recursos diversificados que poderiam alcançar do seu ponto de instalação: o rio próximo, a pequena mata de galeria, o cerrado e muitas vezes o campo no alto do chapadão. Este ambiente não é disputado pelos grupos que constroem suas aldeias em áreas abertas.

Os primeiros aldeões conhecidos são os da Tradição Aratu/Sapucaí. Seus domínios são os contra-fortes baixos das serras do centro-sul e leste de Goiás, especialmente as áreas férteis e mais florestadas do Mato Grosso de Goiás, onde podem instalar uma economia mais fortemente dependente de cultivos, mas provavelmente sem dispensar a exploração dos frutos do cerrado, a caça e a pesca. Sua população é numerosa e nenhum outro grupo conseguiu infiltrar-se no seu território, que por seus recursos deveria ser muito ambicionado.

Suas aldeias populosas poderiam permanecer longamente no mesmo lugar e quando era desejado poderia se deslocar para um espaço próximo porque o território era fértil e estava sob seu domínio. Também o sistema de cultivo, baseado em tubérculos e provavelmente no milho, pôde resistir aos avanços dos grupos mandioqueiros da Tradição Uru e Tupiguarani.

A Tradição Uru chega mais tarde e domina o centro-oeste do Estado. Avançando ao longo dos rios, ocupa terrenos mais baixos, provavelmente de pouca utilidade para os aldeões que haviam se instalados antes, mas importante para eles por causa da locomoção e principalmente da pesca. Desta forma se criou entre os dois grupos uma fronteira bastante estável, mas talvez não sempre pacífica, onde aparentemente a Tradição Aratu é mais receptiva, aceitando elementos tecnológicos selecionados, entre os quais não está a mandioca e seu processo de transformação, aceito apenas em locais restritos.

A Tradição Tupiguarani parece ser a mais recente das populações aldeãs do cerrado. Teve um certo domínio sobre o vale do Paranaíba; a partir dele acompanha os afluentes, indo acampar nos abrigos anteriormente habitados pela Tradição Una. Também tem aldeias dispersas na bacia do Alto Araguaia, mas aparentemente sem muita autonomia, convivendo às vezes na mesma aldeia com grupos horticultores de outras Tradições.

O Tupiguarani da bacia do Tocantins tem as aldeias ainda mais dispersas e recentemente, como se realmente fosse, tal qual se imagina, populações vindas já no período colonial, este fato contribuiu para que enfrentassem não só os demais índios aldeões já instalados, mas também os colonizadores brancos que os teriam trazido.

Se a Tradição Uru e a Tradição Tupiguarani, mandioqueiros, parecem mais próximos às culturas amazônicas, embora talvez não tenham procedência imediata de lá, a Tradição Aratu/Sapucaí faz parte de uma Tradição mais de Centro-Nordeste. A Tradição Una, com menos domínio sobre as áreas abertas, disputadas pelos aldeões da Tradição anterior, se comprime numa faixa entre estes e as populações coletoras e cultivadoras do planalto meridional, tradicionalmente conhecidas por suas aldeias de casas subterrâneas. Não obstante esta sua posição marginal, é nela, fora da amazônia, que estão as datas mais antigas para a cerâmica; talvez seja ela uma forma de cultura anterior ao desenvolvimento dos aldeões e, quem sabe, a origem deles.

Talvez com exceção do Tupiguarani, os representantes das outras Tradições de grupos horticultores viveram no território durante séculos sem muita movimentação, como numa terra que era deles; entre 70 e 100 gerações de horticultores sem maiores mudanças, a não ser as normais adaptações de fronteiras, onde populações mais antigas aceitem novas tecnologias recém-vindas.

E, assim viviam, até o dia em que irromperam na área, em grandes destacamentos armados, homens diferentes, não interessados em plantar, colher e caçar, nem em construir aldeias entre o cerrado e a mata, ou à beira da lagoa ou do rio. Queriam levar gente, pedras brilhantes e ouro. Para muito longe. Meados do século XVII.

Foi o caos. As roças foram pilhadas, as aldeias foram demolidas, as mulheres violentadas, as terras de cultivo invadidas, as pessoas morrendo de doenças desconhecidas. A guerra foi a solução ditada pelo desespero. A derrota, o aldeamento, a desmoralização, a extinção ou a fuga foram as conseqüências. Este é o tipo de relações sociais que herdamos e que molda nossa sociedade atual. Espero que este exemplo nos faça refletir e nos impulsione para a busca de um novo alvorecer, que faça brotar em nossos corações um raminho de coragem.

(abril/2006)

Lula e o pé de sabiú

Entre os geraiseiros, povos que habitam ou exercem atividades nos gerais, que é um tipo de cerrado semelhante ao descrito por Guimarães Rosa em "Grandes Sertão: Veredas", existem duas lendas interessantes associadas ao pé de Sabiú, planta frondosa pertencente à família leguminasae e muito comum nos gerais.

A primeira diz que se alguma pessoa, por descuido, passar por debaixo de um pé de Sabiú fica totalmente desorientado, perde a noção das coisas, perde a consciência e fica vagando sem rumo e sem direção. Entre as inúmeras histórias, contam que certa vez um vaqueiro experiente saiu à procura de uma rês desgarrada e, sem se dar conta, passou por debaixo de um pé de Sabiú, logo perdeu a noção dos seus objetivos e por dois dias sequidos vagou sem rumo até chegar a um rancho de um antigo amigo e conhecido. Só que ao chegar ao local não reconheceu as pessoas que ali moravam, seus amigos de longa data. Os moradores do rancho, experientes, logo perceberam o que havia acontecido. Tomaram então o vaqueiro e fizeram-no deitar de bruços por cerca de trinta minutos. Durante este tempo dizem que o vaqueiro teve um sono profundo e quando acordou estava curado, recuperou a consciência, reconheceu e ouviu os amigos e, após se alimentar, seguiu seu rumo determinado.

A segunda lenda reza que pequenas personagens do mato em forma de gente, talvez duendes, todas as sextas-feiras à noite se reúnem em baixo de um pé de Sabiú para festejarem alguma alegria e felicidades. Conta a lenda que no povoado de Riacho D'Água existia um pobre corcunda que era muito maltratado e recebia várias zombarias da gente daquele povoado. Um dia, cansado de tanta humilhação e sem perspectiva, resolveu fugir e andou sem ermo pelos gerais; quando o cansaço bateu, descansou debaixo da sombra de um Sabiú, pois debaixo desta árvore o terreno é sempre limpo. E ali garrou no sono, esganchado numa forquilha da árvore.
Era sexta-feira. À noite chegaram várias criaturinhas que, brincando-de-roda, começaram a cantarolar uma música cuja letra repetia o refrão:
Segunda,
Terça,
Quarta,
Quinta,
Sexta.

O corcunda, animado com a música, pediu aos duendes para participar da brincadeira, sempre repetindo o refrão:

Segunda,
Terça,
Quarta,
Quinta,
Sexta.

E assim teve na vida um raro momento de alegria e felicidade. Diz a lenda que, quando a festa terminou, as criaturinhas indagaram ao corcunda porque estava ali, naquele momento. O corcunda então pôs-se a contar a sua história. As pequenas criaturas, que tinham poderes mágicos, retiraram a corcunda do indivíduo e a dependurou num galho de Sabiú, deram a este roupas novas, muito dinheiro e lhe disseram que poderia voltar para o povoado de Riacho D'Água, que sua vida iria mudar. O ex-corcunda caminhou então de volta e após alguns dias chegou ao povoado. Logo na entrada encontrou uma pessoa que o reconheceu. E, assustado, lhe perguntou o que havia acontecido. Este narrou detalhadamente. A pessoa, na ganância do dinheiro e do poder, saiu correndo procurando o local e, quando o encontrou, subiu num dos galhos da árvore e esperou a noite de sexta-feira chegar. Quando esta chega, eis que para sua surpresa apareceram as criaturas que o ex-corcunda descreveu.

Estas então começaram a entoar sua cantiga, dançando em roda, sempre repetindo o refrão:

Segunda,
Terça,
Quarta,
Quinta,
Sexta.

Num belo momento, quando a dança já estava bem animada ao repetirem o refrão - Segunda, Terça, Quarta, Quinta e Sexta - as criaturas ouvem um som vindo do alto dizendo: Sábado e Domingo também. Atônitos, olham para cima da árvore e avistam a pessoa que modificara o refrão da música.

Indignados, fazem a pessoa descer da árvore, retiram do galho a corcunda que lá ficara e implantando esta nas suas costas o expulsam do local.

Ao analisarmos o desempenho do governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva encontramos muita semelhança com a lenda do Sabiú. A impressão que temos é que o Presidente pode ter passado por debaixo desta árvore, ficando totalmente desorientado, esquecendo o que havia proposto no seu Programa de Governo, perdendo a direção do futuro e do rumo certo.


A declaração de Paris, sobre caixa 2, concomitante com as declarações de Delúbio e Valério sobre o mesmo assunto, demonstra a falta de bom senso e esta desorientação. As incertezas da política social, a fragilidade da segurança pública e uma política econômica que não condiz uma vírgula com o discurso da vida inteira, são alguns dos sinais da desorientação total.

A política cultural se assemelha ao homem que quis mudar o refrão da música cantada pelas criaturinhas da floresta, ou seja, não respeita a identidade do povo brasileiro.
A educação prima pelo quantitativo e não é capaz de estancar o sucateamento das Universidades Federais. A burocratização desenfreada do CNPq é um obstáculo para as pesquisas e inovação.

O incentivo ao agro-negócio predatório, a liberação dos transgênicos, as obras de grande impacto ambiental, como transposição do São Francisco, demonstram que a tão propalada coerência anda em circulo sem rumo e sem direção.

Seria bom que o presidente Luís Inácio Lula da Silva tomasse a postura do corcunda humilde, respeitando as tradições e as vocações do povo brasileiro. A ganância só ganhou uma corcunda para o resto de vida. Porém, seria melhor ainda que Lula se pusesse a deitar de bruços e tirasse um sono profundo de trinta minutos; assim, poderia recuperar a consciência, reconhecer e ouvir seus amigos verdadeiros, enxergar neles a coerência de sempre, recuperá-la e retomar o rumo certo.

Nunca é tarde!

(janeiro/2006)

Entre o efêmero e o eterno


Contam que, certa vez, um vaqueiro campeava pelo mato montado em seu cavalo, com certa tranquilidade, quando, de repente, o cavalo saiu em disparada jogando ao solo seu fiel cavaleiro. O vaqueiro, meio atordoado com a situação, pensou, com seu ar de matuto - uai! meu cavalo deve ter ficado doido. Mas quando olha para traz vê, a uns três metros de distância, uma grande onça pintada, sentada sobre as patas traseiras, que o fitava ternamente. Neste momento, o astuto vaqueiro, que estava sem nenhuma arma, imaginou: vou dar um grito bem forte, assim espanto a bichana e me refugio. Encheu os pulmões de ar e soltou o planejado grito. Foi aí que ele descobriu que estava mudo.

Traçando um paralelo com esta história ao ouvirmos atentamente a recém iniciada campanha política, as vezes chegamos à conclusão que estamos cegos, pois somos incapazes de enxergar as intermináveis lista de obras e iniciativas que cada candidato diz ter feito.

Mas o fato que mais nos chama a atenção, ao ouvirmos atentamente as propostas, é que quase todos os candidatos as apresentam baseados no imediatismo, sem levar em consideração as conseqüências dos atos, para um futuro próximo, principalmente quando o assunto é o meio ambiente.

Neste aspecto, o candidato deve levar em consideração as diversas noções do "tempo": o tempo do homem, o tempo do mandato, o tempo da natureza e o tempo da sobrevivência. Cada tempo tem o seu parâmetro.

Nos últimos anos temos alertado de várias maneiras para os riscos que uma política mal planejada para o meio ambiente pode acarretar para o futuro. Temos dado ênfase ao Cerrado, em função das diversas peculiaridades deste ambiente. Entretanto, apesar do clamor, o que constatamos a cada dia que passa é o esgotamento do cerrado em toda sua plenitude. Os órgãos governamentais responsáveis pelo meio ambiente insistem em minimizar o problema, baseados em dados mal interpretados, que não refletem a real situação da natureza.

Na iminência das eleições e na esperança de que algum candidato possa buscar mecanismos para um futuro melhor, destacamos alguns pontos que consideramos relevantes para a elaboração de uma política eficaz neste sentido.

Tomamos a liberdade de usar o verbo no passado ao referirmos às características do cerrado.

Desde a época geológica denominada Mioceno, há 25 milhões de anos, até 1950, o cerrado dos Chapadões Centrais do Brasil ocupava de forma contínua uma área de 2 milhões de km2, abrangendo hoje o que representam os Estados de Goiás, Tocantins, Distrito Federal, leste de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, oeste da Bahia, noroeste e centro/norte de Minas Gerais, Piauí, parte do Maranhão e parte de São Paulo. No presente, este ambiente natural não cobre 10% da área original.

Esta afirmação é feita baseada numa paisagem vegetal medida por populações de plantas e não por plantas isoladas. Uma população é caracterizada por um conjunto de pelo menos 30 plantas da mesma espécie que ocorrem num pequeno espaço geográfico. O contrário, a ocorrência aleatória de uma planta aqui, ali e acolá geralmente distantes entre si, é apenas uma faceta da degradação. A conseqüência imediata dessa situação é a impossibilidade de estudos científicos, em diversos campos do conhecimento: sistemática, genética, fitogeografia etc. e a impossibilidade destas plantas exercerem suas funções ecológicas. Mudando de planta para bicho, antes era comum avistarmos, nos nossos campos, manadas de animais da fauna nativa do cerrado. Com o passar dos tempos, em função da redução dos espaços de sobrevivência, a fauna nativa diminuiu drasticamente.

Com a intensificação da rede viária, era comum avistarmos animais da fauna nativa mortos nas estradas. Nos dias atuais, até este quadro triste não mais ilustra as margens das rodovias, fato este que é um indicador da diminuição drástica da nossa fauna, pois na área do cerrado nenhum corredor de migração faunística foi até então construído pelos governantes. Este é um fato deverasmente muito assustador porquanto a fauna do cerrado é o principal elemento responsável pela disseminação das plantas nativas, muitas das quais têm a dormência de suas sementes quebrada no intestino desses animais. Com a ausência dos animais, diminui a propagação dos vegetais nativos, mesmo porque ainda não temos tecnologia para produção e desenvolvimento em viveiros de 8% das plantas nativas do cerrado até então conhecidas, incluindo as arbóreas, herbáceas e gramíneas, cuja associação é de fundamental importância para a vida do bioma.

Muito tem se falado que o cerrado é o berço das águas. Em muitos escritos caracterizamos este ambiente como sendo a cumeeira da América do Sul. Isto porque as grandes bacias hidrográficas do continente têm seus formadores e alimentadores situados na região do Cerrado, em decorrência de que a região de Cerrado abrange três dos maiores aquíferos do planeta: o aquífero Guarani, que alimenta as águas do sul; e os aquíferos Bambuí e Urucuia, que alimentam as águas do norte e toda bacia do São Francisco.

Esses aquíferos vêm-se formando há milhões de anos. Atualmente, com a retirada da vegetação nativa de suas bordas, ou seja, dos chapadões, eles não estão mais sendo recarregados como deveriam, provocando o fenômeno das migrações, de nascentes, o desaparecimento de cursos d'água menores e a diminuição drástica do volume dos rios. Se a situação continuar sem mudanças em breve espaço do tempo teremos no centro da América do Sul um grande deserto para contemplarmos, e quem sabe, para satisfazer o desejo de uma pequena burguesia que teria enfim um espaço privilegiado para realização de seus rallys predatórios. Em tempo, a área principal de recarga dos aqüíferos ocorre nas suas bordas.

Atualmente, é comum ouvirmos nos discursos de representantes dos órgãos ambientais a palavra revitalização. Para se revitalizar uma área na região do Cerrado é necessário o conhecimento fitossociológico, o domínio de técnicas de produção de plantas nativas em viveiro, o estudo sobre o tempo de desenvolvimento destas plantas para exercerem a função ecológica etc. As plantas do Cerrado são espécimes extremamente complexas, com uma história adaptativa e evolutiva entremeada e dependente de diversos elementos, que variam desde um tipo específico de solo até a dependência de uma abelhinha nativa ou um tipo específico de borboleta polinizadora. Uma plantinha do Cerrado, para chegar a exercer sua função ecológica, pode necessitar de mais de 600 anos até atingir a idade adulta, como é o caso da Canela-de-Ema (Vellozia flavicans) e, apenas por curiosidade, alguém já conseguiu produzir Arnica (Chinolaena latifolia) em viveiro?

Falar, portanto, em revitalização tem que ter profundo conhecimento da biodiversidade em sua plenitude, e, principalmente, estudar a fundo a história evolutiva do cerrado. E, por falar em evolução, seria bom relembrar que de todos os ambientes recentes do planeta, ou seja, os que se delinearam a partir do período geológico denominado Cenozóico, o Cerrado é o mais antigo, o que significa que este ambiente já atingiu seu apogeu evolutivo - o que por sua vez conduz a uma outra situação. Um ambiente que atinge seu apogeu evolutivo e adaptativo, uma vez degradado, não se recupera jamais. Isto vale para a fauna, flora e água. A degradação é o processo irreversível.

A região do Cerrado já foi palco de um intenso povoamento indígena desde 11.000 anos Antes do Presente. Verdadeiras revoluções tecnológicas, experimentadas pelos ameríndios, foram realizadas na região do Cerrado. Algumas dessas inovações influenciaram decisivamente os hábitos não só dos brasileiros, mas da população mundial moderna. Muitas plantas medicinais do conhecimento indígena foram incorporadas na farmacopéia universal.

A população indígena atual que sobrevive em áreas intactas de Cerrado não representa 1% da população geral que outrora habitava a região. A grande maioria foi extinta em função de diversos fatores. O que restou representa muito mais uma continuidade biológica do que uma continuidade cultural.

O mesmo processo está acontecendo com as ditas populações tradicionais, engolidas pelo grande capital, devido á ausência do Estado nos seus territórios. Essas populações estão perdendo sua identidade, seus valores culturais, suas terras, abandonando seus modelos produtivos de agricultura familiar, migrando para os centros urbanos e engrossando as massas marginalizadas e periféricas desses centros.

Ao ler este texto o leitor deve estar indagando. Então temos de frear o desenvolvimento? Parar de crescer?

Não é bem isso, apenas devemos rever o desenvolvimento econômico atual, cujo modelo é predatório e excludente. Porque de nada adianta um "boom" produtivo efêmero se amanhã não tivermos água para sustentar o mínimo possível a vida em toda a sua biodiversidade. Passearemos pelas fábricas, silos e outros ambientes como se fossem ruínas de um tempo mal planejado.

Até o início dos anos 1970 falar de problemas ambientais, como desmatamento, garimpagem predatória, uso indiscriminado de agrotóxicos, assoreamento de rios, exploração desenfreada dos recursos naturais, poluição atmosférica, saneamento básico, emissão de CO2 na atmosfera, aquecimento global, enfim, falar de catástrofes naturais, ou provocadas pelo homem, constituía uma espécie de tabu, de tema proibido. Por quê? Porque para a grande maioria das pessoas o discurso ecológico não passava de uma rebeldia sem causa, ou seja, de um discurso sem fundamento científico, e muito menos político, cuja finalidade única era frear sem justificativa o desenvolvimento material da sociedade.

Os governos só tinham uma idéia fixa: promover a todo custo o desenvolvimento econômico do País e dos estados. Esta visão tecnicista para a maioria dos governantes e da gestão do território já deixava transparecer o que hoje chamamos genericamente de questão ambiental e que se tornou no problema preocupante não apenas para os brasileiros, em geral, mas para os goianos, em particular. Não há necessidade de se enumerar esses problemas, porque eles já afetam a todos os cidadãos, principalmente os das classes sociais menos privilegiadas assistidas. Há que se pensar em como resolvê-los, ou, no mínimo, em como evitá-los, a fim de minimizar os males que deles decorrem.

Na atualidade, os problemas relativos ao meio ambiente permeiam todas as questões concernentes à gestão do território estadual, principalmente as que dizem respeito à educação, de um modo geral, e ambiental, em particular. Desse modo, uma política ambiental verdadeiramente democrática tem que ter como preocupação central dois eixos fundamentais: a educação e a inserção social dos cidadãos pertencentes às classes sociais menos favorecidas. Uma coisa está ligada a outra, pois, sem educação - e aí se inclui a educação ambiental - não há inserção social, mas sim exclusão social.

Como dizem os especialistas, o maior objetivo da educação é criar capital humano de qualidade, dando aos indivíduos maior produtividade e flexibilidade. Vão mais além ainda, ao enfatizarem que as oportunidades de emprego, a produtividade da mão-de-obra, o uso de novas tecnologias, a distribuição de renda e até mesmo a qualidade de vida em uma sociedade dependem dos investimentos em educação.

Felizmente alguns abnegados da ciência brasileira propõem soluções concretas, que possam minimizar o desgaste atual, preservar os bens naturais e culturais e melhorar a qualidade de vida do homem do cerrado.

Solicitamos aos candidatos eleitos que ouçam a comunidade científica brasileira, antes de tomarem decisões administrativas pragmáticas. Quem sabe se esta atitude ajudará a deixar a miopia do efêmero e vislumbrar a perspectiva da eternidade.

Sabemos que a tarefa não é fácil, porém muito mais difícil será a vida no futuro, sem estas observações.

Se continuarmos com este modelo de não sustentabilidade do meio ambiente estaremos armando uma bomba relógio de efeito programado, que acelera o caminho para as covas dos nossos irmãos excluídos, e, certamente, retirarão dos livros as lições de humanidade.

Até quando teremos que contemplar apenas os "lobos" se saciarem?

(agosto/2006)

Teoria do Galo Dourado


Quando a ciência não consegue explicar determinados fenômenos ou fatos que circulam pelos campos da Filosofia, Antropologia, Sociologia, Psicologia, Ciência Política etc., os "cientistas" costumam recorrer às hipóteses, as vezes mal formuladas, que aos poucos vão se tornando verdadeiras e se transformam em teorias.

Assim, diante do fato político de um dos candidatos à Presidência da República se encontrar muito à dianteira dos demais e considerando que durante seu mandato presidencial o candidato não foi coerente com os princípios que sempre nortearam os seus discursos, em virtude da ausência de explicações racionalizadas somos obrigados a recorrer à "Teoria do Galo Dourado", para explicarmos este fato que ora desenha o quadro político brasileiro.

Para compreendermos a citada teoria teremos que lançar mão de uma pequena história. Há alguns anos, um menino morador de uma pequena cidade do interior tinha como passa-tempo criar alguns galos-de-briga e colocá-los em constante competição no pequeno quintal da sua casa. Dentre os galos havia um, de pescoço comprido, penas reluzentes, esguio e valente, na realidade o "rei do terreiro..." Entretanto, é importante salientar que entre os galináceos existe um comportamento bastante peculiar que consiste no chamado "bicamento".

O galo mais valente tem o direito de bicar na cabeça do segundo mais valente, este, no terceiro e assim sucessivamente. Isto ocorre também entre as galinhas e frangos, estabelecendo uma hierarquia muito bem estruturada, hierarquia esta que, permite ao galo mais valente, quando chega a hora da distribuição da comida, expulsar os outros menos valente e saciar a apetitosa comida juntamente com o grupo, deixando a sobra para os demais.

Voltando à história do menino, um dia sua mãe compra na feira um belo galo preto, mestiço de tuso com hachura (raças asiáticas, especialistas em competições). Ao ser solto no quintal, o galo já foi avançando sobre os demais surrando todos eles. Quando o menino viu aquela cena, pensou consigo mesmo e exclamou: esse galo é o cão! Vai acabar batendo também no meu galo dourado. Antes que se concretizasse a batalha entre os dois galos, o menino peou o galo preto e o amarrou por uma das pernas numa tora de madeira, atiçando para cima do pobre galo seu preferido galo dourado, que surrou por demais o galo preto, deixando-o desorientado. Depois do acontecido, o menino soltou o galo preto, que já condicionado pela surra não mais enfrentou o galo dourado, que continuou sendo o dono do terreiro.

Deixando o terreiro dos galos, e voltando ao terreiro da política, somos obrigados a retornar ao tema inicial. Um governo que se elegeu apontando no horizonte a felicidade para todos e conseguiu transformar a metafísica em neurose, deixando claro que às vezes a essência da felicidade pode ser comprada com algumas mentiras baratas. Um governo que fez a esperança tornar-se num rio cujos ruídos de suas águas não escutam nossa sede; que introduziu os transgênicos no Brasil sem uma discussão correta, ética e honesta, com a sociedade brasileira; que apagou o Ministério do Meio Ambiente, transformando-o numa sombra do feroz Ministério da Integração Social, e que juntamente com este Ministério está sorrateiramente executando as obras para transposição do rio São Francisco, quando ele mesmo sabe que isto significa, a médio prazo, a morte do rio.

Um governo que salpicou de pequenas barragens os rios brasileiros, contrariando a legislação ambiental; que tampou os ouvidos para a ciência brasileira; que incentivou a proliferação das Faculdades pegue-pague; que degradou o meio ambiente com uma fúria nunca vista na história brasileira e ainda quer transformar o que resta de intacto numa grande plantação de mamona e num imensurável canavial, como se explica esta dianteira nas estatísticas da pesquisa?

Necessitaríamos de muita reflexão para tentarmos justificar as injustificáveis incoerências cometidas, e não conseguiríamos justificá-las. Portanto a única teoria plausível capaz de esclarecer no momento tal fenômeno é a "Teoria do Galo Dourado", que é explicada por uma das duas formas: ou o povo brasileiro gosta de levar bicadas na cabeça, ou de tanto levar bicadas o povo perdeu a memória.

(Publicado no jornal O POPULAR, de Goiânia, em 11 de setembro de 2006)

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Adeus, Nêgo D'Água



O fim do protesto de d. Luiz Cappio, explicitado através de um jejum de vários dias, associado à decisão do Supremo Tribunal Federal de ordenar a retomada das obras para a transposição do Rio São Francisco, funcionou como uma ducha de água fria, despejada em todos os movimentos que têm uma visão diferenciada da posição oficial sobre a transposição. E, apagou de vez a esperança quanto a capacidade de diálogo dos governantes.

Desde aquela época, quase nada se escreveu sobre o tema. Retomamos o assunto, para que fique registrado nos Anais da História da Humanidade, o fato de que nós pesquisadores coerentes com os princípios atuais do nosso conhecimento, não fomos omissos. E, enquanto os dados e raciocínio não apontarem em outra direção, jamais deixaremos de lutar contra este projeto erroneamente denominado pelos burocratas oficiais de Integração de Bacias.

O argumento até então utilizado, que fundamentou nossa posição, sempre foi baseado em dados científicos, levando em consideração a história da evolução geológica regional, o estado de degradação atual do Cerrado, bem como sua história evolutiva. O argumento de que agora faço uso se baseia na etnologia do imaginário das populações ribeirinhas do vale do São Francisco. Neste universo imaginário, em meio a símbolos e personagens, se destaca a figura do Nêgo D'Água.


Segundo a crença das populações ribeirinhas, habitantes do vale do São Francisco, este forte personagem atormenta seus sonhos, ataca os pescadores, viola lavadeiras desprevenidas, além da acometer outras tantas traquinagens. De acordo com os pescadores mais destemidos, nem as carrancas fincadas nas proas das embarcações conseguem assustá-lo, a única maneira de acalmá-lo, quando está disposto a parar as frágeis embarcações, é presenteá-lo com um bom pedaço de fumo de rolo. Daí a razão pela qual estes pescadores sempre carregam nas suas traias, tal tipo de material, para agradar o Nêgo D'Água enfurecido. Os pescadores ainda dizem que este estranho habitante do rio não gosta de ser chamado Nêgo D'Água e sim, Cumpade D'Água.


Cresci ouvindo estas histórias. Os ribeirinhos ainda contam que os Nêgos D'Água, ou melhor, Cumpades D'Água, vivem em bandos e habitam as locas que ficam escondidas nas barrancas do rio, vez por outra, saem da água para um banho de sol nos lajedos ou bancos de areia.


Sempre zombei da sua existência, porém diante da grande convicção dos ribeirinhos, minha descrença se assemelhava àquela descrença do ateu, que se apega aos santos antes de embarcar num avião.

Em épocas de grandes cheias do São Francisco, sempre corria até às suas margens, para certificar-me da existência destes personagens. Nunca os vi, e isto era motivo para povoar o meu imaginário de muitas zombarias, e acabava encharcado por um riso de criança vendo os estragos causados pelas corredeiras que arrastavam galhos, árvores, criações e outros elementos. Hoje, diante do panorama da transposição, nós pesquisadores temos elementos suficientes para prever que o leito do rio principal, bem como o de seus afluentes, vai minguar lentamente, expondo como conseqüência bancos de areia, acumulados pelo processo de assoreamento. Também antevemos expostos de forma assustadora, grandes barrancos ao longo do rio.


Se os Cumpades D'Água saírem das suas tocas para morrerem desidratados nos montes de areia, certamente terei a certeza de sua existência. Entretanto, no imaginário dos ribeirinhos eles são muito teimosos e, por esta razão, certamente morrerão alojados nas suas tocas. Aí, jamais saberei da sua existência.


De qualquer maneira o fato é muito triste, pois afeta o imaginário de milhares de pessoas, cujas conseqüências podem ir além da nossa imaginação. Aliás, a única certeza que nós estudiosos do assunto temos é de que a História, mais dia, menos dia, saberá julgar os autores da ação da transposição e os assassinos dos Cumpades.


Nesta perspectiva, retomo novamente o verbo na primeira pessoa do singular, para afirmar que dentro da minha simples e ao mesmo tempo complexa maneira de ver a vida, me remeto às zombarias e aos risos da minha infância, para pedir mil perdões aos Nêgos D'Água, pelo meu deboche. E eu que já ri tanto daquele rio, pelos bramidos de suas enchentes, daquele rio, eu não rio mais. Adeus!

Altair Sales Barbosa é professor titular do Instituto do Trópico Subúmido da UCG


PUBLICADO NO JORNAL "O POPULAR" DE GOIÂNIA EM 19/02/2008

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Quinhentas e Cinqüenta Gerações

O êmico e o ético de uma história que não acabou


Desde que as naus portuguesas chegaram em abril de 1500 ao litoral brasileiro numa enseada batizada com o nome de Bahia de Todos os Santos, cerca de vinte gerações se passaram. Naquela época, nossos ancestrais indígenas já estavam na região central do Brasil há pelo menos quinhentas e cinqüenta gerações. Isto significava que no oeste da América do Sul, América Central e América do Norte nós já estávamos há muito mais tempo.

Quando chegamos ao centro do Brasil uma sensação estranha tomou conta de nós: pensávamos que havíamos descoberto o paraíso, tal a opulência de recursos. O cerrado, com seus inúmeros rios de águas cristalinas repletos de peixes, com seus variados frutos comestíveis, com uma diversidade enorme de animais e ainda com inúmeros abrigos naturais, nos acolheu de forma tão carinhosa que nos coube retribuir esta acolhida com uma grande pitada de carinho cultural.

Chegamos neste ambiente como nômades, caçadores, pescadores e coletores da sobrevivências. Nossas moradias eram os abrigos naturais ou cavernas locais onde enterrávamos e venerávamos nossos mortos, fazíamos nossas cerimônias e deixamos mensagens gravadas e pintadas nas suas paredes. Mais tarde, com as diversas oportunidades que o ambiente nos oferecia aprendemos a domesticar alguns dos vegetais nativos e nos transformamos em horticultores; com isto, deixamos a moradia das cavernas e passamos a colonizar os verdejantes vales dessa terra, onde meus avós implantaram grandes aldeões. Mesmo vivendo em áreas abertas ou aldeias, nunca deixamos de visitar os abrigos naturais ou cavernas, nossas antigas moradas, pois sempre respeitamos e reverenciamos a memória dos nossos antepassados.

O futuro chegou mais rápido que imaginávamos, e o Brasil que se formou com sua ideologia economicista passou sobre nós como um rolo compressor. Fomos estereotipados na forma de vários preconceitos. Até o título de "preguiçoso" nos cunharam, simplesmente porque não aceitávamos o regime da escravidão. Segmentos da sociedade brasileira procuraram nos marginalizar de várias maneiras, incluindo o uso da força. E por isso, tivemos que nos refugiar nos rincões mais escondidos e inacessíveis do território brasileiro.

Entretanto, nossa cultura e identidade com a terra era tão forte que mesmo deixando somente os rastros, ficaram marcas profundas da nossa herança na cultura do povo brasileiro. E, se formos além das aparências veremos que não somente os brasileiros, mas muitos outros povos incorporaram no seu viver cotidiano elementos que os legamos.

Assim se deu com o feijão, por exemplo, tão apreciado como alimento desde o Brasil até o Texas; este vegetal é uma planta da família leguminosae, que foi domesticada por nós, da mesma forma que domesticamos o abacate, o abacaxi, o tomate, o pimentão, a pimenta, plantas estas que foram tão disseminadas pelo mundo que ficamos a imaginar: Como seria hoje a culinária da Malásia sem a pimenta?

Também domesticamos o tabaco. planta da família solanaceae e a usamos em rituais para amenizar nossas dores e situações de estresse, e que infelizmente afeta todo ser humano, da mesma forma que nossos irmãos do Altiplano Andino usavam a coca, para amenizar os efeitos da altitude e para evitar a labirintite causada pela escassez de oxigênio. A sociedade que se formou aproveitou essas plantas e deu a elas outras formas de uso.

Nossos antepassados mexicanos criaram o milho, cruzando dois tipos de gramíneas nativas. Este cereal irradiou com tamanha força e sucesso entre todos os nossos ancestrais das Américas que até a pamonha, que muitos afirmam ser comida típica de Goiás, já era conhecida por nós pelo menos há cinco mil anos. Hoje o milho movimenta parte da economia mundial.

Algumas de nossas bebidas, cremes e doces alcançaram também mercados mundiais, como o Guaraná, nossa bebida energética e refrescante, nossos cremes da palmeira Açaí, Patauá, Bacaba, Buriti etc., aos quais atribuíamos o nome de sembereba. O creme de Cupuaçu, as Castanhas do Pará, do Caju, do Baru, do Pequi, Amendoins etc., fazem parte de uma imensa listagem da nossa contribuição.

Um dos nossos cremes ficou tão famoso que o mundo até esquece que fomos nós que o criamos. Trata-se do creme da amêndoa do cacaueiro, planta nativa das nossas florestas equatoriais cujo doce hoje em dia é o mais apreciado da terra, e alguns ainda se atrevem a dizer que o melhor chocolate do mundo é o suíço. Quanta falta de conhecimento!

Ensinamos ao mundo a usar o látex da seringueira, planta nativa do ecótono Amazônia e Cerrado. Hoje esta matéria prima movimenta desde nossos corpos pelos solados de nossos sapatos, até caminhões e aviões pelos seus pneus.

Domesticamos batatas, inhames e mais de trezentas raças de mandioca, que hoje é alimento importante na vida de muita gente; ensinamos a consumi-la cozida ou assada e processá-la na forma de tapioca, polvilho, crueira, puba, beijus e dela fizemos o primeiro alimento desidratado da história da humanidade: a farinha.

Ensinamos aos novos colonizadores a consumirem muitas de nossas plantas nativas para saciarem a fome e curarem certas doenças. Assim, a sociedade aprendeu a consumir a Mangaba, o Caju, o Pequi etc., a beber o chá da Douradinha e da Congonha-do-Campo, e a curar a malária usando a entrecasca do Quinino.

Muitos outros segredos vegetais conseguimos ensinar ao novo colonizador que hoje os incorporou na farmacopéia universal. Entretanto, muitos ainda guardamos conosco, não por egoísmo, mas porque a sociedade que se formou à nossa volta nunca se importou em conhecê-los para benefício de toda humanidade. Alguns espertalhões conseguem esses conhecimentos para uso comercial e empresarial, na forma como a sociedade a designa de biopirataria.

E assim, através dessa breve narrativa passamos uma rápida visão de como foi a nossa trajetória nessa terra.

Hoje nossa situação é de penúria. Quem tanto deu pouco ou nada recebeu.

Criaram cidades, estradas, povoados e fazendas onde antes estavam nossa aldeias, tomaram nossas roças, violentaram nossas mulheres e nos deram de presente uma porção de doenças desconhecidas. Lagos imensos cobriram e soterraram nossos campos de caça e coleta. E, pior ainda, fizeram submergir para sempre nossas antigas moradias e os nossos locais sagrados onde enterrávamos e venerávamos a memória da nossa ancestralidade.

Hoje nos dedicam uma folhinha do calendário para comemorar a nossa lembrança.

Humildemente agradecemos, mas nunca se esqueçam que do altos dos edifícios construídos sobre nossas antigas aldeias e das cristas da serras às vezes não tão douradas, que circundam ou represam os antigos rios de água limpa, quinhentas e cinqüenta gerações lhes contemplam.

(abril de 2007)