quarta-feira, 23 de setembro de 2020

O LAMENTO DA UNIVERSIDADE

 E A OPORTUNIDADE DA COVID 19

 Altair Sales Barbosa

Eu sou a velha universidade brasileira, não no sentido restrito da cronologia. Aliás, com relação à idade comparativamente sou até jovem. Sou velha nas estruturas, a osteoporose me corroeu paulatinamente de tal sorte, que mal consigo ficar em pé sozinha. Na realidade ninguém sabe ao certo a minha idade, uns dizem que nasci na Idade Média, outros que foi na Renascença, mas poucos se lembram de que já no século XI um árabe, Ibn Batuta, criou a Universidade do Niger em Timbuctu, para conhecer o mundo, os povos do mundo e a história do mundo.

Seja lá de onde eu venho, fui transplantada para o Brasil, sem levar em consideração as vocações desta terra. Hoje percebo que minha adaptação não foi boa e de longe deixei de cumprir minhas finalidades.

 ... No meu seio, existem os pseudo-educadores que enfraquecem a boa visão dos autênticos educadores. Existem também os arrogantes e falsos cientistas, que por inveja e tantas criticas, inibem a criação de alguns poucos estudiosos e pensadores. A grande maioria dos professores se encontra em posições cômodas; para essas pessoas, não é necessário mudar a rotina do dia a dia, que de tantos dias, vira rotina de décadas. Esta situação cria um comodismo tão grande e uma miopia extraordinária, que nem sequer permitem enxergar, e muito menos imaginar, que outro modelo de Universidade mais dinâmica e interdisciplinar é possível.

 Agora vejam, eu que sou o Universo da Diversidade, que nasci para criar e inovar, constato hoje que, com raríssimas exceções, as últimas inovações e criações científicas e culturais não surgiram dentro de mim. Querem ver só alguns exemplos? O ultimo tipo de adubo não surgiu na minha Escola de Agronomia, o último medicamento não surgiu na minha Escola de Farmácia, a última palavra em tecnologia não surgiu... etc. etc.

Isto ocorre, porque me transformaram num grande Supermercado para vender ou distribuir “enlatados”; esta tem sido a minha maior função nos tempos de hoje.

As amarras em que me encontro, nem sequer permitem que os meus agentes de boa vontade possam aprender a processar esses “enlatados”, ou seja misturando ou relacionando uns com os outros, para produzir ao menos um “enlatado” novo. O tipo de ensino que percorre as minhas veias é tão ultrapassado, que sinto pena dos meus professores e dos meus alunos, ambos bombardeados pelas incontáveis informações controvertidas e às vezes maldosas da multimídia. O professor, coitado, sem novidade para ensinar, propicia que as salas de aulas se transformem em espaços vazios. Os alunos, mal começa o semestre, já ficam torcendo para este terminar.

É a concretização total do desequilíbrio. Quando penso nisso, choro baixinho para esconder minha vergonha.

As amarras não permitem a estimulação da pesquisa, que é o alicerce da criação. O pesquisador, aquele raro profissional, que insiste em produzir sua própria comida, mesmo que seja num pequeno fogareiro, é sempre visto ou mal visto como algo estranho. Seus discursos e lamentos raramente encontram ressonância e de tanto repetirem a mesma ladainha, muitos se acomodam. Sinto muita pena deles e classifico esta situação como “A Erosão do Potencial Humano”.

Muitos dizem que não estimulam ou desenvolvem a pesquisa, durante o espaço da aula, por falta de laboratório. No entanto, se o professor tiver domínio completo do assunto, com um pouco de criatividade e de materiais colhidos nos meus corredores, pode perfeitamente transformar sua sala de aula tradicional num laboratório, ou sair até os pátios e ruas e transformá-los em vários laboratórios. O importante nesta relação é o domínio do conhecimento, temperado com uma dose de criatividade. Mas nem isto, o gesso no qual me jogaram, permite.

Vejam o exemplo da situação atual, que estamos vivendo pós advento da Covid-19. O que fizeram meus dirigentes? Indaga a Universidade indignada. Ao invés de enfrentarem o problema, empunhando a bandeira do conhecimento e da criatividade, eles se acovardaram, ordenaram que os alunos ficassem em casas, e acomodados dessa forma, receberiam através dos professores conteúdos via online. Não pensem que a preocupação é a transmissão do conhecimento, pois não é. A preocupação é não perder o semestre. Os professores coitados, muitos dos quais nem sabem manusear os programas de computador para usá-los adequadamente.

 No entanto, se olharmos por outros viés, o advento do Covid-19 transformou nossa realidade num imenso laboratório. Portanto, se os dirigentes e professores fossem libertos de suas amarras e fossem treinados nos parâmetros da criatividade, tenho a certeza de que saberiam aproveitar esse período único para avançarem em seus conhecimentos, na busca por um modelo universitário mais eficaz e que percorresse o caminho da transdisciplinaridade. 

 Ao invés de ficarem em casa, curtindo a solidão e possivelmente uma futura depressão, os alunos, coordenados pelo conhecimento e pela criatividade sairiam à campo. E, cada qual, dentro da sua especialidade, partiriam   em busca do desconhecido.

Só para citar alguns exemplos, dentro do que nos permite o espaço jornalístico.  O curso de geografia delimitaria o espaço a ser pesquisado e através dos cartógrafos mapeariam as áreas com maior ou menor incidência do vírus, ou de infectados.  Outras áreas da própria ciência buscariam as relações entre temperatura, relevo, vegetação, incidência ou não de animais domésticos, e assim por diante. À outras áreas de conhecimento, caberia a função de estabelecer outras relações, tais como econômicas, nutritivas salubridade e insalubridade. Quantos registros importantes poderiam ser feitos pelos comunicadores. A biologia, a biomedicina, a bioquímica a química, todos juntos estariam por exemplo, coletando e trocando idéias sobre amostras do ar, do solo, das águas e de elementos bióticos em busca de evidências. As áreas da farmacologia poderiam estar testando as eficácias de centenas de plantas da nossa farmacopeia, conhecidas por séculos como possuidoras de componentes antivirais. Os agrônomos e outros profissionais poderiam testar desinfetantes eficazes nas áreas mais afetadas, descritas pelos geógrafos. Os assistentes sociais, bem como os psicólogos e nutricionistas, estariam orientando os menos favorecidos, nas ações cotidianas, como comportamentos, atitudes e atividades bancárias procedimentos alimentares, etc. E assim, nessa   perspectiva, todos, incluindo mais uma vastidão, que compõem o meu quadro, estaríamos juntos cultivando um ideal e buscando o saber integrado ou a integração de saberes numa perspectiva global.

É claro que fica no ar uma pergunta sobre recursos e equipamentos. A resposta é simples, com competência e criatividade, isto não chega a constituir obstáculos para os que tem boa vontade. Os equipamentos de segurança e outros necessários, vocês tem a capacidade de fabricarem. Da mesma forma os recursos, que não são muitos, vocês sabem buscarem.

Uma única ressalva, os habitantes da minha nova casa teriam que ser amantes do trabalho, apaixonados pelo que fazem, leais, éticos, dedicados e idealistas.

Como Universidade que quer mudar, deixo em aberto o meu convite para os que querem construir esta nova casa.

O dia já está raiando, chegou a hora de trabalhar. Peço licença para descansar um pouquinho, enquanto se inicia a construção, porque para mim foi longa e penosa esta noite.

 

Ah! Antes que me adormeça gostaria ainda de dizer que nessa nova casa, não é proibido sonhar. Só se proíbe o pessimismo. 



 

domingo, 20 de setembro de 2020

VIVA A AGRICULTURA BRASILEIRA

 

    MAS AINDA NÃO APRENDEMOS A LIÇÃO

 Altair Sales Barbosa

 Estamos em meados de 2020.

Salve agricultura e a pecuária brasileiras, que mesmo na fase desta pandemia estão mostrando sua pujança e sustentando em grande parte a economia do Brasil. Parabéns aos empreendedores. Parabéns aos pesquisadores da Embrapa, que a cada ano desenvolvem técnicas mais sofisticadas para melhoria da fertilidade do solo, resistência dos plantios e o mais impressionante: a sofisticação dos métodos de irrigação. Parabéns, isso só demonstra a capacidade do pesquisador brasileiro quando se colocam à sua disposição treinamento adequado e recursos para alcançar seus objetivos.

Salve! Eu estaria muito feliz, se não tivéssemos atravessando uma pandemia, cujo enfrentamento se dá sem um mínimo de planejamento. Onde governadores, prefeitos, deputados e até jornalistas dizem agir em nome da ciência, mal sabendo eles que um dos princípios da ciência é questionar seus próprios resultados.  E se apoiar na seta do tempo, de forma humilde e não demagógica. Aguardar a eficácia ou não dos resultados, para buscar de forma planejada e dialógica a solução para os problemas. Faço esta afirmação,  porque conhecendo um pouco da história natural das endemias e pandemias, desde os primeiros registros da peste bubônica, que assustou o mundo, e a enigmática origem da gripe espanhola, que pode ter surgido tanto na China, como num  acampamento militar dentro dos Estados Unidos, durante a primeira guerra mundial, e que levou a óbito cerca de cinquenta a cem milhões de pessoas, todas elas,  não citando as demais, foram e são  frutos de entropias ou desequilíbrios ambientais e sociais. Por isso, observo com receio esse alarde em torno dos resultados da agricultura e da pecuária. Parece que não aprendemos a lição. Os pesquisadores dos insumos que aumentam essa produtividade ainda continuam bebendo nas águas de um poço profundo e escuro, que lhes restringe a possibilidade de ver a realidade como um sistema dinâmico, cujas partes integrantes devem estar em constante interação de equilíbrio, para evitar as entropias, pois estas, uma vez desencadeadas, podem provocar situações incontroláveis.

Os resultados obtidos pela produção agropastoril já motivam a busca de novas fronteiras. Onde se encontram estes paraísos iluminados? Eles estão nos poucos relictos de interflúvios, situados nos chapadões centrais do Brasil, para cujos espaços já existem as tecnologias de ponta sendo aplicadas com êxito.

 As buscas das últimas fronteiras já tiveram início. Começaram a ressuscitar as ideias do MATOPIBA -  como é curta e contraditória a ideia que temos da história - também como é curta a visão daqueles que nos representam e decidem por nós de enxergarem essa situação que caracteriza os meados do ano 2020. Será que ainda não entendemos ou será que a ideia da pujança econômica, explicitada pelos resultados da agricultura, lhes apaga a ideia do futuro, E o desejo de pousar bem na efêmera fotografia apaga também a ética dos pesquisadores.

Para produzir de forma mais expressiva, é necessária a abertura de novas fronteiras, ou seja, conquistar novos espaços. Acontece que nesses espaços mora gente detentora de tecnologias simples, incapazes de provocar grandes transformações. E, mesmo mutilados, se constituem nas últimas reservas que ainda podem garantir um futuro sem convulsões sociais e desequilíbrios ambientais.

Para a irrigação, fator fundamental desse modelo agropastoril, não é somente a invenção de controles eletrônicos que é necessária, o mais importante é a água.

As águas continentais são provenientes das chuvas, que se formam sobre os oceanos e são carreadas para o continente através de correntes aéreas. Parte da precipitação sobre a terra evapora e parte entra nas correntes e volta aos oceanos pelo escoamento superficial.  O restante penetra no solo. À medida que essa água vai se aprofundando, uma pequena parte adere ao material, através do qual ela se move e interrompe a descida. Com exceção dessa água suspensa, no entanto, o resto penetra e se acumula até preencher todos os espaços e poros disponíveis. Dessa forma são definidas duas zonas de acordo com o principal conteúdo dos espaços ocupados nos poros, pelo ar ou pela água: a zona de aeração e a zona subjacente de saturação. A superfície que separa essas duas zonas é o lençol freático. A base de toda saturação varia de lugar para lugar, mas normalmente se estende até uma profundidade onde uma camada impermeável é encontrada ou onde a pressão de confinamento fecha todos os espaços abertos. Estendendo-se irregularmente para cima, de alguns centímetros até vários metros da zona de saturação, está a franja capilar. A água se move para cima nessa região por causa da tensão superficial semelhante ao modo como a água sobe em uma toalha de papel.

Uma vez saturado e dependendo das características das rochas, a água do lençol freático penetra lentamente até encontrar impermeabilidade, formando ao longo de muito tempo os lençóis profundos denominados de lençóis artesianos ou aquíferos.  Os aquíferos se localizam entre os poros das rochas sedimentares, mas também são localizados nas galerias cársticas que se formaram por longo tempo. Seu deslocamento é lento, mas, mais dia menos dia, chega aos oceanos. São responsáveis pelas nascentes que dão origem à maioria dos rios da terra. Sua existência está na dependência das águas precipitadas e de sua captação, principalmente pela vegetação de raízes profundas e de sistema radiculares complexos. Se a vegetação for retirada, ocorre considerável variação da quantidade de água contida nos aquíferos, o que pode culminar com seu desaparecimento

Com a retirada da vegetação nativa, cujo processo tem-se intensificado nas duas últimas décadas, as reservas subterrâneas chegaram ao nível de base e não são alimentadas, como vinham sendo, desde priscas eras. São estas reservas as responsáveis pela perenização dos rios.

Este ano podemos considerar neutra a ação de fenômenos como El Nino e La Nina. Isso permitiu um regime de precipitação excelente no centro-oeste do Brasil, fato que não aconteceu no sul do país.  A consequência desse fenômeno foi a diminuição drástica das águas superficiais desde Santa Catarina até o Rio Grande do Sul. A vazão do rio Uruguai é a imagem emblemática desta situação. E pode ser explicada da seguinte forma: o que mantém a perenização dos rios são os aquíferos que os alimentam. No caso do sul do Brasil, as águas superficiais dependem das águas subterrâneas do aquífero Guarani. Ele vem desde o centro do Brasil, percorrendo no arenito Botucatu uma vasta região e aflorando em vários pontos, por baixo do tampão basáltico da formação Serra Geral. A forte estiagem que atingiu o sul do país, neste ano, mostrou também a situação deste outrora grande aquífero.

Portanto, o avanço da fronteira agrícola sobre as poucas áreas ainda mais ou menos intactas dos chapadões centrais do Brasil certamente irá provocar desequilíbrios físicos, uma vez que, a exemplo do aquífero Guarani, os aquíferos Urucuia e Bambuí, se encontram em níveis críticos, em função da retirada, indiscriminada e sem planejamento, da cobertura vegetal nativa, fato que impediu a preservação de áreas estratégicas de recarga desses aquíferos. Também provocarão com certeza desequilíbrios bióticos, não só no que se refere ao quadro vegetacional, mas também ao quadro animal, levando muitas espécies à extinção e também provocando a migração de outras, incluindo os insetos, que invadirão polos urbanos, assim como outros espaços. As consequências não temos como avaliar, mas sabemos, pelos exemplos de outras entropias, que podem ser danosas.  O avanço desse modelo agropastoril sobre estas áreas trarão, com certeza, também, convulsões sociais de larga escala, com resultados inimagináveis.

Dessa forma, não devemos nos iludir:  na hora em que um fenômeno natural provocar uma estiagem prolongada e as águas dos rios, bem como das represas, ou dos poços perfurados para irrigação, não tiverem mais volume suficiente para sustentar as grandes plantações, iremos colher somente os estilhaços de uma bomba.  É isto que esse modelo efêmero de agricultura e pecuária está plantando para o futuro.