sábado, 24 de setembro de 2016

MEMORIAL SERRA DA MESA



O Rio Que Passa Fica


Sinvaline Pinheiro e Jean Marconi



AINDA É TEMPO

A fumaça sobe, invade o céu sob o som da máquina que desmata, mata o cerrado...
A cana de açúcar é útil e a soja é rentável, alguém disse...
Mas a cana de açúcar, a soja levam, devastam o cerrado...
A paisagem fica nua, triste, sem graça...
Na imensidão plana sem árvores uma semente teima em germinar: o cerrado quer renascer...
Em meio as mãos que cultivam, os braços que lutam, os olhos que choram, onde está o cerrado?
As mãos postas aos céus, os homens oram, rezam... mas para quê?
Não adianta a prece se desmatam, matam a vida.
Mas a esperança existe e insiste...
Ainda nascerá um novo cerrado, mesmo que ainda longe, numa distância imedível...
Num sonho que já não será o mesmo.
A sementinha empurra, sobe, quer ser árvore e mostrar que a vida renasce...
Que ainda é tempo de plantar e que acima de tudo:
Ainda é tempo de

PRESERVAR...

Sinvaline



Uma das maiores autoridades sobre meio ambiente, professor ALTAIR SALES BARBOSA, foi o idealizador do Memorial Serra da Mesa na cidade de Uruaçu em Goiás. Frente ao Lago Serra da Mesa um dos maiores reservatórios artificiais de água do mundo, tem o objetivo de resgatar as tradições culturais dos povos tradicionais e sobretudo conscientizar quanto a preservação do meio ambiente, da Terra, do Cerrado, da Vida.

O Memorial tem sido o ponto de encontro dos povos quilombolas, indígenas, ciganos, comunidades ribeirinhas e dos estudantes. Funciona com pequeno apoio da Prefeitura de Uruaçu, convenio com algumas universidades e muito mais do trabalho voluntario.

Com 11 espaços temáticos o visitante faz uma viagem no tempo desde a era geológica até os dias atuais. Nos eventos do calendário e possível a convivência direta com povos indígenas, quilombolas e ciganos, aprendendo com eles a cultura tradicional do alimento, da vestimenta, da pintura corporal, dos cantos e da cura.


Nosso propósito é que o Memorial seja um ponto do Slow Food, pois ali resgatamos comidas desaparecidas há décadas. Essa parceria mais direta fortalece o Memorial e ele poderá cumprir de forma plena os seus objetivos, mudando os hábitos através do conhecimento e assim contribuindo para a formação de um mundo melhor.



Citamos aqui um pouco da fala do nosso Mestre professor Altair Sales Barbosa

As plantas do cerrado são de crescimento muito lento. Quando Pedro Alvares Cabral chegou ao Brasil, os Buritis que vemos hoje estavam nascendo. Eles demoram 500 anos para ter de 25 a 30 metros. Também por isso, o dano ao bioma é irreversível dos ambientes recentes do planeta Terra, o Cerrado é o mais antigo. A história recente da Terra começou há 70 milhões de anos, quando a vida foi extinta em mais de 99%. A partir de então, o planeta começou a se refazer novamente. Os primeiros sinais de vida, principalmente de vegetação, que ressurgem na Terra se deram no que hoje constitui o Cerrado. Portanto, vivemos aqui no local onde houve as formas de ambiente mais antigas da história recente do planeta, principalmente se levarmos em consideração as formações vegetais. No mínimo, o Cerrado começou há 65 milhões de anos e se concretizou há 40 milhões de anos.

O Cerrado é um tipo de ambiente em que vários elementos vivem intimamente interligados uns aos outros. A vegetação depende do solo, que é oligotrófico - com nível muito baixo de nutrientes-; o solo depende de um tipo de clima especial, que é o tropical subúmido com duas estações, uma seca e outra chuvosa. Vários outros fatores, incluindo o fogo, influenciaram na formação do bioma - o fogo é um elemento extremamente importante porque é ele que quebra a dormência da maioria das plantas com sementes que existem no Cerrado.

Assim, é um ambiente que depende de vários elementos. Isso significa que já chegou em seu clímax evolutivo. Ou seja, uma vez degradado não vai mais se recuperar na plenitude de sua biodiversidade. Por isso é que falamos que o Cerrado é uma matriz ambiental que já se encontra em vias de extinção.

O Cerrado foi incluído na política de expansão econômica brasileira como fronteira de expansão. E uma área fácil de trabalhar, em um planalto, sem grandes modificações geomorfológicas e com estações bem definidas. Junte-se a isso toda a tecnologia que hoje há para correção do solo. E possível tirar a acidez do solo utilizando o calcário; aumentar a fertilidade, usando adubos. Com isso, altera-se a qualidade do solo, mas se afetam os Lençóis subterrâneos e, sem a vegetação nativa, a água não pode mais infiltrar na terra.

Mas o mais importante de tudo isso é que as águas que brotam do Cerrado, são as mesmas águas que alimentam as grandes bacias do continente Sul-americano. É daqui que saem as nascentes da maioria dessas bacias. Esses rios todos nascem de aquíferos. Um aquífero tem sua área de recarga e sua área de descarga. Ao local onde ele brota, formando uma nascente, chamamos de área de descarga. Como ele se recarrega? Nas partes planas, com a água das chuvas, que é absorvida pela vegetação nativa do Cerrado. Essa vegetação tem plantas que ficam com um terço de sua estrutura exposta, acima do solo, e dois terços abaixo da superfície do solo. Isso evidencia um sistema radicular -de raízes- extremamente complexo. Assim, quando a chuva cai, esse sistema radicular absorve a água e alimenta o lençol freático, que vai alimentar o lençol artesiano, que são os aquíferos.

Quando se retira a vegetação o nativa dos chapadões, trocando-a por outro tipo, alterou-se o ambiente. Ocorre que essa vegetação introduzida - por exemplo, a soja ou o algodão ou qualquer outro tipo de cultura para a produção de grãos - tem uma raiz extremamente superficial. Então, quando as chuvas caem, a água não infiltra como deveria. Com o passar dos tempos, o nível dos Lençóis vai diminuindo, afetando o nível dos aquíferos, que fica menor a cada ano.
Em média, dez pequenos rios do Cerrado desaparecem a cada ano. Esses riozinhos são alimentadores de rios maiores, que, por causa disso, também têm sua vazão diminuída e não alimentam reservatórios e outros rios, de que são afluentes. Assim, o rio que forma a bacia também vê seu volume diminuindo, já que não é abastecido de forma suficiente. Com o passar do tempo, as águas vão desaparecendo da área do Cerrado. A água, então, é outro elemento importante do bioma que vai se extinguindo.

Hoje, usa-se ainda a agricultura irrigada porque há uma pequena reserva nos aquíferos. Mas, daqui a cinco nos, não haverá mais essa pequena reserva. Estamos colhendo os frutos da ocupação desenfreada que o agronegócio impôs ao Cerrado a partir dos anos 1970: entraram nas áreas de recarga dos aquíferos e, quando vêm as chuvas, as águas não conseguem infiltrar como antes e, como consequência, o nível desses aquíferos vai caindo a cada ano. Vai chegar um tempo, não muito distante, em que não haverá mais água para alimentar os rios. Então, esses rios vão desaparecer. Por isso, falamos que o Cerrado e um ambiente em extinção: não existem mais comunidades vegetais de formas intactas; não existem mais comunidades de animais - grande parte da fauna já foi extinta ou está em processo de extinção; os insetos e animais polinizadores já foram, na maioria, extintos também; por consequência, as plantas não dão mais frutos por não serem polinizadas, o que as leva à extinção também.

Por fim, a água, fator primordial para o equilibro de todo esse ecossistema, está em menor quantidade a cada ano.
Assim como ocorre no Cantareira, outros reservatórios espalhados pela região do Cerrado - Sobradinho, Serra da Mesa e outros - vão passar pelo mesmo problema. Isso porque o processo de sedimentação no fundo do lago de um reservatório é um processo lento. Os sedimentos vão formando argila, que e uma rocha impermeável. Então, a água daquele lago não vai alimentar os aquíferos. Mesmo tendo muita quantidade de água superficial, ela não consegue penetrar no solo para alimentar os aquíferos. Se não for usada no consumo, ela vai simplesmente evaporar e vai cair em outro lugar, levada pelas correntes aéreas. Isso é outro motivo pelo qual os aquíferos não conseguem recuperar seu nível, porque não recebem água.


Até meados dos anos 1950, tínhamos o Cerrado praticamente intacto no Centro-Oeste brasileiro. Desde então, com a implantação de infraestrutura viária básica, com a construção de grandes cidades, como Brasília, criou-se um conjunto que modificou radicalmente o ambiente. A partir de 1970, quando as grandes multinacionais da agroindústria se apossaram dos ambientes do Cerrado para grandes monoculturas, ai começa o processo de finalização desse bioma. Ou seja, o homem sendo responsável pelo fim desse ambiente que é precioso para a história do planeta Terra.

De todas as formas de vegetação que existem, o Cerrado é a que mais limpa a atmosfera. Isso ocorre porque ele se alimenta basicamente do gás carbônico que está no ar, porque seu solo e oligotrófico.
Nós vivemos em meio a mais diversificada flora do planeta. O Cerrado contém a maior biodiversidade florística. Isso não está na Amazônia, nem na Mata Atlântica, nem em uma savana africana ou em uma savana australiana. Nem qualquer outro ambiente da Terra. São 12.365 plantas catalogadas no Cerrado. Só as que conhecemos. A cada expedição que fazemos, cada vez que vamos a campo, pelo menos 50 novas espécies são descobertas. Dessas 12.365 plantas conhecidas, somos capazes de multiplicar em viveiro apenas 180. Isso é cerca de 1,5% do total, quase nada em relação a esse universo. E só conseguimos fazer mudas de plantas arbóreas.

Para as demais, que são extremamente importantes para o equilíbrio ecológico, para o sequestro de carbono e para a captação de água, não temos tecnologia para fazer mudas. Por exemplo, o capim-barba-de-bode, a canela-de-ema, a arnica, o tucum-rasteiro, esses dois últimos com raízes extremamente complexas. Se tirarmos um tucum-rasteiro, que está no máximo 40 centímetros acima do nível do solo, e olharmos seu tronco, vamos encontrar milhares ou até milhões de raízes grudados naquele tronco. Se tirarmos um pedaço pequeno dessas raízes e levarmos ao microscópio, veremos centenas de radículas que saem delas. Uma pequena plantinha com um sistema radicular extremamente complexo, que retém a água e alimenta os diversos ambientes do Cerrado. É algo que não se consegue reproduzir em viveiro, porque não há tecnologia. O que conseguimos e em relação a algumas plantas arbóreas.

Outro aspecto que indica que o Cerrado já entrou em vias de extinção e que as plantas do Cerrado são de crescimento muito lento. Uma canela-de-ema atinge a idade adulta com mil anos de idade. O capim-barba-de-bode fica adulto com 600 anos. Um buriti atinge 30 metros de altura com 500 anos.
Hoje vejo muitos profissionais, principalmente arquitetos, falando em mobilidade urbana. Falam em construir monotrilhos, linhas especificas para ônibus, corredores para bicicletas, mas ninguém toca na ferida: o problema não está ali, mas na desestruturação do homem do campo. Quanto mais se desestrutura o campo, mais pessoas vêm para a cidade, que não consegue absorve-las, por mais que se implantem linhas novas, estações e bicicletários. O problema está no drama do campo, não na cidade.

A extinção do Cerrado envolve também a extinção dos grandes mananciais de água do Brasil, porque as grandes bacias hidrográficas "brotam" do Cerrado. O Rio São Francisco é uma consequência do Cerrado: ele nasce em área de Cerrado e é alimentado, em sua margem esquerda, por afluentes do Cerrado: Rio Preto, que nasce em Formosa (GO); Rio Paracatu (MG); Rio Carinhanha, no Oeste da Bahia; Rio Formoso, que nasce no Jalapão (TO) e corre para o São Francisco. Se há a degradação do Cerrado, não há rios para alimentar o São Francisco.

Até bem pouco tempo tínhamos duas humanidades: o homem-de-neanderthal, o Homo sapiens neanderthalensis; e o Homo-sapiens-sapiens. Hoje podemos falar também em duas humanidades: uma humanidade subdesenvolvida, tentando soerguer em meio a um lodo movediço; e outra humanidade, que nada na opulência. A questão é que, se essa situação persistir, brevemente teremos a pós e a sub- humanidade.

Nós, como educadores, deveríamos pensar mais nisso - e eu penso: talvez ainda seja tempo de salvar o que ainda resta, mas se não dermos uma guinada muito violenta não terá como fazer mais nada. E preciso haver real mudança de hábitos e mudar a forma de observar os bens patrimoniais do planeta e da nossa região. A água tinha de ser uma questão de segurança nacional. A vegetação nativa, da mesma forma. Os bens naturais teriam de ser tratados assim também, porque deles depende o bem-estar das futuras gerações. Mas isso só se consegue com investimento muito alto em educação, mudando mentalidade de educadores. As escolas tem de trabalhar a consciência e não apenas o conhecimento. Uma coisa e conhecer o problema; outra, é ter consciência do problema. A consciência exige um passo a mais. Exige atitude revolucionária e radical. Ou mudamos radicalmente ou plantaremos um futuro cada vez pior para as gerações que virão.

Então nesse Cerrado estão as plantas medicinais, as frutas, as flores, o mel, os animais silvestres, a água. Os indígenas e a nossa vida. O professor Altair construiu o Memorial Serra da Mesa para que seja o local do apelo direto à preservação dessa grande riqueza.

Contamos com Slow Food para continuar esse trabalho.





sábado, 10 de setembro de 2016

HOMO-CERRATENSIS

Uma incrível jornada humana rumo ao paraíso 
do Planalto Central

Altair Sales Barbosa



A expressão Homo-cerratensis foi criada pelo pesquisador Paulo Bertran, para batizar simbolicamente a descoberta feita pelo professor e pesquisador Altair Sales Barbosa do esqueleto humano mais antigo das Américas.

O esqueleto pertence a um indivíduo do sexo masculino e foi encontrado dentro do início das camadas Pleistocênicas, em escavação arqueológica realizada na região de Serranópolis-Goiás, com a idade de 13.000 anos antes do presente (A.P.), após recalibragem do Método Carbono 14. 
 
Embora o esqueleto seja de um Homo-sapiens-sapiens, um dos ancestrais dos índios do Brasil, isso não o configura como o vestígio mais antigo da ocupação humana americana. Há outros vestígios não esqueletais que acusam a presença do homem no Continente Americano em épocas mais antigas.

Com o passar do tempo, a expressão Homo-cerratensis passou a designar também o habitante tradicional do Cerrado, fruto ou não de miscigenações e troca de conhecimentos entre populações indígenas, portuguesas e africanas.



O BERÇO DE TODOS NÓS

O mais antigo ancestral humano, o que originou a humanidade moderna, viveu na África há mais de dois milhões de anos.  Esse meu, seu, nosso ancestral comum se chamava Homo-habilis. Não se sabe ainda se ele já dominava a habilidade de falar.
  
Retrocedendo muito mais no tempo, na casa dos três bilhões de anos, vamos encontrar o ancestral comum de todos os seres viventes da Terra. A reconstituição dessa grande árvore genealógica se mostraria muito fragmentada, porque várias de suas bifurcações são desconhecidas e possivelmente jamais serão conhecidas.

O certo é que quanto mais avançamos no tempo passado, mais buscamos o caminho da unidade, e quanto mais avançamos em direção aos tempos modernos, mais nos deparamos com a diversidade. À medida em que retrocedemos ou avançamos no tempo, as inúmeras variáveis se tornam mais complexas.

Mas é possível afirmar que em algum lugar de um passado recente, provavelmente há 80 milhões de anos, época em que já existiam mamíferos na Terra, pelo menos um dos nossos ancestrais já vivia, ou nós não estaríamos hoje no Planeta.

Em um momento na história, houve dois animais da mesma espécie. Um deles se tornou o ancestral de todos os humanos. O outro evoluiu para outra encruzilhada, tornando-se o ancestral de uma outra espécie de mamífero moderno.
 
AS PRIMEIRAS PEREGRINAÇÕES

Há pouco mais de 2 milhões de anos nosso ancestral comum, o Homo-habilis, vivia na África, sem dúvida o continente kimberlito de nossas raízes genéticas.

Passados 300 a 400 mil anos, o Homo-habilis transformou-se em uma espécie anatomicamente mais evoluída, o Homo-erectus. Seu mais antigo esqueleto foi descoberto perto do lago Turkana e data de 1,5 milhão de anos.

Mas o Homo-erectus não ficou restrito somente à África. Podemos considerá-lo um ser cosmopolita, pois seus restos fossilizados indicam que viveu na Europa, na Ásia, na ilha de Java. Dependendo do local, é chamado de Pithecanthropus-erectus, Sinanthropus pequinenses, Homem de Java.

Em locais diferenciados geograficamente da Europa e da Ásia, o Homo-erectus deu origem ao Homo-sapiens arcaico, que ostenta de acordo com a região, pequenas diferenças anatômicas, como o Homo-sapiens de Heidelberg, (Alemanha); Homo-sapiens da Rodésia (África); Homo-sapiens de Dali (China).

A saída do Homo-erectus da África para outros continentes representa a primeira onda migratória de humanos, e foi realizada em levas intercaladas por intervalos de tempo relativamente longos.

Esse Homo-erectus viveu até cerca de 250 mil anos atrás, e é o ancestral do Homo-sapiens arcaico, cujo fóssil mais antigo foi encontrado na depressão de Afar, na Etiópia, e data de 160 mil anos. 

O Homo-sapiens arcaico deu origem ao homem moderno, o Homo-sapiens-sapiens, que não é único de seus descendentes. Outra espécie de humanos avançados, conhecida como Homo-sapiens neanderthalensis, ou Homem de Neanderthal, também descendente do Homo-sapiens arcaico, emergiu por volta de 150 mil anos atrás na Europa e no Oriente Médio. Fósseis dessa região mostram uma transição gradual do Arcaico para o Neanderthal.
 
O Homem de Neanderthal foi contemporâneo dos europeus modernos e viveu até 23 mil anos atrás, quando entrou em competição e foi extinto por grupos de Homo-sapiens-sapiens oriundos da África, que representam uma segunda leva de migrantes desta região para outras situadas mais ao norte.

O DESTINO DA SEGUNDA PEREGRINAÇÃO

Durante o último estágio da glaciação Pleistocênica, denominada pela geologia americana de Wisconsin, houve grande rebaixamento do nível oceânico em todas as partes do Planeta, devido à quantidade de água retida no hemisfério norte, notadamente acima do Trópico de Câncer.

Esse abaixamento provocou mudanças significativas na direção das correntes marinhas, influenciou diretamente na circulação atmosférica, e interferiu em mudanças ambientais no interior dos continentes que, por sua vez, afetaram a vegetação e a fauna, levando algumas espécies à extinção e outras à busca de rotas migratórias que lhes permitissem sobreviver.

O rebaixamento dos oceanos também expôs pontes de ligação entre o sul da Ásia e a Austrália, a Ásia e diversas ilhas do Pacífico. Por meio delas, grupos de Homo-sapiens-sapiens iniciaram processos migratórios intensos, na busca da sobrevivência e de novos modelos de organização espacial.

Algumas levas de populações do Sul da Europa retornaram à África. Alguns grupos do nordeste da Ásia, aproveitando a ponte formada pelo Estreito de Bering entre a Sibéria e o Alasca, deram início ao povoamento do Continente Americano.

O POVOAMENTO AMERÍNDIO 


Atribui-se o termo Ameríndio à toda população humana nativa e seus descendentes, existentes no Continente Americano antes da chagada de Cristóvão Colombo, em 1492.  Colombo de forma equivocada denominou essa população de “índios” pensando haver chegado às Índias.

Os primeiros seres humanos a povoar as Américas entraram no novo continente a pé, subsistindo à base de plantas e animais selvagens, numa época que a água do mar, retida nos glaciares, deixava uma conexão terrestre entre a Sibéria e o Alasca, em pelo menos dois longos intervalos nos últimos 50.000 anos.

A mais antiga ponte terrestre existiu entre cerca de 50.000 e 40.000 anos atrás e foi usada por várias espécies de mamíferos do Velho Mundo, incluindo o caribu e o mamute peludo, para invadir as Américas. Após um intervalo de submergência que durou uns 12.000 anos, a ponte reapareceu entre cerca de 28.000 a 10.000 anos atrás.

Durante parte desse tempo, um continuo lençol de gelo estendeu-se do Atlântico ao Pacífico, terminando a uma latitude ligeiramente ao sul dos limites políticos atuais entre o Canadá e os Estados Unidos. Com 1.200 metros de espessura, esse monstruoso glaciar impediu a passagem do homem ou animais durante 10.000 anos.


No decorrer de alguns milênios, antes que os segmentos de Leste e Oeste se fundissem e um corredor se abrisse novamente, a ponte terrestre foi transitável. Aproximadamente há 10.000 anos, o nível do mar elevou-se e cobriu o Estreito de Bering. Desde essa época, o Novo Mundo tem sido atingido somente por água.

Os primeiros povoadores devem ter entrado na América pela ponte que reapareceu entre a Sibéria e o Alasca, no período situado entre 28.000 e 10.000 anos A.P. Como essa migração não foi contínua e foi realizada através de levas que englobavam grupos pequenos, é provável que esses grupos pertencessem a correntes gênicas diferenciadas.

A distância cronológica entre um povoamento e outro e as novas paisagens ambientais foram aos poucos imprimindo modificações tecnológicas nos instrumentos de pedra lascada, sem, contudo, causar grandes modificações na organização social dos primeiros povos.  É bem possível, também, que já devesse existir certa diversidade linguística entre essas levas de povoadores.

A colonização da América do Norte se deu de forma que alguma população logrou grande êxito, como a das grandes planícies, mas a colonização de outras áreas nem tanto e, aos poucos, foi forçando uma migração lenta em direção à América do Sul, seguindo as rotas migratórias dos animais.

OS PRIMEIROS ANCESTRAIS DOS POVOS DO CERRADO

Os primeiros ancestrais das populações indígenas que hoje ainda ha­bitam as áreas do Cerrado chegaram por volta de 13.000 anos A.P. Vieram em um processo de levas sucessivas, em épocas diferen­tes. Muitas dessas levas tinham parentesco genético e cultural, outras nem tanto.

Entraram na América do Sul pelo do Istmo do Panamá, por volta de 19.000 anos A.P., mas seus ancestrais mais antigos vieram da Sibéria para a América do Norte, por volta de 25.000 anos A.P. (datas já devidamente corrigidas, em virtude da recalibragem do Método do C-14), utilizando o Estreito de Bering e aproveitando os corredores de migração formados pelo interglacial Ilinoian-Wisconsin.  Quando chegaram à América, todos os ameríndios já eram Homo sapiens, sapiens mongoloide, originários da região que hoje corresponde à Mongólia.
  
Embora todos fossem descendentes de um mesmo tronco racial, já exis­tiam marcantes diferenciações culturais, refletidas na cultura material, nos sistemas sociais de organização e possivelmente na língua falada entre os grupos que aqui chegaram.

 Mas existiam também muitas semelhanças, principalmente na obtenção de alimentos – todos tinham sua economia baseada na caça e na coleta, e na busca de abrigos naturais para se protegerem das intempéries do tempo e garantirem sua sobrevivência.

Por volta de 13.000 anos A.P., com o fim da glaciação de Wisconsin, o caminho pelo Estreito de Bering tornou-se inviável. Somente muito mais tarde outras levas humanas, oriundas da Polinésia, alcançaram a América pelo Pacífico, ou se deslocando pela neve através da Groenlândia. Os Inuites, ou Esquimós, já utilizavam essa rota em épocas anteriores.

OS PRIMEIROS POVOS ENCONTRADOS NO CERRADO

Organizadas em pequenos grupos clânicos, as populações ameríndias do novo Continente foram obrigadas a um isolamento geográfico por longo tempo, o que contribuiu para aumentar ou fazer surgir uma diferenciação linguística acentuada.

No Brasil Central, as diferenciações linguísticas, os sistemas de organizações sociais e ideológicos foram se sedimentando ao longo do tempo, aumentando a diferenciação entre os grupos ou povos.

A maior parte deles inventou ou incorporou novas tecnologias ao seu cotidiano, como a cerâmica, as ferramentas de pedra polida e a domesticação de algumas espécies vegetais, desenvolvidas localmente ou aprendidas por intercâmbio, cujo impacto positivo se refletiu no crescente demográfico.

O que se constata, como regra geral, e que leva a concluir, com boas razões, é que os primeiros habitantes encontrados pelos brancos nos diversos locais do Cerrado foram os que se desenvolveram e se adaptaram nesse local por séculos. Até o contato direto, esses povos não foram afetados em sua estrutura demográfica e cultural.

O comportamento pacífico dos índios Goyá, um dos primeiros grupos atingidos pelas Bandeiras, que chegaram à região rapidamente em busca de mão de obra, ouro e pedras preciosas, indicam que não havia nem a instabilidade nem o conflito surgido depois da presença do branco.
 
O contato direto com os bandeirantes, que ainda encontram as populações plenamente instaladas, com suas aldeias, seus roçados, seus campos de caça e coleta, provocou não só uma desagregação social, mas também: a diminuição da população por escravização, guerras e doenças; a deterioração econômica pela  ocupação de seus espaços vitais para os cultivos e pilhagem das roças; e a desorganização dos espaços de cada aldeia, levando os grupos à guerra, primeiro contra os arraiais brancos, mas depois também entre si.

A imagem que os viajantes e etnógrafos do século XIX oferecem das populações então sobreviventes é falsa, porque o impacto violento da colonização — primeiro, desestruturando, depois, reestruturando a sociedade, a economia e talvez partes consideráveis da cultura — já havia sido absorvido.

Se isso parece verdadeiro para as populações ainda numerosas que assolaram desesperadas os arraiais brancos antes de serem “pacificadas”, é muito mais significativo para as populações já reduzidas, que foram aldeadas e completamente aculturadas sob o domínio do colonizador.

Seus descendentes, que hoje sobrevivem nas aldeias, devem ter reorganizado mais de uma vez a sua sociedade e a sua cultura com os restos que salvaram do impacto colonial, readaptando-as de acordo com as novas condições e necessidades.

O GRITO ÊMICO DE CADA UM DOS GRUPOS QUE FORMARAM O HOMO-CERRATENSIS

EU SOU O ÍNDIO

Desde que as naus portuguesas chegaram em abril de 1.500 ao litoral brasileiro, numa enseada batizada com o nome de Bahia de Todos os Santos, cerca de vinte gerações se passaram.

Nossos ancestrais indígenas já estavam na região central do Brasil há pelo menos quinhentos e cinquenta gerações. No oeste da América do Sul, América Central e América do Norte, já estávamos há muito mais tempo.

Quando chegamos ao Brasil Central, pensávamos ter descoberto o paraíso, tal a opulência de recursos. O Cerrado nos acolheu com seus rios de águas cristalinas, repletos de peixes, seus variados frutos comestíveis, sua enorme diversidade de animais e seus inúmeros abrigos.

Éramos nômades, caçadores, pescadores e coletores das sobrevivências. Morávamos em abrigos naturais ou em cavernas. Nesses locais também enterrávamos e venerávamos nossos mortos, fazíamos nossas cerimônias e deixávamos arte em forma de mensagens gravadas e pintadas nas paredes.

Mais tarde, domesticamos alguns vegetais nativos e nos transformamos em horticultores. Passamos a viver em áreas abertas ou aldeias, sem nunca deixar de visitar nossas antigas moradas, pois sempre respeitamos e reverenciamos a memória dos nossos antepassados.

O futuro chegou mais rápido que imaginávamos, e o Brasil que se formou com sua ideologia economicista passou sobre nós como um rolo compressor. Fomos estereotipados na forma de vários preconceitos. Até o título de "preguiçoso" nos cunharam, simplesmente porque não aceitávamos o regime da escravidão. 

Mesmo sendo amistosos no início, logo percebemos a intenção dos portugueses de nos escravizar e nos tornamos arredios. Fomos marginalizados de várias maneiras, inclusive pela força. Para sobreviver, tivemos que nos refugiar nos rincões mais escondidos e inacessíveis.

Alguns de nós foram aprisionados, aldeados em locais artificiais e, com o tempo, catequizados. Mais tarde, em aldeamentos como o de Mossâmedes e Carretão, houve miscigenação entre nós e os africanos, resultando no tipo físico denominado pelos historiadores de cafuzo.

Também com o branco, nossa miscigenação ocorreu de maneira forçada e violenta. Mesmo quando as pequenas vilas já estavam estruturadas nos sertões do Brasil, era comum incursões para capturar mulheres entre os grupos isolados. Daí a expressão "minha avó foi pega a laço.

Da mesma forma, nossos mitos foram coletados pelos religiosos, nos aldeamentos, e disseminados nas casas dos brancos. Levaram um pouco, mas muito pouco, porque boa parte do universo cosmogênico de nossos povos continua conosco.

Mas nossa cultura e identidade com a terra eram tão fortes que, mesmo restando somente rastros, nossa herança deixou marcas profundas na cultura brasileira, e na de outros povos, que incorporaram nossos alimentos, nossas plantas nativas, nossa dieta animal e vegetal, e nossa riquíssima farmacopeia.

Assim aconteceu com o feijão, domesticado por nós e apreciado desde o Brasil até o Texas. Também domesticamos o abacate, o abacaxi, o tomate, o pimentão, a pimenta.

O tabaco, domesticamos para uso em nossos rituais, para amenizar nossas dores e situações de estresse, da mesma forma que nossos irmãos do altiplano Andino usavam a coca para amenizar os efeitos da altitude e para evitar a labirintite causada pela escassez de oxigênio. Infelizmente, a sociedade que se formou deu às nossas plantas outras formas de uso.

Nossos antepassados mexicanos criaram o milho, que hoje movimenta grande parte da economia mundial, cruzando dois tipos de gramíneas nativas. Esse cereal irradiou com tamanha força e sucesso entre todos os nossos ancestrais das Américas que até a pamonha, que muitos afirmam ser comida típica de Goiás, já era conhecida por nós há pelo menos cinco mil anos.

Alguns de nossos alimentos alcançaram mercados mundiais, como o guaraná, nossa bebida enérgica e refrescante, nossos cremes das palmeiras Açaí, Patauá, Bacaba, Buriti, aos quais atribuíamos o nome de sembereba, bem como o creme de Cupuaçu, as castanhas do Pará, do Caju, do Barú, do Pequi, ou os Amendoins.

Um dos nossos cremes ficou tão famoso que o mundo até esquece que fomos nós que o criamos. Trata-se do creme da amêndoa do cacaueiro, planta nativa das nossas florestas equatoriais cujo doce hoje em dia é o mais apreciado da Terra, e alguns ainda se atrevem a dizer que o melhor chocolate do mundo é o suíço.

Domesticamos batatas, inhames e mais de trezentas raças de mandioca; ensinamos a consumi-la cozida ou assada; a processá-la na forma de tapioca, polvilho, puba, beijus; e dela fizemos o primeiro alimento desidratado da história da humanidade: a farinha.

Ensinamos ao mundo a usar o látex da seringueira, planta nativa ecótona da Amazônia e do Cerrado, cuja matéria prima hoje movimenta desde nossos corpos pelos solados de nossos sapatos, até caminhões e aviões pelos seus pneus.

Ensinamos os colonizadores a consumirem muitas de nossas plantas nativas para saciarem a fome e curarem certas doenças. Conosco, aprenderam a consumir a Mangaba, o Caju, o Pequi; a beber o chá da Douradinha e da Congonha-do-Campo, e a curar a malária usando a entrecasca do Quinino.

Passamos muitos outros segredos vegetais ao colonizador que os incorporou na farmacopeia universal. Muitos ainda guardamos conosco, não por egoísmo, mas porque a sociedade que se formou à nossa volta nunca se importou em conhecê-los para benefício de toda a humanidade. Alguns espertalhões conseguem esses conhecimentos para uso comercial e empresarial pela biopirataria.

EU SOU O PORTUGUÊS

No século XV, há mais de 500 anos, formávamos uma das mais desenvolvidas nações da Terra. Estávamos bem mais próximos, culturalmente falando, e possivelmente também geneticamente, das populações árabes do que das populações do interior e norte da Europa.

Nossa Escola de Sagres, criada pelo Infante D. Henrique, que montou sua base sobre os conhecimentos astronômicos, matemáticos e cartográficos desenvolvidos pelos árabes, possibilitou uma revolução no conhecimento da cartografia terrestre e das técnicas de navegação, desde uma fábrica de navios até sistemas de orientação em alto mar. Foi com a vantagem dessa tecnologia de ponta para época que chegamos ao Brasil, em 22 de abril de 1.500.

Ao aportar no litoral brasileiro, encontramos no litoral os índios de língua Tupi no final de uma diáspora. Alguns indagam, se não tivéssemos interrompido esse processo bruscamente, esses grupos teriam atingido um estágio civilizatório que os conduziriam a organizações sociais mais complexas? Infelizmente não temos como responder.

O que podemos afirmar de maneira geral é que o Novo Mundo é um laboratório antropológico único pois os processos de desenvolvimento cultural aborígene aconteceram num quase isolamento, antes que ocorresse o fluxo de nossos soldados, sacerdotes e exploradores após 1492.

Nossos primeiros navios traziam populações masculinas, sobre as quais os longos períodos de solidão despertaram um grande apetite sexual. Ao entrarem em contato com as indígenas, perpetraram vários tipos de violência sexual, provocando assim as primeiras formas de miscigenação no Brasil, dando origem a um tipo físico denominado mameluco
Ao adentrar pelo interior do Brasil, encontramos a maioria dos grupos indígenas vivendo em aldeias, com seus roçados bem estruturados produzindo mandiocas, milhos, batatas, inhames feijões. Chegávamos em destacamentos armados, afugentando os indígenas, principalmente os do sexo masculino, violentando as mulheres e se alimentando de seus roçados.
 
Para nos tornarmos dominantes, assim como aconteceu noutras áreas do Continente, o habitante nativo foi tratado de maneira desumana. Alguns impactos, devastadores, levaram vários grupos indígenas e seus saberes à extinção.
 
Como dominantes, impusemos nossa língua, nossa religião, nossa economia. Difundimos nossa arraigada cultura e divulgamos nossa poesia, nossas cantigas, deixando em todos os cantos os traços da nossa influência.

Através dos religiosos Jesuítas estruturamos o “Nhengatu”, uma espécie de língua geral derivada da língua Tupi. E, com base em alguns vocábulos da nova língua, denominamos os principais acidentes geográficos que fomos encontrando em nossa peregrinação. 
Conhecedores do ambiente, em vez de nos oferecerem resistência duradoura, os índios refugiaram-se em locais pouco acessíveis.  Para evitar perdas nos confrontos, desistimos da escravidão indígena e a voltamos nossas vistas para o escravo africano, cujo comércio já era bem estruturado e menos dispendioso. 

Entretanto, vários grupos de portugueses continuaram caçando os índios, contribuindo de forma crescente para uma desestruturação social dos grupos indígenas.

Nas entranhas da imensidão dessa terra, por vezes ficamos perdidos e fragilizados, e aí tivemos que usar o conhecimento dos ameríndios que aqui se encontravam e dos negros que trouxemos como escravos. Com eles aprendemos a sobreviver, e dessa mistura formamos essa cultura singular que hoje identifica o povo brasileiro.

Como mais uma contribuição, aqui introduzimos o gado taurino, os equinos, os caprinos, os galináceos incluindo a galinha-da-angola, e os porcos; trouxemos a banana, a manga, a fruta-pão, oriundas da Ásia, onde tínhamos colônias e comércios; e as laranjas, limões, limas e figos, cafés e cana-de-acúcar, originários da Península Ibérica, Arábica e África.
Deixamos, também, as lições da dominação que usamos para impedir a formação de uma consciência popular. Dificultamos ao máximo a criação de universidades e impedíamos a difusão de conhecimentos de cunho humanístico, histórico, sociológico e antropológico. Com isso, impedíamos a formação do saber e da consciência e, não por acaso, fomos os últimos colonizadores a deixarem a Colônia. 

EU SOU O NEGRO

Das três raças biológicas que contribuíram para a formação do Brasileiro, eu fui a última a chegar. Tenho uma história longa, escrita desde as primeiras páginas da humanidade, ainda na mãe África.

Desde o alvorecer do homem nós os africanos aprendemos a enfrentar diversos tipos de animais de rapina, nossos predadores. Esse fato nos deu um grande aprendizado para a sobrevivência.
Ao Brasil chegamos em condições sub-humanas, como escravos dos europeus, principalmente dos portugueses. Fomos trazidos do sul do Saara para trabalhar nos diversos afazeres, desde a mineração até edificações, prática comum nos empreendimentos de toda a Europa Ocidental.

Já havia na África grupos locais especializados em capturar homens e mulheres nos diversos grupos étnicos espalhados num imenso espaço geográfico que ia do litoral atlântico até os interiores do continente e em alguns casos até o Indico, na costa leste. 
Os caçadores de escravos capturavam tanto quantos e qualquer grupo cultural que conseguissem, usando diversos meios, desde a guerra até a corrupção, compra e subversão de agentes locais, e nos juntavam em portos de embarques na costa africana, de onde éramos despachados em navios negreiros.

Os mais importantes portos de embarque eram conhecidos como Porto de Senegal, Porto de Gambia, Porto Mina, Porto Vidar, Porto Calabar, Porto de Cabinda, Porto de Luanda, todos situados no Atlântico. No leste da África, também existiam os Portos Lourenco Marques, Inhabane e Zanzibar.  Era comum nos atribuir o nome do local onde embarcávamos.

Entre nós, tínhamos pouca ou quase nenhuma relação cultural, com raras exceções, (ioruba, malê), e pertencíamos a correntes gênicas separadas por longo tempo. Mesmo assim, para evitar insurreições, nos separavam e enviavam os grupos com maior proximidade para atividades em locais distantes.

No início os navios negreiros traziam, em sua grande maioria, nossas populações do sexo masculino. Só mais tarde trouxeram também nossas mulheres, que ficavam restritas aos empreendimentos no litoral. Por isso, as mulheres de origem africana só começaram a chegar ao interior do Brasil e, consequentemente, ao Cerrado no mínimo 150 anos após o descobrimento.

Em cultura material, trouxemos muito pouco, ou quase nada. Mas os modelos de nossas culturas estavam impressos em suas mentes, e aqui foram reproduzidos.  Trouxemos conosco estruturas completas ou fragmentadas do modelo tribal vivido na África, e isso nos deu a grande capacidade de adaptação para sobreviver no novo ambiente. O agrupamento forçado de pessoas de origem diferentes não nos impediu de construirmos nossa identidade própria.

Nossa história nessa terra é o próprio sinônimo do resgate da dignidade. Nossa cultura é tão forte que, mesmo marginalizados, deixamos diversos rastros na emergente cultura dos brasileiros.

Nossa miscigenação com o europeu foi inicialmente concretizada através do relacionamento de mulheres negras com seus senhores, cuja situação culminaria no regime de concubinato, em grandes números. Daí surgiu o tipo o mulato que, por seu talento à musicalidade, contribuiu de forma decisiva para a ritimização das músicas portuguesas e para a divulgação das músicas que aprenderam com seus ancestrais.

E como viviam próximos aos seus senhores, ou suas mulheres cuidavam das crianças dos europeus, ajudaram a disseminar um universo mitológico extremamente rico e cheio de nuances poéticas e românticas.
Também fomos nós os principais responsáveis pelas corruptelas de algumas palavras portuguesas, certamente pela dificuldade em aprendê-las na sua totalidade. E quando tínhamos a oportunidade de aprender a ler e escrever português, ou outro ofício como ferreiro, alfaiate, sapateiro, marceneiro, oficineiro em geral, nos revelávamos sempre hábeis.

Alguns africanos conhecidos como Malês eram mulçumanos e já chegaram ao Brasil alfabetizados, falando e escrevendo em árabe numa época em que a maior parte da elite, brasileira ou lusitana, seus proprietários, era analfabeta.

Esses grupos arabizados na própria África pela expansão do islamismo, eram hábeis ourives e possuíam habilidades para trabalhos minuciosos. Muitos se transformaram nos contabilistas das fazendas que surgiram após a queda da mineração, ou se destacaram em atividades intelectuais.

O HOMO-CERRATENSIS

Os estudiosos da genética evolutiva afirmam que existe um nível de extrema uniformidade genética na espécie Homo-sapiens-sapiens. As moléculas de proteínas do sangue, ou a sequência dos próprios genes, mostram que há menos diferenças entre dois seres humanos em qualquer parte do mundo do que as encontradas em qualquer primata superior sobrevivente até os dias atuais.

Essa uniformidade é creditada a um gargalo genético porque passou a humanidade por volta de 70 mil anos atrás, causado por um inverno vulcânico de aproximadamente 6 anos que reduziu drasticamente a população humana no Planeta. Toda a humanidade moderna descende, então, dessa minuta população e por isso é geneticamente uniforme.

Embora a humanidade seja uma só, os diferentes locais onde se originaram as pessoas e o fato de que os grupos humanos ficaram isolados por longos períodos são fatores que, também por aqui, moldaram as características externas na tipologia física do Homo-cerratensis.

O ambiente modelou também uma gama de variantes culturais, representadas pela língua, religião, pelos sistemas de organização social e de parentesco.  O ambiente que os acolheu, associado às diferenças culturais de cada grupo, contribuiu para uma convergência, tanto física como cultural, do Homem do Cerrado.

É comum, portanto, afirmar que três vertentes físicas e culturais, contribuíram naturalmente para a formação do Homem do Cerrado: a indígena, a europeia (portugueses), e a africana (escravos). Não é tão simples assim. Essa afirmação deixa de ser verdadeira se forem explicitadas algumas das formas como aconteceu.

Dos portugueses e africanos que vieram para o centro do Brasil, poucos foram os que retornaram. Foi dessa forma que os empreendimentos mineradores cederam lugar às fazendas multifuncionais, que se transformaram em patrimônios, que se tornaram vilas e mais recentemente cidades.

Acrescente-se a essa gamela o isolamento, que os manteve, durante longo período, em relação aos centros mais desenvolvidos.  As novidades que chegavam pelos viajantes, mascates, professores ou vigários que as capelas exigiam, chegavam na forma de fragmentos e foram com estes fragmentos que o “sertanejo” – foi modelando e estruturando sua cultura.

À medida que a sociedade foi-se estruturando e se equipando, sugiram em mais de um local, na cabeça de algumas pessoas, lampejos de genialidade, qual como geração espontânea, traduzidos em peças musicais, peças teatrais, peças literárias, pintores, artesãos, escultores. Toda essa fragmentada colcha de retalhos é uma característica singular da cultura do Homem do Cerrado.

Assim se moldou o Homo-cerratensis, com uma grande predominância da cultura dominante, que no início da colonização foi impiedosamente desumana, cruel para com os índios e escravos africanos.

Dentre todos os seres viventes que habitaram e habitam o Planeta Terra, somente o Homo-sapiens-sapiens desenvolveu a capacidade de reconstruir o passado. Nosso futuro dependerá da habilidade de compreendermos e aproveitarmos aquilo que aconteceu na história.

Nos tempos modernos, também sem levar em consideração a vocação da terra e a vocação cultural do que ainda resta de autêntico na cultura do Homo-cerratensis, uma nova onda globalizada de invasões chegou e está se instalando, gerando forte impacto sobre o meio ambiente e ocasionando a desestruturação da população rural e urbana, num ritmo nunca visto na história da humanidade.


Nosso futuro também dependerá da nossa habilidade e da nossa sabedoria em lidar com essa avalanche de problemas.