sábado, 7 de setembro de 2019

O CENTENÁRIO DE JESCO VON PUTTKAMER



Altair Sales Barbosa

Nascido no Brasil em 1919, na cidade de Niterói, filho de descendência nobre alemã, ligado genealogicamente a Frederico II, Jesco deixou para a humanidade um patrimônio de valor inestimável.

Seu pai um nobre barão alemão, serviu-se na Namíbia, África, à época colônia alemã. Num desses deslocamentos do navio que transportava a tropa, recebeu um comunicado para atracar num porto seguro, durante a primeira guerra Mundial, para fugirem dos navios ingleses. Este porto era o Rio de Janeiro.

Por ali mesmo ele ficou, casou-se com uma dinamarquesa e tiveram três filhos, Jesco, o mais velho, Olavo e Helga, todos até então residentes no Rio. Tempos depois, Jesco e Olavo foram estudar na Alemanha, Olavo fazia agronomia e Jesco fazia o doutorado em química, na Universidade de Munique, quando estourou a segunda Guerra Mundial. Tendo em vista que tinham também a cidadania alemã, ambos foram procurados pelas forças alemãs, para se alistaram no exercito alemão. Mas se negaram, por serem também cidadãos brasileiros. Este fato os levou à prisão num campo de concentração. O irmão foi fuzilado e Jesco conseguiu sair e voltar ao Brasil, graças à intervenção do Consulado Sueco.

Neste período, o pai já havia se mudado para Goiás, adquirindo uma grande área de terras, que ia das cabeceiras do córrego Vaca Brava até o onde hoje se situam os setores Coimbra e Bueno, em Goiânia.
Com o fim da Segunda Guerra, Jesco foi nomeado embaixador do Brasil no Leste Europeu, ficando por lá até a instalação do Tribunal de Nuremberg.

De volta ao Brasil veio direto para Goiânia, sendo convidado pelo então governador Jeronimo Coimbra Bueno, para junto com Bernardo Sayao implantarem um Projeto de Colônias Agrícolas em Goiás, aproveitando a migração de técnicos e trabalhadores oriundos do leste europeu. Nesta perspectiva foram implantadas as Colônias de Ceres, Rialma, Montividiu, Uvá, dentre outras. Também tanto Jesco, como Sayão foram designados pelo governo de Goiás, para integrarem a equipe de Juscelino Kubstchek na construção de Brasília. Passada a inauguração da nova capital, Jesco integrou-se à  Fundação Brasil Central, iniciando dessa forma um trabalho singular de documentação dos Povos Indígenas do Brasil.

No início foi a Operação Bananal com Acary de Passos Oliveira, depois integra a equipe dos irmãos Leonardo, Cláudio e Orlando Villas Boas, realizando magnífico trabalho na região do Xingu. Mais tarde, passa a acompanhar Francisco Meirelles e seu filho Apoena Meirelles, em trabalhos de atração de povos isolados, noutras áreas mais a oeste do território brasileiro.

Jesco von Puttkamer inaugurou de forma sistemática a Antropologia Visual no Brasil, seu trabalho desenvolvido durante décadas, de convivência direta nas aldeias e frentes de atração com índios e sertanistas, registra o cotidiano de vários grupos indígenas, alguns dos quais extintos atualmente, enquanto cultura e enquanto população.

Os indígenas americanos, de modo geral, como também os brasileiros, contribuíram muito para a humanidade moderna. Essa contribuição vai desde alimentos, utensílios e remédios. Entretanto essa contribuição poderia ser muito maior se essas comunidades fossem melhor conhecidas. Dentro dessa perspectiva a obra do Dr. Jesco constitui um verdadeiro Patrimônio da Humanidade, um verdadeiro Patrimônio Universal, pois além de registrar parte desse saber, hoje já perdido, constitui uma chave importante para a auto compreensão da humanidade.

Conheci o Dr. Jesco em 1971, nas aldeias dos índios Nambikwara. Desde aquele ano, percebi que seu lugar era dentro de uma Universidade, instituição que reunia condições para abrigar seu grande acervo sonoro, visual e diários de campo, sobre índios do Brasil, sem sombra de dúvida, o maior acervo do mundo, sobre o tema.

Foram quase oito anos, tentando convencer os reitores da então Universidade Católica de Goiás, dessa necessidade. Ganhei por causa disso, um pouco de cabelos brancos, mas compensou. Hoje a Pontifícia Universidade Católica de Goiás se orgulha de possuir este patrimônio  e, eu me orgulho de ter sido escolhido pelo professor Jesco, para ser  o  curador desse acervo, que está muito bem cuidado e aproveitado pelos professores do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia–IGPA, Instituto este, que fundei em 1972.




FRANCISCA GERAIZEIRA



Altair Sales Barbosa

Lá prás bandas do Tabuleiro do Cotovelo, bem nas cabeceiras do riacho da Tamarana, município de Correntina, Bahia, existia um pequeno rancho coberto com palha de buriti, nele  vivia Francisca e sua mãe.

As paredes do rancho eram de barro e caiadas pela própria Francisca, que fabricava as tintas com tabatinga e goma de tapioca, para pintar usava uma brocha retirada da raiz de canela-de-ema, planta comum daqueles chapadões.

Francisca era esquia, alta, cor morena bem escura, quase negra, embora tivesse o cabelo liso e bem comprido. Trazia à cabeça uma rodilha de pano de algodão. Usava um vestido inteiriço que ela mesmo costurava à mão, feito de chita bem barata, que comprava ou ganhava nos comércios de retalhos, que sempre existiam nos pequenos povoados a oeste do Velho Chico. Era solteira, dizia que não queria se casar, por que tinha que cuidar da sua mãe. E, não dava conta de cuidar do marido e da mãe ao mesmo tempo. A mãe faleceu aos 104 anos de idade, foi apagando aos poucos, feito fogo de vela de cera, conhecida como rolo.

Depois da morte da mãe, Francisca usou luto durante toda existência, naquelas bandas do Tabuleiro, quando foi vista pela última vez, no final da era noventa.

As cabeceiras do riacho da Tamarana, não eram muito distante da cidade e afora a vizinhança do local, a casa de Francisca era sempre rodeada de visitantes, por que além de parteira, sempre apegada com São Raimundo, que dizia ser o protetor das parturientes, tinha o conhecimento da benzição contra quebranto, mau olhado, espinhela caída, picada de cobra, prisão de ventre, angústia do coração, descobria a sorte pelas linhas das mãos e de sobra, ainda ensinava alguns remédios para determinados males. Como por exemplo tirava o barro das casas das vespas triturava e misturava com água, depois passava este com auxílio de uma pena, nas inflamações de caxumba. Após essa operação, amarrava um pano branco de algodão, que abraçava o queixo e a cabeça da pessoa.  Era tiro e queda, no outro dia a caxumba sumia.

Sempre depois de cada benzição, Francisca ensinava aos que a procuravam uma oração que na década de 1970, tive a oportunidade de transcrever, tal qual ela pronunciava:


Dispidida, dispidida, dispidida de Belém,
Adeus meus irimão, até pro  ano que vem.
Dispidida, dispidida, dispidida de Belém,
Adeus meus irimão, até pro ano que vem.
Até pro ano que vem, se a morte não nos matá,
A morte da paixão de Cristo que queira nos ajudá.
Até pro ano  que vem, se a morte não nos matá,
A morte da paixão de Cristo que queira nos ajudá.
Si nóis for feliz, a morte não nos matá,
Se tiver algum agravo, vóis nos queira perdoá,
Perdão meus irimão para alcançar os perdão de Deus.
Si nóis for feliz, a morte não nos mata,
Se tiver algum agravo, vóis nos queira perdoá,
Perdão meus irimão para alcançar os perdão de Deus.


Francisca, não cobrava nada pelos serviços, mas um ou outro servo deixava algum adjutório, que podia ser uns trocados ou as vezes, mantimentos. Durante três vezes na semana, ela saía com um feixinho de lenha à cabeça, onde o vendia na cidade, para alimentar os fogões, pois naquela época só existia fogão à lenha.

Dia de sábado, que era o dia da feira na cidade, Francisca saía com uma grande gamela à cabeça e ia fazer seu comercio na feira.  Seus produtos eram variados, dependendo da época do ano, levava sabão de diquada, maxixe, que colhia nas cercas dos currais e, na época das águas, carregava prenhas de araticuns cascudo, cajuzinhos, puçás, e cagaita de vez. Dizia que cagaita madura provocava desinteira.  Com os trocados que recebia das vendas, comprava o necessário para casa, principalmente querosene, café em grãos, que ela mesma torrava e pilava, sal, rapadura, algum cambão de osso, toucinho e carne seca. As vezes também era agraciada com alguns mantimentos. É certo, que em sua casa não tinha fartura, mas também a penúria ficava distante.

E assim era a vida de Francisca, depois que a sua mãe morreu, vivia solitária vagando pelos gerais, sempre à cata de alguma coisa.

Um belo dia, as pessoas que sempre passavam pelas cabeceiras do Tamarana, começaram a sentir sua falta. Resolveram olhar dentro da casa, mas não a encontraram.
Ficaram dias vasculhando aqueles gerais. Nenhum sinal de Francisca. Logo a notícia se espalhou e povo daquela pequena cidade começou a criar histórias sobre o seu desaparecimento.

Uns falam que suçuarana a comeu e sumiu com os ossos para a toca, outros dizem que ela caminhou em direção ao sol poente, até desaparecer. Os mais afoitos dizem que Deus a transformou numa seriema e que ela ainda vive dessa forma, vagando pelos gerais e veredas, e que todas as manhãs gorjeia seu canto, para abençoar o povo daquele lugar.