Aderbal José de Souza
Texto extraído
da obra: Memorias de Alvorada do Norte
O ano de 1960
foi marcado por vários acontecimentos importantes, sobretudo nacionalmente. Entre
tais acontecimentos, podemos citar a passagem do Fogo Simbólico pelo nordeste goiano,
a inauguração de Brasília, juntamente com todas as rodovias e demais obras de
integração nacional, bem como eleições majoritárias em todo o país, além de
tantos outros fatos históricos que marcaram aquela década.
A tocha
simbólica cívica partiu da cidade de Salvador, primeira capital do Brasil, sendo
conduzida a pé por atletas que atravessaram em marcha os gerais e campinas,
passando por todas as cidades que conduziam a Brasília, denominada de Capital
da Esperança, até a entrega que foi efetivada no dia da inauguração, a 21 de
abril de 1960.
O Fogo Simbólico
era solenemente conduzido sobre punhos erguidos dos atletas marchando em ritmo
de trote. O condutor da tocha não podia caminhar, e muito menos parar durante a
marcha do dia. Um transportador de passageiros — uma velha jardineira ou mesmo um
caminhão pau-de-arara — conduzia atletas de reserva para a constante
substituição, sem qualquer interrupção da marcha.
Os maratonistas
só podiam parar à noite nos pontos certos de hospedagem. Mesmo assim,
revezava-se em guarda noturna, na ausência de policiais para as sentinelas.
A tocha
simbólica só podia ser conduzida a pé, e por nenhum outro meio de transporte. Ela
devia ser mantida constantemente acesa durante todo o percurso, como aconteceu,
desde o ponto de partida em Salvador até seu destino final em Brasília. A
caravana de atletas fazia a entrega da tocha a outra caravana, que a esperava
com a incumbência de transportá-la até a sede do município mais próximo.
O Fogo Simbólico
foi recebido em Brasília para compor a programação das atividades de
inauguração da nova capital da República, sendo colocado num pedestal que
ficava na Praça dos Três Poderes, onde permaneceu por algum tempo.
Este autor
foi testemunha ocular da marcha do Fogo Simbólico tanto na cidade de Posse
quanto na Praça dos Três Poderes, em Brasília, até quando foi substituído e
colocado em outro pedestal, sob o nome Chama do Panteão.
Incidente
paralelo
Um episódio
fatídico ficou marcado em nossas mentes. Após assistirmos ao cerimonial da
chegada da Tocha Simbólica, lá pela meia-noite regressamos ao nosso acampamento
que ficava na periferia da cidade. Exaustos e sonolentos, deitamo-nos quase
amontoados uns sobre os outros em um velho catre, sem observar que um estranho
homem ali ao lado encontrava-se adormecido num banco tosco de madeira. Era
certamente um desconhecido peão que havia procurado o mesmo pouso e estava ali,
coberto dos pés à cabeça, protegendo-se do intenso frio do mês de abril.
Meu genitor
Lourenço tinha-se deitado ao lado da parede, eu no centro da cama e meu tio
Rodolfo estava voltado para o lado onde dormia o forasteiro. Já pela madrugada,
o estranho hóspede sacou uma grande faca peixeira e, aos gritos pavorosos,
partiu para cima do nosso leito, despertando-nos assustadoramente. Em uma
fração de minuto, desferiu vários golpes certeiros no jovem tio Rodolfo, com
tamanha rapidez que, antes de abrirmos os olhos, já o havia atingido com
quatorze facadas cravadas em seu frágil corpo, três delas mortais, localizadas
no tórax do lado das costas e as demais distribuídas na cabeça e nos membros inferiores.
Em desespero, meu pai partiu rapidamente para cima do desconhecido com um revólver-38
na mão, também aos gritos. Ao contermos o agressor, notamos que se tratava de um
sonâmbulo, o qual acordou jogando imediatamente a faca debaixo da mesa, já
implorando por clemência. O atingido tio Rodolfo, já combalido, rondava pela
casa, sedento pela ânsia, à procura de água para ingerir, jorrando sangue por
um dos orifícios abertos no seu pulmão, que borbulhava ao respirar.
Conduzimos a
vítima nos braços até o centro da cidade à busca de socorro, ao mesmo tempo
contendo o autor do atentado, que tentou empreender em fuga por várias vezes.
Contamos com o auxílio do conterrâneo Edvaldo, que residia em Posse, na
angustiosa busca de socorro médico, ato contínuo, tentamos localizar a
delegacia de polícia onde entregamos o infeliz sonâmbulo a um carcereiro para
ali pernoitar até o dia seguinte, quando tudo seria explicado ao delegado. Para
nossa surpresa, naquela fatídica madrugada, meu tio ainda seria vítima da
omissão de socorro do único médico existente na cidade. O médico que parecia estar
de ressaca, apenas olhou o paciente e sentenciou que não estaria vivo até o
amanhecer do dia, pedindo-nos que o retirássemos dali, sem nos dar qualquer
esperança. Diante dessas circunstâncias, poderíamos deduzir que o agente da
fatalidade teria feito do meu tio também uma vítima do Fogo Simbólico.
Entretanto, antes do amanhecer, meu pai determinou que eu arreasse um dos
nossos animais mais rápidos para ir ao encalço do tio Zé Aprígio, que se encontrava
na fazenda Atoleiro, a uns vinte quilômetros. Logo ficamos sabendo que havia um
avião monomotor sendo esperado para transportar uma pessoa de importante
família de Posse, a qual generosamente nos cedeu o táxi aéreo, levando tio
Rodolfo até Brasília. Ao aproximar-se do aeroporto, o piloto comunicou-se por
rádio pedindo um táxi, que prontamente o esperou e o conduziu para ser
socorrido, como de fato o foi, no recém-inaugurado Hospital de Base, onde
permaneceu internado até sua recuperação.
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