Altair Sales
Barbosa
Sócio Titular do Instituto Histórico e Geográfico do Estado Goiás
Pesquisador do CNPq
A
Controladoria-Geral da União (CGU) realizou uma auditoria no Projeto de
Transposição do Rio São Francisco e divulgou recentemente seu relatório.
O documento
merece algumas considerações:
A obra da
transposição do Rio São Francisco sempre teve um viés muito mais político que
social ou científico. O empreendimento, que envolve as grandes empresas
construtoras e as grandes empresas de engenharia elétrica do Brasil, tem na sua
base um alicerce falso, pois fala que seria realizada para atender as
necessidades das populações rurais, cujas produções agrícolas e criações de
animais padecem na época da estação seca.
Na realidade,
este quadro continua e foi acentuado com as obras da transposição. O alicerce é
falso, porque esconde desde o início o real propósito da transposição, que era patrocinar
grandes projetos de irrigação dos grandes latifundiários do Nordeste, padrinho
e patrocinadores dos coronéis da política regional, cujo modelo é o mesmo desde
o início da colonização.
Portanto, o
relatório da CGU, sobre a sustentabilidade da transposição do rio São Francisco
não traz, para os mais esclarecidos, nenhuma novidade. Todos os estudiosos da
bacia do São Francisco, bem como os conhecedores da dinâmica do rio, alertaram através
de audiências, publicações e movimentos, quanto aos riscos da execução desse
projeto.
Infelizmente, a
classe política se fez surda, não deu ouvidos. Só não ficou muda porque expressava
as opiniões de burocratas “geniais” que os alimentavam com argumentos surgidos entre
quatro paredes e totalmente desprovidos de conhecimentos concretos.
O relatório da
CGU, que agora critica a falta de planejamento para garantir a manutenção e
sustentabilidade, teria que ser convincente e questionador antes de as obras
iniciarem. Teria que ser ouvida a comunidade científica brasileira, teria que
conhecer a dinâmica dos rios do Cerrado e sua realidade, também deveria ser
conhecida a realidade e a experiência dos ribeirinhos.
Infelizmente, a
classe política se fez surda, não deu ouvidos. Só não ficou muda porque
expressava as opiniões de burocratas “geniais” que alimentavam seus integrantes
com argumentos surgidos entre quatro paredes e totalmente desprovidos de
conhecimentos concretos.
No entanto, o
relatório também traz falhas horríveis em relação ao conhecimento de toda a
bacia do São Francisco. Foca só em problemas locais, não tem visão da
totalidade.
Todo trabalho de
planejamento ambiental e organização do espaço que não leve em consideração a
história evolutiva dos elementos envolvidos e que não considere as vocações regionais
traz como consequência problemas de difíceis soluções, alguns irreversíveis.
Uma vez surgidos
tais problemas, procuram-se soluções paliativas como tentando curar uma ferida
apenas cobrindo-a com um esparadrapo. Como é o caso da resolução ANA (Agência
Nacional de Águas) 1043, de 19/06/2017, denominada “Dia do Rio”, cujo objetivo
é reforçar as ações que vêm sendo adotadas para preservar os estoques nos
reservatórios da bacia do rio São Francisco.
A resolução
determina que as captações de água da bacia sejam proibidas todas as
quartas-feiras, exceto para abastecimento humano e animal.
A resolução da
ANA deixa uma brecha ao não incluir de forma absoluta os corpos hídricos que
não são considerados como domínio da União, mas que integram a bacia do São
Francisco e são vitais para a perenização deste rio. Embora deixe claro que
serão feitas articulações com os estados e comitês da bacia, sabemos pela
prática que essas medidas são inoperantes.
Aparentemente,
essa medida, que estabelece o dia do Rio, parece boa. É, mas não é. Ao proibir
a retirada da água em alguns trechos específicos por empreendimentos agropastoris
e industriais, a resolução visa preservar água para os reservatórios, que por
sua vez irão alimentar a geração de energia e outras defluências danosas, como
é o caso dos canais da transposição.
Portanto, se
penetrarmos além das aparências, vamos notar que a resolução deixa falhas em
não entender a bacia hidrográfica dentro de sua totalidade, da mesma forma que
deixa dúvidas quanto a quem, na realidade, serão os beneficiados por tais
medidas.
Outro ponto
obscuro é a restrição aos cursos d’água superficiais, demonstrando total
desconhecimento dos ciclos hídricos regionais, pois não faz menção às águas
subterrâneas, tão ou mais importantes que as águas superficiais. Parece que o
ciclo hidrológico se restringe às chuvas, o que não é verdadeiro. Portanto, é
importante considerar a utilização das águas subterrâneas nos processos de irrigação,
efetuados através de poços artesianos.
A resolução que
cria o dia do Rio é um exemplo claro da falta de planejamento e de conhecimento
dos processos que envolvem o rio São Francisco. Também pode ser citado como exemplo
de falta de planejamento a ausência de conhecimento da ocupação humana
regional.
Em 1972, no
Primeiro Simpósio sobre o Cerrado, já chamávamos a atenção para a preservação
do Chapadão Ocidental da Bahia, até o limite com as cristas do Bambuí, hoje
limitando com os Estados do Tocantins e Goiás. Pois as águas subterrâneas naquela
época ali existentes seriam uma grande reserva de água potável para o Brasil.
Mas não foi isto
que aconteceu. Por serem consideradas erroneamente “terras devolutas”, o
governo federal as repartiu para grandes empresários nacionais e
internacionais, que recebiam no mínimo 25.000 hectares – e a única coisa que
deveriam dar em troca era o desmatamento da região. Assim, por falta de
conhecimento e de planejamento adequado, começou essa nova ordem territorial,
que em pouco tempo traria um quadro irreversível de prejuízos ambientais e sociais
para a região.
No caso
específico dos alimentadores do rio São Francisco, alguns nascem em Goiás, como
é o caso da Lagoa Feia, no município de Formosa, que contribui com vários
afluentes do rio Paracatu. Outros nascem no Jalapão, em Tocantins, caso do rio
Preto, mas a grande parte nasce no Espigão Mestre, início das campinas,
baianas, mineiras e piauienses.
Pois bem, com a
implantação deste novo modelo de organização territorial iniciou-se o maior
processo de desmatamento no Brasil, feito a correntões. Foi só uma questão de
tempo para que as nascentes, não só dos córregos, mas também dos rios,
começassem a migrar das partes mais altas para as mais baixas, e alguns córregos
secaram totalmente.
Por que isto
aconteceu? Porque sem a vegetação nativa a água da chuva não penetrava mais
como anteriormente e não recarregava os aquíferos, e estes foram baixando de nível,
num processo contínuo. Embora o índice pluviométrico permanecesse o mesmo.
O curioso nesta
situação é que ainda não haviam sido desenvolvidas tecnologias para a correção
completa dos solos regionais, por isso as plantações iniciais, com eucalipto e pinheiros,
não deram certo. Tempos depois é que foram aperfeiçoadas as tecnologias que
permitiram o plantio de várias espécies, utilizando-se para isto calcário
específico, muito adubo químico e uma quantidade imensa de agrotóxicos.
Muitos
proprietários abandonaram as iniciativas ou venderam as terras para outros
grupos de empresários, que, com a utilização de novas tecnologias, foram-se
apropriando de áreas ainda maiores. Essas tecnologias, associadas à época a uma
fartura de água, logo permitiram o avanço das fronteiras que cada vez produzia
mais e despertava a ganância de muitos produtores, que foram diversificando
suas culturas.
Com a expansão
da exportação, esse processo tornou-se uma corrida incontrolável, atraindo para
o local um capital dinâmico e predador, utilizando como discurso o
enriquecimento fácil e a fartura de empregos. Ambos os fatores não aconteceram,
primeiro porque os grandes proprietários, que não conheciam a região, expulsaram
das terras as pessoas que tradicionalmente as usavam sazonalmente para a
criação de animais bovinos e equinos.
Num segundo
momento, com a mecanização, tirou do campo aquelas pessoas que acreditavam num emprego
duradouro. Os empregos tornaram-se sazonais e eventuais, sem carteira assinada
e sem garantia. Num terceiro momento, comunidades existentes nos gerais, que
praticavam a agricultura familiar foram totalmente desestruturadas.
Esse fenômeno
gerou uma situação esdrúxula, pois os camponeses, ao serem expulsos das terras,
foram-se agregando ao redor dos postos de serviços, implantados ao longo das
rodovias, para dar sustentação aos novos empreendimentos. Os homens trabalhavam
irregularmente em qualquer tipo de serviço para sobreviverem, as mulheres mais
vividas trabalhavam como domésticas e as mais novas foram-se prostituindo, nos
dinâmicos postos de serviços que da noite para o dia se transformavam em
verdadeiros polos urbanos.
Só para citar o
exemplo do oeste da Bahia, vejam o caso da cidade de Luiz Eduardo Magalhães,
que há bem pouco tempo era só um posto de gasolina; vejam Roda Velha, que era
somente um ponto de parada; vejam o exemplo de Rosário do Oeste, que até ontem
era somente Posto do Rosário, e por aí vai.
Portanto, os
rios foram secando em função do desmatamento, o desaparecimento de córregos
menores e lagoas já vem acontecendo desde início da década de 1980. Eu mesmo levei
à região várias emissoras de televisão de nível nacional e internacional, alertando
para a situação. Foram mais de 16 programas a nível nacional e internacional.
O grande poeta,
escritor, gênio e músico Elomar Figueira de Melo já alertava, através de suas
crônicas musicais, o que estava acontecendo no Sertão-de-Dentro, como ele
denomina os Gerais, mas os políticos do litoral nunca se atinaram.
Outra coisa
importante a salientar é que as cidades e dezenas de povoados ao longo do
Corrente foram o berço de pessoas de expressão internacional, intelectualmente
falando, como o escritor Ozório Alves de Castro, que inspirou Guimarães Rosa; como
o escritor, educador e cientista político Clodomir de Morais, o único brasileiro
a desfilar em carro aberto com Yuri Gagarin, além de criar várias Universidades
mundo afora; como Mestre Guarany, criador das imortais carrancas do São
Francisco; como Raimundo Sales de Correntina, exímio inventor.
Essas pessoas,
só para citar algumas, aprenderam observando os rios que passavam. Por isso o
rio, para essa imensa população, é muito mais sagrado que se imagina. E a
manifestação e a revolta do povo de Correntina, acontecida recentemente nas fazendas
do rio Arrojado, já estava escrita nas estrelas, como nos canta Tetê Espindola.
E, se
providências não forem tomadas no sentido de devolverem à população o pouco que
lhes resta de mais sagrado, outras manifestações semelhantes acontecerão nas
regiões do Cerrado, pois todos nós padecemos do mesmo mal.
Outra coisa a
frisar não é a falta de chuvas que provoca tal situação, e sim o rebaixamento
dos aquíferos. Além do que, as águas das chuvas que precipitam encontram o solo
desprotegido, o que faz com que o escoamento seja mais rápido e o transporte de
sedimentos aumente de forma desproporcional, avolumando-se o assoreamento.
É o início do
fim...
Para finalizar,
muitos me perguntam: o que tem que ser feito agora?
Para responder
esta questão eu teria que enumerar vários pontos, o que tomaria muito espaço e
não é este o caso no momento. Mas construir um caminho para fortalecer ou
implantar uma educação criativa e a pesquisa que leve em consideração as
vocações regionais pode ser a agulha da bússola. O prejuízo já ocorrido, este é
irreversível, dentro dos parâmetros de conhecimento que atualmente possuímos.
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