“Oração pela vida de Correntina”
Muito tempo se passou e as condições do clima, com sua habitual preguiça, aos poucos se modificaram. Nuvens carregadas, passando por lá, salpicavam de pétalas o areião e a serra que, sabiamente, retinham as sobras pelos poros subterrâneos, formando um rico lençol aqüífero. Não se viam mais as tempestades de areia. A vida brotava na forma de folhas e troncos aqui e ali, formando campinas e gerais. Na fronte da serra, surgiam olhos, que comovidos de tanta alegria, marejavam lágrimas deslizantes sobre o solo frouxo de areias, formando sulcos que iam verediando na direção do sol nascente.
Os olhos viraram lagoas, as lágrimas eram rios. Por onde passavam, enriqueciam a vida. Brotavam buritis, buritiranas, pororocas, gameleiras, ingás, ipês-amarelos, mussambés até cipós e jenipapo. Ao largo, como um abraço carinhoso, surgiram jatobás, paus d’óleo, paus ferro, cagaitas, pequis, mangabas, puçás, vinháticos, cajus, cascudos, araçás, bacoparis, grão-de-galo e tantos outros que seriam necessários muitos janeiros para contar suas histórias.
As frutas que caiam n’água atraiam toda sorte de peixes que, num balé sincronizado, passeavam subindo e descendo os rios.
O sol ainda tingia de dourado o orvalho nas folhas da buritirana, quando, por detrás da vasta vereda, um bando de gente inaugurava uma nova era. Eram os índios, os primeiros seres humanos a chegarem na região. Isso foi há muito tempo e por quase quinhentas e cinqüenta gerações. Estas populações, se enamorando da paisagem, elegeram como prioridade a harmonia, e assim viveram durante séculos.
Um belo dia, muito tempo depois, outros seres humanos, procurando pepitas douradas entre os cascalhos dos rios, redescobriram aquele paraíso e, ao longo desses rios de águas cristalinas, construíram suas vidas, implantaram suas cidades, seus roçados, suas oficinas de farinha, seus canaviais e suas moendas.
Como um feixe de luz, os rios entraram no cotidiano das populações, dando-lhes o sustento, influenciando nos seus hábitos de maneira tão forte, que ainda hoje, quando os ventos sopram de leste para oeste, ainda soa na lembrança os versos daquela cantiga de roda dizendo que o navio da cachoeira não navega mais pro mar...
Os rios passaram a ser um pouco da vida dessa gente, um pouco da pessoa amada, o pai, a mãe e os filhos. Saciando a sede, higienizando e acariciando os corpos bronzeados pelo sol do meio-dia.
Quando o perigo iminente ameaçava descristalizar suas águas, as carrancas do Velho Guarany se posicionavam como guardiões do bem, expulsando para longe as ameaças vadias.
Um belo dia, numa época bem recente, homens estranhos com chicotes e boleadeiras, aterrorizando as carrancas, subiram os rios em direção às suas cabeceiras e ocuparam os chapadões.
Era o caos! As campinas minguaram e bancos genéticos valiosos foram substituídos por grãos estranhos. Máquinas pesadas, semelhantes a dragões acorrentados, atiraram ao chão as plantas raquíticas dos gerais.
Os buritis desfolhados começaram a presenciar a desestruturação da vida dos brejeiros.
E assim, a vida foi canalizada pelos meandros da má qualidade.
Os solos encharcados das veredas aos poucos se transformaram em pedra dura e a água dos rios, diminuindo, expôs nos barrancos os seixos arredondados, que outrora repousavam no leito farto desses rios.
Por isso, quando os ventos da desolação soprarem rajadas de pobreza e o povo, desorientado, clamar por salvação, enterrem meu coração atrás do morro do estreito. Não quero ver a pedra do lajedo agonizando de sede, clamando por uma gota de água.
Conheço Correntina, e aquele paraíso lindo de rio. Creio que se a mata nativa continuar dando espaço para o agronegócio, um dos principais afluentes do São Francisco, acabará em um rio de agrotóxico. Isso porque não acredito que o estado seja tão conivente com o que está acontecendo. Correntina, uma cidade tão linda, com um cerrado nativo, belo e exuberante, permitir que seja destruida dessa forma. O esgosto sendo lançado diretamente nos rios, poluição pra todos os lado. Mas professor, gostei muito de sua poesia, e retrata muito bem aquela população. Belas as cidades do oeste baiano. Parabéns.
ResponderExcluirMuito lindo seu texto Professor,
ResponderExcluiré bastante triste saber que o homem, a cada dia, só aperta mais a corda que ele se enforca. Mas, tenho certeza que com a força de quem lutam pela preservação e/ou desenvovimento sustentável vamos minimizar esse processo.
Rio Correntina
ResponderExcluirO trator deixou veneno
da perigosa serpente
atacou nos olhos d'água
dor d'olho, o rio correntina está doente
Desmataram a cabeceira
já secou sucuriú
do riacho do capão
só se vê desolação
o chão está ficando nu
Ei rio, ei rio, ei rio
como era bom te ver
Ei rio, sombrio
tão meus olhos com saudade de você
Rio corrente está triste
Derrubado o seu leito
As barragens do progresso têm defeito
e tão matando o Velho Chico
As barragens do progresso tem defeito
e tão matando o Velho Chico
João Bá
Olá prof. Altair, belo espaço de poesia consciência e luta.
Abraço, Romulo
www.pintoandrade.multiply.com
Que lindo texto! Senti-me lendo Eça de Queirós: o mesmo estilo e ritmo. Confesso que me emocionei. Sou da região e tudo que foi dito me é muito familiar. Parabéns! Que Deus conserve sempre a sua vida, pois tu és para nós um patrimônio de cultura e conhecimento.
ResponderExcluir"Amenizar a dor"
ResponderExcluirUma das lembranças mais lindas da minha infância, foram os dias vividos na pequena cidade de Correntina - Ba; ali naquele pequeno lugarejo no meio do cerrado brasileiro, onde mescla a cultura" goiana-baiana-mineira"; os dias da primeira infância foram embalados com afeto e açucar (rapa-dura). O Baiano é antes de tudo um dengoso! O Duro vocábulo Pai na Bahia é "painho" Mãe é "mainha" Avó é "didinha", Avô é "pai veio" Como todas as cidades da Bahia, correntina herdou muito da cultura africana. Não temos ali o "peloulinho" que atrai a mídia; nem Jorge Amado fez menção de Correntina em sua obra; sofro para convencer meus conterrâneos que também sou da Bahia. Agora há um detalhe sútil na herança africana dessa cidade refiro-me as lavadeiras do rio corrente, que em bandos lavam roupas nas margens cristalinas do rio; ao ritmo do "bater das roupas" ouvem-se canções, vozes roucas de mulheres guerreiras unem-se ao som das cachoeiras e em forma de lamento e prece anseiam por dias melhores. Na dissertação de Mestrado tive um contato maior com a cultura africana, e descobri que cantar no trabalho é uma herança dos escravos, que em meio a dor dilacerante de ver seus sonhos ruírem, de sentir suas costas sulcadas pelo chicote dos feitores, em vez de chorar Cantavam! Talvez venha dai o ditado popular 'Quem canta seus males espanta".
Na descida da ladeira do cemitério, ouve-se o coral, sente-se o cheiro de sabão caseiro e alvejante, lá estão elas cantando para amenizar a dor; e muitas vezes sem saber amenizam a minha dor.
Que maravilha o artigo de Altair Sales, comentários iqualmente maravilhosos, viva a beleza da nossa terra e da sua gente todos poetas.cada palavra uma lembrança da minha infância em Santa Maria, do Corrente onde aptrendi a nadar engolindo piabas.
ResponderExcluirToda natureza morre quando o homem mau, o capitalista chega a essas matas virgens.
ResponderExcluirÉ seu maior predador e só vem com ideias de explorar poluir e destruir a natureza e consequentemente os animais. Esses demônios são carpetes fantasiados de roupas
Muito lindo texto e comentários amorosos e saudosos também.
ResponderExcluirParabéns pelo compartilhamento
O título do texto é um plágio do título da obra de Dee Brown "Enterrem Meu Coração na Curva do Rio"
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